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nam uos mutastis et illa: o papel dos deuses

I. Estudo do epos ovidiano a partir de passagens programáticas

1. O proêmio ( 1–4)

1.4 nam uos mutastis et illa: o papel dos deuses

A invocação,

... di, coeptis (nam uos mutastis et illa) adspirate meis primaque ab origine mundi ad mea perpetuum deducite tempora carmen.

Deuses, os meus começos – pois vós mudastes estes também– impulsionai, da primeira origem do mundo aos meus tempos tecei abaixo o ininterrupto poema.

também apresenta várias informações programáticas. Ovídio não invoca apenas uma Musa ou deus; estes são invocados no plural, ou seja, Ovídio invoca o conjunto dos deuses – uma vez que tantos comparecem na obra –, para que deem força aos seus versos recém-iniciados. Como informação adicional, no segundo hemistíquio do segundo verso, o parêntese, o autor declara terem os deuses já interferido em seus versos, conforme veremos adiante. Em seguida os invoca para que "teçam abaixo" –

deducite, termo pleno de conotações, o que também será desenvolvido adiante –, do

princípio do mundo até seu próprio tempo, o seu poema, qualificado pelo próprio autor como perpetuum carmen (canto contínuo).

Tratando do proêmio de Metamorfoses, Anderson (1993: 109) mostra uma maneira diferente de compreendê-lo, que traz à luz a arte do poeta. Segundo ele, conforme descrito acima (item 1.1), Ovídio leva o leitor a crer que seu ânimo – sua alma ou espírito, sua vontade, ou seja, ele próprio –, ruma em direção à novidade. O leitor só se dá conta de que nova é um adjetivo referente a corpora, no verso seguinte, transformando a compreensão da frase. Mal se reajusta, o leitor é precipitado no parêntese que, segundo Anderson, tem sido mal-compreendido há talvez mil e quinhentos anos. Isto se explica pois em todas as fontes anteriores ao quinto ou sexto século lê-se illas na última posição do segundo verso, portanto qualificando o termo

formas, e não o termo coeptis – o que fez com que, por vários séculos, a leitura do

parêntese levasse a crer, ineptamente, que Ovídio dava crédito aos deuses por causar as metamorfoses.

Segundo Anderson31, a leitura correta é o neutro plural illa, referindo-se então a coeptis, "começos". (E assim está na recente edição das Metamorfoses de Tarrant, de 2004, em que se baseia o presente trabalho).

In nova fert animus mutatas dicere formas corpora; di, coeptis (nam vos mutastis et illa) adspirate meis primaque ab origine mundi

ad mea perpetuum deducite tempora carmen. (Met. 1.1–4)

Minha determinação me leva a contar as formas transformadas em novos corpos. Deuses, os meus começos – pois vós mudastes estes também – impulsionai, da primeira origem do mundo aos meus tempos tecei abaixo o contínuo poema.

O novo sentido explica por que este parêntese se encontra em posição tão importante, na invocação do proêmio. Segundo Anderson, Ovídio pede ajuda dos deuses para o seu poema quando este se inicia, porque os deuses muitas vezes exerciam seu poder para alterar um poema logo de saída. E os deuses não se fizeram de rogados, agiram de pronto: alteraram, com efeito, o poema; já o demonstra o parêntese. Explica-se: após ter construído um hexâmetro convencional no primeiro verso e, tendo em mente que a expectativa do leitor – dado o histórico elegíaco do poeta –, seria que concluísse um dístico com um pentâmetro, ao escrever o parêntese perfaz outro hexâmetro, gesto único em sua carreira; um gesto que transforma as expectativas da audiência e a forma

31

poética de sua obra de elegos para epos (Anderson 1993: 109). O parêntese, então, representa o momento mesmo da mudança, a transformação em tempo real, a forma incorporando a matéria (o esclarecimento de que os deuses alteraram seus começos). Outra interpretação possível – apenas uma nuance – para o parêntese em questão, que não anula a supracitada, seria entendê-lo como "(pois vós também os mudastes)", o que reforçaria a ideia de que o próprio autor teria feito as escolhas relativas ao gênero seu poema – contando, também, com a cooperação divina –, ele próprio teria determinado a mudança métrica, com certo auxílio divino.

Convém notar como a menção ao papel dos deuses no proêmio de

Metamorfoses – sua primeira experiência com versos hexâmetros, o metro épico de

registro elevado –, nos remete ao papel do deus Cupido na primeira de todas as suas obras – Os Amores –, obra elegíaca composta em dísticos (versos desiguais), o metro próprio para os poemas de temática amorosa. A elegia – antes de o próprio Ovídio haver lhe conferido a posição relevante que ocupa frente à épica –, era considerada um gênero ligeiro – exíguo –, ou tênue (na acepção de "leve", "fugaz") e, por conseguinte, de menor importância, conforme se depreende da passagem da Arte

Poética, de Horácio:

Versibus impariter iunctis querimonia primum, post etiam inclusa est voti sententia compos; quis tamen exiguos elegos emiserit auctor

grammatici certant et adhuc sub judice lis est.(Arte Poética, 75 – 8)

Em versos desiguais unidos primeiro [esteve] o lamento;

depois, [neles] incluiu-se também a expressão de um voto satisfeito. Sobre que autor, porém, criou as tênues32 elegias,

disputam os gramaticos e até agora o litígio está sub judice33.

No "Epigrama do próprio autor", que precede Os Amores – que poderia ser traduzido por "Epigrama do poema ele próprio", exemplo de sua invariável atitude lúdica –, o poeta brinca:

Qui modo Nasonis fueramus quinque libelli, Tínhamos sido, há pouco, cinco livrinhos de Nasão, tres sumus; hoc illi praetulit auctor opus. Três agora somos; o autor preferiu esta àquela obra. ut iam nulla tibi nos sit legisse voluptas, Se, por acaso, não tiveres prazer algum em nos ler, at levior demptis poena duobus erit. Ao menos, retirados dois, a pena será mais leve.34

32

A elegia era considerada um gênero menor, menos elevado, que a épica. 33

Este epigrama (como faz o proêmio de Metamorfoses, mas de maneira indireta e mais sutil) também sugere alguns aspectos a ser privilegiados na obra, tais como a brevidade e a leveza, valores da poesia alexandrina que Ovídio emulava. (A graça do epigrama é resgatada nas Metamorfoses, quando Ovídio compõe não três, mas quinze livros). Agora, ao início do poema propriamente dito:

Arma gravi numero violenta bella parabam edere, materia conveniente modis.

par erat inferior versus – risisse Cupido dicitur atqve unum surripuisse pedem.

"Quis tibi, saeve puer, dedit hoc in carmina iuris? (Amores, 1.1–5)

Armas e violentas guerras em ritmo grave eu me preparava / para cantar com uma matéria adequada ao metro. / Semelhante era o verso inferior, Cupido riu, / dizem, e surrupiou um pé./ “Cruel menino, quem te deu este direito em poesia?

No início de Os Amores, o poeta declara que estava inclinado a escrever um poema épico – gênero mais elevado, logo importante, com matéria heroica e versos hexamétricos –, mas que – dicitur, dizem35 –, o deus Cupido teria rido, certamente de sua presunção, ou seja, o deus não considerara que o poeta houvesse sido talhado para tal, ou que estivesse à altura da empresa proposta. E portanto lhe impusera outro metro. No quinto verso, dirigindo-se diretamente a Cupido, o poeta, depois de confirmar o direito do deus menino, acusa-o – já que dono de um reino muito poderoso – de querer usurpar mais poderes. Depois da reclamação, Cupido verga seu arco e lhe diz: " Toma, vate, o que cantar"36, e dispara as setas certeiras. O poeta se comisera, pois é tomado pela chama, e o Amor passa a dominar seu peito. Logo aceita compor em dísticos, dá adeus às guerras cruéis e seu metro e, invocando a Musa da elegia, pede que lhe cinja as têmporas de murta.

Desta forma, é possível entender o proêmio das Metamorfoses – o parêntese, principalmente – e, logo, o todo da obra, como a resposta de Ovídio a Os Amores

34

Ambastraduções de Os Amores por Lucy Ana de Bem. 35

"Mediação narrativa" nas palavras de Oliva Neto. A expressão, e similares, é conhecida também como "nota de rodapé alexandrina". Frequentemente funciona como "dizem [meus antecedentes literários]": a nota de rodapé insinuada sublinha a alusividade dos versos, intensificando sua demanda de ser interpretados como um sistema de alusões (David Ross 1975:78). Segundo Hinds, trata-se de uma figuração de alusão enquanto atividade de estudiosos, que frequentemente converte em linguagem cifrada uma declaração de alinhamento com as tradições acadêmico-poéticas de Calímaco e a

Biblioteca de Alexandria. (Hinds 1998:2). 36

(1.1–5 supracitado). Recebe a ajuda dos deuses, sim, mas para transformar seus dísticos em hexâmetros, e Cupido não mais define o seu gênero: ele mesmo escolhe o caminho da épica. Mas o deus do Amor continuará a segui-lo de perto.

Aspecto que chama a atenção é que a primeira transformação narrada em

Metamorfoses é sofrida por Apolo – o deus da poesia, que dispensa o modo poético ao

poeta nos Áitia, de Calímaco. Este deus, que pela bravura vencera a serpente monstruosa Píton, é transformado em um deus vencido pelo Amor; e o responsável pelo primeiro amor de Apolo, quem o vence em força, é novamente o deus-menino. A soberba de Apolo (Met. 1.461–2),

" ... / " ... / tu face nescio quos esto contentus amores Contenta-te em, com teu facho, excitar não sei inritare tua, nec laudes adsere nostras!" que amores, nem queiras tomar os meus louvores".37

provoca a ira de Cupido, que retruca (Met. 1.463–5):

filius huic Veneris 'figat tuus omnia, Phoebe, Diz o filho de Vênus: "O teu arco, Febo, te meus arcus'ait; 'quantoque animalia cedunt tudo atinge, e a ti eu; como os animais valem

cuncta deo, tanto minor est tua gloria nostra.' menos que um deus, tua glória é menor que a minha".

Pode-se perceber o poeta defendendo a matéria de seu epos, por isso inovador, em detrimento da épica guerreira. E que as setas desferidas por Cupido, no início de sua atividade poética, ainda não perderam seu efeito. E pode-se também perceber certa identificação do poeta com o deus da poesia, ambos dominados pelo Amor.

Assim, Ovídio modifica a tradição do epos que herdou e essa mudança é a metamorfose que paira sobre todas as outras narradas ao longo do poema. Se nos

Amores há a metamorfose do verso épico em elegíaco, mas a matéria épica,

transfigurada, está presente ao longo da coleção, nas Metamorfoses, o verso elegíaco se transforma em épico, mas a matéria e o matiz elegíaco permeiam o poema.

O que também merece atenção é que, tanto nas Metamorfoses como nos

Amores, conforme visto acima, o autor declara terem os deuses um papel na

determinação do metro – um papel que fora determinante no primeiro de seus poemas, como relata no início de Os Amores, e nas Metamorfoses, como demonstra no parêntese. Nas Metamorfoses, a voz que fala invoca os deuses para impulsionar –

adspirate – seus começos, acrescentando – e comprovando em tempo real – que estes

mesmos começos acabam de ser: 37

1. também transformados pelos deuses, junto com as formas transformadas em novos corpos, na primeira interpretação;

2. transformados por eles, os deuses, também – ratificando, assim, o peso da decisão do próprio autor na escolha. Como se, talvez, por considerar-se a esta altura poeta mais experiente, ou mesmo por não ver mais sentido na convenção, o autor não mais necessitasse obrigatoriamente de invocar auxílio divino para a determinação de gênero e matéria. O que ele deixa de explicitar no proêmio (mas elide propositalmente), todavia, em mais uma instância de lasciuire, é o fato de que em seu

epos, o amor, a matéria da elegia, gênero que mais lhe apraz trabalhar, continua sendo

a matéria, a força dominante – determinada por ele apenas.

Como hipótese complementar, poderíamos também inferir que o autor, ao mencionar os seus começos, está, também, referindo-se a Os Amores, ou simples- mente trazendo à lembrança do leitor a mudança efetuada por Cupido n'Os Amores. E assim, recorda seus leitores do fato de que sua postura permanece a mesma, a despeito da mudança de gênero. A matéria, bem como a atitude do poeta, permanece – Ovidius

lasciuire solet... para lembrar Quintiliano.

Desta maneira, o recém-iniciado poema de Ovídio tem definidos metro e matéria, ou, por assim dizer, na terminologia contemporânea, "forma" e "conteúdo".