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5.3 OS SENTIDOS E ESCOLA NO ENTRE-LUGAR DAS

5.3.1 Na sala de aula

No contexto da sala de aula observei que constantemente as crianças tinham sua liberdade administrada pela professora. Era nítido que a professora procurava conduzir as ações das crianças, tentando exercer “ o ofício de professora” ; evidente também que possuía a preocupação com o processo de aprendizagem de leitura e a escrita, que se manifestava principalmente nos momentos da transmissão de conteúdos escritos no quadro para reprodução das crianças, sobretudo aquelas que ainda não estavam alfabetizadas.

Essa preocupação remeteu considerar que as práticas educativas presentes na escola sobre as crianças fazem parte de um conjunto de práticas escolares, cotidianas e obrigatórias, sendo a cópia do quadro, de modo muito particular, uma atividade que deve ser exercida no cotidiano escolar. Considero que a cópia é uma tarefa realizada de forma individual na sala de aula e geralmente de forma silenciosa e por um tempo bastante longo. Reproduzir os conteúdos do quadro está de tal forma tão naturalizada nas ações escolares das crianças que acontece independentemente da sua vontade de querer realizá-la ou não. Como pode ser observado em um episódio vivido com uma das crianças participante da pesquisa:

Após passar a atividade no quadro a professora pediu que as crianças copiassem no caderno os exercícios para corrigir coletivamente. Depois de algum tempo, a professora perguntou quem já havia terminado a tarefa. Como faltavam algumas crianças terminarem, ela avisou que daria mais algum tempo. Vitória D. que já havia terminado veio até a carteira da pesquisadora perguntando:

Vitória D.: Você já acabou de copiar as atividades do quadro?

194 Pesquisadora: Eu não vou copiar essas atividades, vou escrever sobre as crianças: o que fazem, dizem, como brincam, o que gostam. Depois vou ler em casa.

Vitória D.: Quero ver.// A pesquisadora virou o caderno em direção à menina. // Posso escrever meu nome aqui?// Apontava para o cabeçalho do caderno.

Pesquisadora: Pode. //Vitória escreveu seu nome soletrando em voz alta.

Vitoria D.: Como escreve teu nome? Escreve aqui. // Apontou para um espaço ao lado do seu.

Pesquisadora: Você quer escrever?

Vitória: Eu ainda não sei escrever. Só meu nome. Vou aprender aqui na escola.

Pesquisadora: É bom saber ler e escrever?

Vitória D.: É, quem aprender e ler e a escrever vai subir a escadinha e ganhar um lápis da professora.

Pesquisadora: Escadinha?

Vitória D.: Aquela assim// com um gesto, desenhou a escadinha no ar.

Pesquisadora: E quem sabe ler e escrever aqui? Quem já subiu a escadinha?

Vitoria D.: A Laylla... A Maria Vitória... A Uenna... Mas vai demorar.

Pesquisadora: Demorar como?

Vitoria D.: A professora disse „que é‟ quando chegar lá encima da escadinha.

Pesquisadora: E você está onde na escadinha?

Vitoria D.: Eu não sei... „Tô‟ aprendendo só um pouquinho ainda a ler e escrever.

Nesse momento a professora pede para a menina voltar ao seu lugar.

Durante a correção dos exercícios, a professora pede para Maria Vitória, Uenna e Laylla realizarem a leitura no quadro. (Diário de campo 25/08/2009)

O diálogo com Vitória D. conduz à interpretação de que as práticas de escolarização estão dotadas de significados quanto ao papel da escola na sua constituição. Esses significados atribuídos à escola, internalizados pelas crianças nas relações que estabelecem dentro e fora dela, dizem respeito à aquisição de saberes necessários à sua educação.

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No conjunto desses saberes, ressalta-se a importância da aquisição do código da língua escrita como necessária à sua socialização.

Conforme Sarmento (2000, p.128) são essas atitudes esperadas das crianças que constituem „ofício de aluno‟. Ele diz que ser aluno,

[...] em qualquer pedagogia é sempre fazer. Ora, este fazer não pode ser diariamente inventado. À escala de uma turma, tem de passar por rotinas, coisas impostas, sugeridas ou controladas numa gama de actividades legítimas. Claro que o que importa é que todos façam, ao mesmo tempo, cada um por si, no seu lugar, mas da mesma forma que os outros, o exercício 43 do caderno de exercícios de conjugação; ou pelo contrário, que cada aluno se empenhe num ”projecto” original negociado com o professor e os outros alunos. Mas, em ambos os casos, trata-se sempre de um ofício.

No entanto, em se tratando de focar a criança como ator social e as relações que ocorrem no processo de escolarização, é necessário afinar o olhar para poder perceber o ponto em que se entrecruzam a infância e a educação, procurando nesse momento ultrapassar a noção geralmente predominante de “ofício de aluno”.

As crianças, como já visto, mostram que na produção da cultura infantil conseguem extrapolar os limites impostos pelos adultos, estabelecendo estratégias de resistência contra os dispositivos disciplinares. Elas realizam a seu modo práticas de ocupação dos tempos-espaço na sala de aula, procurando quase sempre ludibriar e transgredir as regras, como se pode perceber no episódio a seguir:

Durante o ditado de números a professora ditou o número 75. Rômulo que não sabia escrever debruçou-se sobre a carteira de Marcos que estava sentado ao seu lado. A professora vendo a cena, o repreendeu dizendo que não podia olhar para o caderno do vizinho, devendo ser realizado o ditado sozinho, trocando-o de lugar. Sentado em outra carteira, Rômulo joga a borracha no chão, próximo à carteira de Marcos, que se

196 levanta para pegar. A professora percebendo a intenção do menino foi até ele colocando-o sentado e puxando sua carteira no lugar.

(Diário de campo, setembro/2009).

Considerei a partir desse episódio o que Montadon (1997) afirma em suas pesquisas sobre os significados que as crianças atribuem à sua aprendizagem e educação, entendendo que não basta examinar as práticas educativas ou o que os educadores fazem às crianças, mas o que estas fazem com aquilo que lhes é feito, pois são essas atitudes que lhes permitem construir sentidos para o processo de escolarização, criando estratégias para desafiar a autoridade dos adultos, mesmo que se sintam na obrigação de obedecer.

Nesse sentido, considerei que a atitude de Rômulo, revela a capacidade de interpretação das crianças para produzirem estratégias de “sobrevivência” na escola. Aqui entendi as capacidades criativas que as crianças constroem para frententar os problemas, mesmo não sendo legitimadas pela cultura escolar. São estas expressões que impulsionam as crianças a construírem a percepção sobre o que vivem, constituindo- se no entre-lugar no contexto da escola, uma vez que criam lugares alternativos para sobrepor aos embates que devem ser negociados nas relações entre pares e com adultos, mesmo que seja na “cultura da clandestinidade”. (SACRISTÁN, 2005)

Implica ainda considerar as palavras de Kohan (2003, p.79), ao asseverar que,

Nas escolas, os indivíduos não fazem qualquer coisa, em qualquer momento, em qualquer lugar. Os espaços são cuidadosamente delimitados, o tempo é marcado por um cronograma preciso, regular e regulado, os aprendizados são organizados em etapas, de forma tal a exercitar, em cada período, um tipo de habilidade específica.

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No grupo de sujeitos pesquisados, era comum encontrar sinais de resistência das crianças expressos por meio de brincadeiras, risos, barulho, gritos, teimosia, sussurros, entre outras manifestações tipicamente infantis. Tais ocorrências revelavam a capacidade das crianças reconduzirem alguns processos de socialização, visando superar as relações e situações que consideram rígidas e duras, sendo muitas vezes consideradas como transgressões.

Entendi que as transgressões eram muitas vezes sinais de não anuência apresentados pelas crianças ao que havia sido instituído pela professora, principalmente para se contrapor à ordem e à disciplina que se tentava estabelecer sobre elas. Representava também uma forma de buscar suas identidades como grupo social geracional, resistindo e insistindo em expressar seus desejos, vontades, sentimentos, pensamentos e o que gostariam de realizar na sala de aula, bem como em diferentes espaços da escola. (SARMENTO, 2006).

Desse modo, entendi que as crianças não incorporam os valores do mundo adulto passivamente, mas ressignificam por meio da qual procura dar sentido a um sistema de regras, que muitas vezes foge ao controle e entendimento dos adultos. Portanto as crianças apresentam capacidades de inconformismo e indignação (Santos, 1996) diante das situações que lhes são apresentadas e com a qual não compartilham, sendo este o modo que procuram dar sentidos as regras instituídas pela cultura escolar, resistindo e insistindo em expressar seus desejos, vontades, sentimentos, pensamentos e o que gostariam de realizar nos diferentes espaços da escola.