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2. ARTESANIAS DAS PRÁTICAS

2.1. APESAR DAS PRÁTICAS HEGEMÔNICAS

2.1.1. Na produção da moradia

Na pesquisa já citada sobre a avaliação do PMCMV, pudemos cartografar as adaptações e invenções engendradas pelos próprios moradores dos empreendimentos e unidades habitacionais, em função de suas necessidades cotidianas mais imediatas. Percebê-las como indicativas de um erro e um descompasso entre os pressupostos adotados na projetação daquele espaço e as necessidades que surgiram na sua vivência possibilita colocar em xeque os discursos que sustentam tais pressupostos, na medida em que pode-se evidenciar suas falácias e seus não-ditos. Por outro lado, percebê-las como ações inventivas e potentes nos obriga a uma revisão do próprio papel do arquiteto no que se refere à busca por processos autônomos na produção do espaço.

Diante dessa percepção, nosso primeiro desafio foi definir nossas categorias de análise. Recorremos, então, à proposta de Miguel Gausa (2010), na qual conectividade, eficiência e flexibilidade são critérios usados para elencar exemplos de uma boa arquitetura produzida na contemporaneidade. Estes três critérios são sub-divididos em outros:

Figura 33 - Categorias de análise propostas por Miguel Gausa para a qualificação de um ambiente construído

CONECTIVIDADE

1) Uso misto: habilidade do projeto residencial de ligar-se e integrar-se a múltiplos usos (trabalho, lazer e serviços). 2) Múltiplos usuários: acomodação de diversos estilos de vida e

modelos de família.

3) Urbano-suburbano: qualidade de vida suburbana compatível com a eficiência da infraestrutura urbana e as oportunidades que essa

oferece.

4) Edifício-paisagem: conexão entre espaço interno e externo, o construído e não construído, e a construção do projeto residencial

como elemento da paisagem.

5) Espaço comunitário: conexão entre o espaço da casa com a cidade por meio de espaços comuns onde a troca e a socialização podem acontecer.

EFICIÊNCIA

6) Densidade: qualidade que vai além da otimização necessária do uso do solo e das múltiplas atividades e relações que o projeto podem

acomodar.

7) Compacidade: geometria e arranjo dos espaços para a otimização da relação entre diferentes programas acolhidos pelo projeto residencial.

8) Economia de recursos: redução do consumo de material e do uso da energia por meio da escolha dos sistemas construtivos e do uso dos

recursos naturais, ao longo do tempo (manutenção).

9) Individualização: articulação da individualidade de cada morador, inserido em um projeto residencial multi-familiar.

FLEXIBILIDADE

10) Adaptabilidade: facilitação e acomodação de diversas exigências e atividades, previstas e não previstas, para usuários conhecidos e não

conhecidos.

11) Abertura: indeterminação do espaço fluído, em oposição à tradicional associação entre os ambientes e as suas específicas

funções.

12) Espaço: plataforma para o desenvolvimento eficiente de múltiplas atividades.

13) Variedade da unidade: complexidade espacial do projeto, em oposição à padronização do programa e do usuário.

Fonte: Total housing: alternatives to urban sprawl (GAUSA, 2010) 18

O desafio seguinte foi associar esses critérios uns aos outros. O fato de um edifício contemplar alguns deles seria suficiente para ser bem avaliado? Seria uma questão matemática ou rizomática? Optamos, então, por reorganizar essas sub- categorias, sem considerar os agrupamentos sugeridos por Gausa. Além disso, achamos pertinente a exclusão de algumas e a inclusão de novas categorias. Por fim, separamo-las de acordo com a escala: edifício e empreendimento.

Figura 34- Categorias adotadas pelo grupo PRAXIs para avaliação dos

empreendimentos e das unidades habitacionais produzidas por meio do PMCMV

Fonte: PRAXIS

Diante da constatação de que para os urbanistas, de uma maneira geral, o PMCMV não cumpre critérios importantes de qualidade espacial, como desvincular os atributos elencados às imagens comumente associadas por nós a esse projeto, fazendo uma análise de fato e indo além do mero check-list similar ao das avaliações pós-ocupação? Optamos, então, por uma mudança

metodológica. As categorias de análise permaneceram, mas buscamos desconectar significantes de significados pré- concebidos, para entender como essas categorias se manifestavam. Para tanto, foi importante incluir na nossa avaliação o ponto de vista do morador, não apenas por meio de suas respostas às nossas entrevistas, mas também contemplando as soluções inventadas por eles para o seu cotidiano.

Sendo assim, podemos incluir na categoria ―economia de recursos‖ (item 8) não apenas as tecnologias usadas pelas construtoras, mas também aquelas tecnologias criadas pelos moradores para a solução de problemas percebidos e vividos no seu dia a dia. Com isso, consideramos dentro dessa categoria as gambiarras elétricas, os cabos externos para a instalação de TV a cabo, rampas construídas nos box de banheiro para resolver problemas de acessibilidade, varais diversos construídos na tentativa de se conseguir secar roupa nas áreas de serviço minúsculas dos apartamentos, etc.

Fonte: PRAXIS

O mesmo foi feito na análise da categoria ―uso misto‖ (item 1). Pelas normas da CEF e das prefeituras não é permitido que haja comércio nos empreendimentos. Tendo em vista que a

maioria deles se localiza longe de centros comerciais, é inevitável que os moradores criem suas alternativas. Em nossas visitas pudemos identificar e mapear a presença de serviços diversos, desde costureira, contabilidade e manicure, até de um pequeno comércio, como padaria, barracas de comidas e bebidas.

Figura 36- Uso misto nas unidades do PMCMV

Fonte: PRAXIS

Na categoria Eficiência, Gausa inclui a ―individualização‖ (item 9) como atributo de avaliação. Nas nossas pesquisas de campo constatamos suas várias manifestações, seja no interior dos apartamentos − pintura em cores fortes das paredes, muitos

vasos de plantas espalhados pelas unidades −, seja nas áreas comuns − com seus jardins cuidadosamente plantados e cuidados. As maneiras e os graus desta individualização são bastante diversos, e é curioso observar que, na medida em que o poder aquisitivo do morador aumenta, ela passa a se materializar também por meio dos signos do mercado, de objetos de consumo, como eletrodomésticos e outros aparatos eletrônicos.

Fonte: PRAXIS

Em relação aos ―espaços comunitários‖ (item 5), percebemos que não só as quadras e os centros de convivência são usados para as atividades coletivas. Crianças brincam nas áreas mais próximas aos seus edifícios, vizinhos fazem churrasco na entrada de seu bloco, etc. Tais constatações contribuem para o questionamento da preferência dada pelas construtoras aos grandes equipamentos comunitários e a pouca valorização do quesito convívio das áreas intermediárias, na escala de uma rede de vizinhança possível.

Fonte: PRAXIS

Essa operação nos permitiu perceber que, apesar dos moradores serem considerados meros consumidores pela lógica da produção formal, suas invenções e subversões demonstram uma autonomia e uma potência contrárias à passividade que se poderia esperar encontrar. São soluções que podem estar ao lado − sem oposição − daquelas credenciadas pela ciência, o que nos abre um campo de investigação muito rico, relativo, por exemplo, às nossas próprias estratégias (ou táticas) de projeto.

Voltando às gambiarras elétricas, pudemos percebê-las não só como indicativas de falta de pontos de tomadas nos apartamentos, mas também como algo que aponta a falta de sentido de uma fixação de pontos elétricos a partir de um

layout pré-concebido. Se pretendemos uma flexibilização, de

fato, dos espaços projetados, deveríamos investigar soluções de baixo custo que permitissem instalações elétricas móveis e ambulantes.

Com relação aos serviços e comércio que surgem apesar da proibição, se para alguns são indicação de que a fiscalização precisaria ser reforçada, para nós evidencia claramente o absurdo desse impedimento, principalmente quando consideramos o contexto urbano precário no qual esses empreendimentos estão inseridos, identificado na falta de estabelecimentos

comerciais de primeira necessidade, em creches e escolas no limite da capacidade para acolher esse novo contingente, etc.

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