• Nenhum resultado encontrado

2.5 EXISTE AUTOFICÇÃO?

2.5.4 Os cachorros são azuis?

Gostaria que meus livros chegassem como livros de arte. Que fossem degustados e não devorados. Que enriquecessem em alguma coisa a vida das pessoas. Não gostaria de vender ilusões falsas e sim alucinações verdadeiras (LEÃO, 2007, s.p.).

É com o rótulo de autoficção que o livro Todos os cachorros são azuis, de Leão, nos é apresentado. O livro se aproxima do conceito de Doubrovsky quando ele trata do critério da homonímia. O personagem principal chama-se Rodrigo, assim como o autor; além das experiências de internação em hospitais psiquiátricos que estão presentes na vida do autor e do personagem.

Um dos elementos que foram problematizados pela crítica ao refutar o neologismo autoficção foi o fato de ter que ser feita uma investigação prévia da vida do autor. A necessidade de busca daquilo que é referência real e de que forma isso está posto na narrativa. Criticou-se uma identidade que necessita de informações extratextuais para que seja estabelecida. Um conhecimento prévio, para que se faça

existir a autoficção. Faz-se necessário um trabalho investigativo através de entrevistas, encontros literários, em que a fala do autor confirme o uso de fatos reais em seu romance, para que se aproxime a obra de um texto autoficcional.

Para a existência do gênero, segundo Jean-Louis Jeannelle (2014), é preciso causar uma hesitação. Há uma contrapartida que é de ordem da recepção da obra. Rodrigo de Souza Leão confirma muitos dados biográficos na narrativa. Ao mesmo tempo em que expunha seus poemas e outros textos nas mídias como blogs e revistas eletrônicas, tinha uma vida reclusa e quase não saía de casa. Em uma das poucas entrevistas que deu, mesmo entrevistando várias pessoas quando era jornalista, existe uma que foi concedida a Fernando Ramos, no jornal Vaia, em 2009. O autor diz que Todos os cachorros são azuis é uma mistura de duas experiências de internação em hospitais psiquiátricos: uma em que ele sofreu um tratamento mais violento, enjaulado e com camisa de força, e outra menos perversa, mas também muito sofrida.

Declara-se sofrer de esquizofrenia, sente-se perseguido, dado que permeia toda a obra. Os acontecimentos da narrativa têm do início ao fim, um hospital psiquiátrico como cenário. Há a descrição do dia a dia, dos comportamentos dos pacientes, suas “loucuras” e anseios, além do comportamento dos profissionais que trabalham no local, principalmente enfermeiros. Ao ouvir Leão, pode-se afirmar que o personagem principal não é uma tentativa de refletir fielmente o Rodrigo real. O personagem é uma junção de experiências vividas pelo autor e também por seu irmão, Bruno, segundo o autor, diagnosticado com distúrbio bipolar. Para Leão, reunir as vivências de duas pessoas tornaria o personagem mais complexo. Ele diz na entrevista:

Meu irmão tem bipolaridade. Viu ETs na infância. É muito louco também. O nome dele é Bruno. Misturei coisas que ele fazia com as minhas coisas. A loucura ganhou mais corpo. Pude construir um personagem mais forte. Que tinha alucinações e havia visto ETs e tinha um cachorro de pelúcia e ainda havia engolido um grilo. Muito é ficção. Mas muito foi real para mim. Não vou lhe dizer o que é meu nem o que é dele para não tirar a magia da coisa (LEÃO, 2009, s.p.).

Pode-se perceber a negação de um pacto puramente autobiográfico proposto por Lejeune, ao mesmo tempo há a afirmação de que a narrativa parte de dados reais. Uma forma de não trazer, como se referiu Philippe Vilain, a pseudonudez da autobiografia, o eu então se transforma em mistério, em “magia da coisa”, como afirma Leão.

característicos da autoficção. São muitos os dados biográficos na obra confirmados pelo autor ou pela sua biografia em si. Tanto na narrativa quanto na vida do autor, há um pai médico que foi estudar psiquiatria por causa do filho. Há também o fato de autor e personagem terem o diagnóstico de esquizofrenia mais tarde, vivendo a infância longe da doença. Na narrativa, é relatado um surto aos 15 anos e na vida do autor Leão, um ano depois de ele ter se formado em jornalismo.

Menciona-se, durante toda a história, o uso de medicamentos psiquiátricos como litrisan e haldol, presentes na vida do autor. O próprio título do livro é uma referência a um cachorro de pelúcia azul que ele tinha durante a infância, o que ele conta em uma conversa com Cássio Amaral, Rafael Nolli e Ricardo Wagner, em janeiro de 2007. Nessa conversa, ao ser perguntado por Cássio Amaral se era um livro de memórias, ele confirma, dizendo que há personagens que estão relacionadas a sua infância, como é o caso da personagem Lembra-Vovó descrita no trecho:

Algumas pessoas ali não são loucas, são apenas velhas, senis, e parecem viver em outro tempo. É o caso de Lembra-Vovó. Lembra- Vovó anda muito bem vestida num tailler. É uma senhora de fino trato. Anda maquiada, bem conservada nos seus 70 anos (LEÃO, 2010, p.52).

A narrativa é composta de personagens observados durante as internações, mas também nas referências de outros momentos da vida do autor e, outros, podemos dizer que são frutos da sua imaginação. Na personagem descrita há referência da sua avó que, na vida real, morreu enquanto ele estava internado.

A indicação de gênero ficcional é uma menção também exigida por Doubrovsky, o que traz o distanciamento de um texto puramente biográfico. Leão, em todas as suas entrevistas, diz que Todos os cachorros são azuis é uma novela, entretanto o livro possui o título de romance. De qualquer forma, há o compromisso ficcional e o distanciamento da fidelidade às referências da vida real. A narrativa de um personagem que conta o seu cotidiano em um hospital psiquiátrico é recheada de histórias e personagens que mesclam acontecimentos confirmados pelo autor como experiência pessoal, mas ainda assim, o autor, a todo momento, ratifica o projeto literário ficcional que ele desenvolve ao escrever o livro. Fica posto o hibridismo e a necessidade do duplo pacto defendido pela autoficção. Podemos pensar no distanciamento da ideia doubrovskiana de que a autoficção é a ficção de fatos estritamente reais. O livro começa a se aproximar da ideia de

Vincent Colonna que, ao desenvolver uma teoria autoficcional diferencia-se de Doubrovsky, admitindo que os acontecimentos não sejam biográficos e sim ficcionais, pois o autor se autorrepresenta a partir de fatos que não vivenciou.

Há na narrativa a ideia de autofabulação desenvolvida por Colonna. Através da autofabulação, os traços biográficos não se comprometem com a verdade e a fábula tem seu ponto máximo quando, no último capítulo, intitulado [Do Gr.epílogos], o que era um relato de acontecimentos cotidianos, apresenta um acontecimento surreal. O narrador se diz vidente universal, logo ao voltar de uma internação para casa. Participa de reuniões, cujo nome surge de um eco ao acordar, o Todog, que virou uma nova língua, depois, uma religião. A partir de um fato real, no final do livro, há uma narrativa que se desenvolve através de uma verdade inventada, uma mitologia de si, completamente fabulada, fantástica.

O livro de Leão volta a se aproximar da teoria doubrovskiana, quando se observa o tempo da narrativa autobiográfica que também se difere da autoficcional. Para Doubrovsky, a narrativa não ocorre a partir da lembrança de fatos no passado, ela se dá ao mesmo tempo que a escrita, no tempo presente. Rodrigo constrói a narrativa misturando os acontecimentos do presente, como nos trechos do livro: “Engoli um chip ontem” (LEÃO, 2010, p.13) e “Recebo o beijo de minha mãe” (LEÃO, 2010, p.13). Há, no entanto, passagens no passado que explicam os acontecimentos presentes. A escrita se dá, primordialmente, no tempo do acontecimento, o que também é uma marca autoficcional em uma perspectiva doubrovskiana.

A maior aproximação, no entanto, evidencia-se porque o autor de Fils defendia um compromisso, sobretudo com a linguagem na autoficção, com uma estrutura diferenciada dos romances típicos. É a afirmação da escrita fragmentada, a preocupação em fortalecer uma nova linguagem, uma nova forma, muito característica da escrita de Rodrigo de Souza Leão. O projeto do autor é intitulado por ele mesmo de escrita “alucinatória”, que será pensada na terceira seção. A leitura da obra em questão como autoficção é defendida, como já dito, na perspectiva da literatura da urgência, desenvolvida por Luciana Hidalgo. Por que Todos os cachorros são azuis é uma narrativa-limite, uma escrita do extremo será analisada na próxima seção.

3 URGÊNCIA, POÉTICA E LOUCURA

Penso como Antonin Artaud: há dez mil modos de ocupar-se da vida e de pertencer a sua época. Quer que repita a frase? Há dez mil modos de pertencer à vida e lutar pela sua época. (NISE DA SILVEIRA. 1h 39’51’’)