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4.3 ALUCINAÇÕES

4.3.2 Nada do que eu gosto tem nome

Letícia Simões (2014) apresenta Leão em uma obra que reúne depoimentos da família, de amigos e escritores que tentam mostrar seus respectivos olhares diante da figura de autor. Considerado um “multimídia”, nas palavras do irmão Bruno, o documentário mostra várias nuances do autor como um poeta, DJ, pintor e até um mau cantor, vocalista de banda de punk-rock. Há também, no documentário, revelações de sua vida íntima, sua personalidade, análises dos livros e quadros do autor. Tudo isso junto às performances de dança baseadas na obra Todos os cachorros são azuis e apresentações de seus pensamentos e poemas.

No documentário, fala-se sobre o processo de criação de Leão, que além da construção de personagens imaginários, evoca muitas outras referências de personalidades consagradas na cultura do Brasil e do mundo. Dentre outras artes, o cinema também é destacado. Pode-se pensar no tanto que essa influência interfere em sua obra. Sua escrita alucinatória é também cinematográfica. Em meio a pensamentos, há, em alguns momentos, uma descrição cinematográfica do ambiente, como se pode ver em: “O café na mesa. Torradas. Geleia. Nescau. Queijo prato. Mesa de casa com toalha nova. Pão com uma ida de manteiga. Mesa do hospício” (LEÃO, 2010, p.46). Monta-se o cenário da narrativa.

23 LEÃO, 2010, p.19.

O autor também utiliza uma espécie de bricolagem, uma junção de frases que são conhecidas em outros contextos e foram ditas por outras pessoas, como afirma o próprio Leão no documentário: “eu pego muita frase também da televisão, [...] eu pego uma frase da televisão e vou desenvolvendo” (SIMÕES, 2014, 31’14”).

Pode-se lembrar novamente da influência de Manuel Bandeira, um exemplo de escritor de vanguarda modernista, que rompe com as formas da poesia tradicional, busca o verso livre e elementos vindos dos mais diversos meios. O poema “Balada das Três Mulheres do Sabonete Araxá”, do livro Estrela da manhã (1936), inspirado na propaganda do produto mencionado, além do “Poema Tirado de Notícias de Jornal”, do livro Libertinagem (1930), parecem inspirar Leão. Neste último, o poeta modernista, assim como Leão, diz utilizar um veículo de comunicação, através da notícia de jornal, para inspirar o seu poema. O assunto já foi alvo dos pesquisadores que buscavam por esse suposto jornal e hoje há a defesa de que houve esse encontro conquistado pelo professor, jornalista e poeta Heitor Ferraz Mello24.

Em Todos os cachorros são azuis há um investimento em uma escrita que se alimenta de vozes exteriores, em uma explícita intertextualidade, trazendo uma polifonia para a produção de Leão que apreende elementos e os ressignifica. Existe uma organização textual que não se dá de forma linear, mas sempre interrompida, deslocada para outra ideia. É a junção de diferentes discursos, fragmentos, em prol do enriquecimento da narrativa e pelo processo semelhante à bricolagem.

A bricolagem é uma espécie de transposição de ideias, palavras, elementos vindos de várias culturas e aparece, por exemplo, em Bandeira, na expressão “Acugêlê banzai”. A expressão é a união de Acugêlê, palavra de origem africana e Banzai, palavra japonesa que significa literalmente “dez mil anos”. Ela é utilizada para desejar vida longa para uma pessoa. A junção de duas línguas tão distantes formando uma só expressão mostra essa positiva apropriação de elementos vindos de culturas tão diferentes para construir um novo sentido. Símbolo da poesia modernista que rompe

24 Em entrevista para o Grupo Editorial Globo, publicada em 1 de março de 2017, o professor e escritor Heitor Ferraz Mello diz ter encontrado, ou melhor, “localizado” a notícia que inspirou o poema nos acervos digitais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, na seção de periódicos, o Beira-Mar, jornal de bairro que circulava na zona sul do Rio de Janeiro. Publicada em dezembro de 1925, noticiava-se que foi encontrado um corpo na lagoa Rodrigues de Freitas, identificado como João Gostoso, carregador de feira livre, morador do morro da Babilônia. Embora seja exercício comum transformar o poema de Manuel Bandeira em notícia, agora havia um periódico que datava de duas semanas antes da primeira publicação do poema, em 31 de dezembro de 1925, no jornal A noite, em uma seção especial escrita por alguns modernistas, neste caso, Manuel Bandeira.

com as fronteiras em um processo criativo também explorado por Leão, como podemos ver em:

Em São Paulo, certa vez, uma mulher-super-poderosa disse que eu tinha sido soldado em outra encarnação. Muitas guerras a serem vencidas. Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones. Vietnã. Na veia. Helicópteros por todo lado. Napalm. Gás mostarda. Baionetas enfiadas nos corpos. Injetando alguma química feroz. (LEÃO, 2010, p.66).

Entre a filosófica metáfora que remete ao mundo bélico, surge a letra da canção da banda de rock Engenheiros do Hawaii: “Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones”. Um trecho que se harmoniza com as ideias do parágrafo. A canção narra a história de um garoto roqueiro o qual morre na guerra. As substâncias químicas utilizadas em guerra também estão presentes. A guerra parece o hospício.

Ao pensar sobre o conceito de estrutura e seus processos de descentralização em A escritura e a diferença (1967), Derrida também reflete sobre o que ele chama de “bricolagem etnográfica” (1967, p.242) do etnólogo Claude Lévi-Strauss. Dela pode ser retirada uma crítica sobre a linguagem dentro das ciências humanas. Claude Lévi- Strauss (1908-2009), ao estudar sobre processos que relacionam natureza e culturas, apropria-se do conceito de bricolagem, em O pensamento Selvagem (1962).

Advinda do termo bricoleur, entendido como aquele que exerce um trabalho manual distante das formas tradicionais, a bricolagem é uma prática que se faz colecionando fragmentos, guardando rastros, selecionando pedaços, porções de produções da humanidade, para uma nova potência criativa. A bricolagem é o uso das coisas dadas, pré-existentes que, colecionadas, são modificadas, frutos de novas combinações, composições e deslocamentos de olhares que transformam esse conjunto em um novo objeto final. Para Lévi-Strauss, é a reunião de “resíduos e fragmentos de fatos” (1962, p.37) que se transformam em nova experiência diante da antiga experiência desses fatos.

Pensando a bricolagem na literatura, pode-se refletir que a bricolagem destacada da obra de Leão não parte da ideia de que um texto não pode ser original por ser sempre fruto de outros textos apenas, mas também da observação de um jogo explícito, quase uma brincadeira de colagem de inúmeras referências. Destaca-se a busca por uma experiência inédita que rompe e desdobra (usando as palavras de Derrida) aquilo que

está posto. Dessa forma, Leão utiliza desse procedimento para mostrar a sua experiência que advém das antigas experiências, resultando também em uma nova experiência para o leitor.

Em O pensamento Selvagem, o Levi-Strauss ainda diz que

[...] a poesia do bricolage lhe advém, também e sobretudo, do fato de que não se limita a cumprir ou executar, ele não “fala" apenas com as coisas, como já demonstramos, mas também através das coisas: narrando, através das escolhas que faz entre possíveis limitados, o caráter e a vida de seu autor. Sem jamais completar seu projeto, o bricoleur sempre coloca nele alguma coisa de si (1962, p.36-37).

Pode-se pensar a finalidade da bricolagem também como um processo de escrita de si. A narrativa é composta por diversos textos explícitos ou implícitos, por diferentes matérias, objetos e pensamentos que precisam ser decompostos, colados, misturados e se entrelaçam formando um texto único, tentando contar uma história que é fruto da subjetividade daquele autor. Um labirinto que tece o caminho alucinado da escrita de Leão, como podemos ver em:

Policiais B decidem sair do hospício. Não chegam à conclusão. O que é uma conclusão? É a certeza de perder defesas. Alguém abre uma garrafa de Coca-Cola. Alguém busca uma receita de felicidade. Alguma enguia em minha testa atesta que o eletrochoque é pra voltar ao normal. Mas será que eu quero o meu normal de volta? Não sei bem sobre o grilo e o cachorro azul. São somente animais azuis. Azul também é a cor dos olhos dela. Lembra-Vovó vem e me abraça. Quer dançar um tango, mas eu não sei dançar tão devagar. Meu papo é outro. Acugêlê banzai! (LEÃO, 2010, p.54).

Apenas neste trecho há a informação sobre a inútil investigação da morte de Temível Louco, com a saída dos policiais. Depois há pensamentos filosóficos junto a ações cotidianas esperadas (abrir refrigerante), junto a ações que causam um estranhamento (enguia na testa). Há o azul, o grilo alucinação, os elementos de uma explícita bricolagem: o verso da música de Alvin L., interpretada por Marina Lima (não sei dançar tão devagar), a marca de um produto popular (Coca-cola) e, mais uma vez, a saudação Acugêlê banzai!, contribuição de Manuel Bandeira. Descrevem-se as ações do ambiente de instrução para produção cinematográfica. Há, em um único parágrafo, vários assuntos que parecem afastados, mas que acabam criando uma harmonia para a ideia.

Uma prática de Leão revelada na obra de Letícia Simões é o seu vício por conversar ao telefone, em chats na internet. Há uma imensa vontade de se nutrir do outro, unir ideias fragmentadas para formar um todo. O autor passou muito tempo sem sair de casa e gostava de compartilhar ideias. Segundo o poeta Leonardo Gandolfi, em depoimento no documentário, ele queria que outras pessoas interferissem em seu texto, que o outro pudesse desestabilizá-lo. Leão queria que os seus escritos fossem movimentados por outras pessoas, além de escrever aquilo que ouvia das pessoas com quem conversava para servir de material para a produção dos seus livros. É uma escrita, também, compartilhada.