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3 RÍSIA E A PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE DA RAIVA: DA DIÁSPORA A

3.2 Narrador dilacerado

Narrado em primeira pessoa, o romance trata de forma não linear e despudorada, sob o olhar dilacerado, porém heroico, prestes a entrar numa guerra, transformando as suas feridas em arma social para combater os opressores e os culpados de sua vida miserável e de suas dores. Esta voz épica, carregada de tom social, dialoga constantemente com a voz dolorida em um embate que incendeia nossa protagonista, nutrindo-a de uma força impulsionadora que a leva para um caminho desconhecido, mas seu. Rísia durante sua viagem de retorno a Tijucopapo procura relatar os conflitos vividos por ela na esperança de recuperar a memória e se permitir superar os traumas da infância na Recife pobre e miserável, embora que para isso precise agredir o leitor com sua linguagem violenta e despudorada.

Traduzida pela hostilidade enfatizada no enorme vazio que sente em relação à afetividade omissa da mãe, sobretudo, quando mais tarde essa nostalgia dilata com o abandono do seu amado, Jonas, o homem que “se morreu dela”, perda irreparável que faz Rísia tornar-se imperdoável, por mais uma vez sentir-se traída:

“Quando você morreu eu não sei se odeio você ou se a vida, ela que ousa ainda me viver enquanto te mata. Foi à vida que te matou? Essa vida que me vive? Não quero ficar aqui sem você. Não quero viver porque você se morreu. Quando você morreu eu não te perdoo, pois você preferiu se morrer de mim a ficar comigo.” (FELINTO, 2004, p. 86).

Há neste jogo de tempos verbais um antagonismo, uma vez que se conjuga o verbo morrer com outros verbos, em tempos contrapostos, permitindo a criação de uma novidade semântica de efeito impactante: “Quando você morreu eu vou fazer uma elegia.” (p. 83), que comprova a perturbação e contrariedade em que a personagem estava, assim como o tempo verbal, a regência também provoca certo estranhamento como se o uso inusitado da sintaxe representasse essa perturbação psíquica porque passa a personagem.

Ao se deparar com a perda daquele que desde a infância era sinônimo de confiança, apoio e em quem depositara seu amor, por assim achar merecedor, se tornou ainda pior o recomeço, o seguir em frente. Findou numa inércia total para encarar a vida, para ir à busca de seus desejos: “Eu, um buraco, um oco, um seco, um vazio. Eu de manhã à noite. Nunca mais terei sol? A chuva me fere a cara dum céu tão cinza. Cinza, meu Deus, essa morte.” (FELINTO, 2004, p. 82).

Por alimentar todo esse rancor, que não a deixava precisar se era do amado morto, da mãe ausente, do lugar inabitável, Rísia não sabia como ressignificar sua raiva para um recomeço, se permitindo reproduzir-se na fuga para se reconhecer na chegada. Neste sentido, acreditar em uma mãe protetora, em uma infância inocente era banalidade, falseamento, lenda; pois tudo o que conseguira guardar desde a sua mais tenra idade fora carência, solidão, tristeza, ressaltadas na figura do pai, o qual para ela era um ser desprezível, omisso e adúltero, que reprimia e corrigia a filha, com a subalterna aprovação da mãe.

Esse menosprezo que sentia pelo pai era consequência das inúmeras amantes que ele colecionara, cujos nomes imutavelmente incluíam “ana” na sua composição (ou assemelhavam-se a isso - Analice, Diana, Babiana ou Estefânia), Rísia aliava essas mulheres à traição, à hipocrisia e à infidelidade, mulheres que não mereciam, segundo ela perdão ou benevolência. Ressalva dada a irmã Naninha, Rísia as igualava à Eva, a pecadora, sendo já condenadas à expulsão do Paraíso, explicitamente referindo-se a passagem bíblica: “Irmã Naninha é a única mulher chamada Ana cujo nome não me vem lembrar traição. Pois que se eu pudesse trocava todos os nomes de Ana por Eva, a pecadora. Todas as Anas são umas traidoras. Capemo-las. Expulsemo-las do paraíso. ” (FELINTO, 2004, p. 23).

Seu caráter raivoso, enfurecido e insurgente torna-se equivalente à agressividade, a qual era exposta, sendo estes fatores que influenciavam ainda mais no seu querer vingar-se, do qual ninguém estaria livre. No seu pensamento, a maneira que Rísia poderia encontrar para vingar-se seria então tornar-se prostituta, homossexual, louca, bêbada, bandida, enfim, qualquer condição marginalizada socialmente, que pudesse atingir seu pai, para então desmoralizá-lo. Matando-o, ao menos de vergonha e ela seria uma parricida.

Visto que não conseguiria, revolta-se ainda mais e culpa-se por ser fraca, miserável e não se permitir viver à margem, onde para Rísia só sobrevivem os fortes:

“[...] E (vou até falar baixo) esse é o mesmíssimo poder que me torna capaz de virar uma prostituta, uma homossexual, uma louca, uma bandida, uma marginal. E, não, eu não sou de aguentar a margem da vida. Na margem sou fio que se quebra. Na margem só ficam os fortes. Sou fraca, fina e frágil. [...]” (FELINTO, 2004, p. 24).

A notória omissão e a subalternidade da mãe fizeram com que Rísia sentisse interesse em descobrir a origem materna, e, por conseguinte, a sua própria. Por este motivo, Tijucopapo, lugar de nascimento da mãe, vem a ser paradeiro da protagonista, depois de longos anos morando em São Paulo. E é por intermédio do discurso (a carta inicialmente dirigida à mãe), que a personagem retorna a si, adentrando na memória para, devagar, em pedaços, reproduzir a completude de um todo decifrável e independente.

A descrição feita através da carta vai evidenciando a jornada solitária de uma mulher nordestina que retorna à terra natal, à procura de uma identidade possível, resgatável, visto que tudo aquilo que fundamenta sua identidade, pai e mãe, por exemplo, além da região, são desconstruídos violentamente por ela: uma divagação de limites mítico-religiosos, uma parábola do (re) nascimento, cuja mãe seria a própria Rísia como aponta Santos (2005):

[...] [Rísia] viaja durante nove meses – tempo de uma gestação (ela está grávida de si própria) – saindo da metrópole por dentro das florestas paralelas à BR aonde os carros vão de Recife para São Paulo e de São Paulo para Recife, até encontrar-se com Lampião e, após uma queda de cavalo, acordar em Tijucopapo. Rísia segue pela margem, paralelamente à BR oficial, numa bonita metáfora que inscreve sua entre condição. [...] A metrópole fraturou mais ainda a identidade de Rísia, a ponto de que mesmo que quisesse ela não poderia. Sua fragmentação foi tanta que a obrigou a tentar recuperar suas raízes, história, identidade social e individual no caminho de volta a Tijucopapo. Sua história é narrada através de uma carta que ela escreve para a amiga Nema, embora em muitos capítulos (nos cinco iniciais, oitavo e a partir do vigésimo terceiro) ela não faça referência à amiga e nestes mesmos capítulos a narrativa tome uma forma diferenciada de carta. A carta não é enviada, nem sequer concluída, mas é importante destacar que uma carta representa bem o discurso de um indivíduo em deslocamento (SANTOS, 2005, p. 158-160).

A saída da narradora-personagem de São Paulo aponta para uma cidade que apesar de gigante não apoia sua condição humana, não se demonstra habitável para uma mulher negra que divaga em meio a tanta riqueza. Por isso, Rísia necessita voltar tornando-se essa migrante às avessas que se busca e se insere historicamente na narrativa em meio a delírios e fantasias, contracenando com a figura lendária de lampião, como demonstração de luta contra

represálias institucionais, que necessita coragem para que marginalizados não continuem à margem.