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3 EDUCAÇÃO E FILOSOFIA: UMA LEITURA BENJAMINIANA DA

3.3 A morte da narrativa tradicional e o emergir da narrativa moderna

3.3.2 A narrativa como guardiã da memória dos “vencidos”: índices de uma filosofia

aconteceu a pessoas que não tinham “nada a perder”. Mas essa é a condição de toda a classe trabalhadora. O que temos a perder? Materialmente, nada. Mas acredito que todos nós merecemos viver de forma digna e longínqua. O texto de Euclides pode ser encontrado em departamentos ou seções diferentes de bibliotecas: na área de História, na área de jornalismo, na área de Literatura, ou seja, seu texto consegue confluir em todas essas direções, por todas essas áreas devido ao seu caráter narrativo-documental (CITELI, 2001).

O romance/documentário/narrativa-histórica de Os Sertões é estruturado em três partes, nas quais se obtém uma análise antropológica, a saber, a primeira parte denomina-se “A terra”, na qual descreve as peculiaridades do sertão nordestino e baiano, que serve como metáfora da situação de muitos sertões e regiões semiáridas por aí a fora; a segunda parte, descreve “O homem”, onde sob influência de tendências de pensamento da época, como o darwinismo e o determinismo, transmite uma visão um tanto mecanicista das relações entre terra e homem enquanto seres naturais; e por fim, “A guerra”, como o próprio título indica, trata-se da narrativa acerca das investidas do exército contra pessoas desarmadas, a princípio, e que mesmo assim resistiram a mais duas tentativas após a primeira. Somente na quarta investida, com efetivo maior e arsenal mais pesado, conseguiram aniquilar Canudos. Fala-se em apenas poucos sobreviventes: mulheres, crianças, jovens, todos sacrificados pela ausência de diálogo e violência instituída. Esse tipo de narrativa não podemos deixar de rememorá-la, porém, deve ser contada por aqueles que a viveram e a presenciaram, que sofreram as intemperes de uma realidade tão brutal e implacável para com os mais pobres, é o que propõe Benjamin, que nos chama a narrar a contrapelo (GAGNEBIN, 2004).

3.3.2 A narrativa como guardiã da memória dos “vencidos”: índices de uma filosofia da história

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Na modernidade tudo que surge, parece que instantaneamente se dissolve. Em seu livro intitulado Modernidade Líquida, Bauman (2001) nos traz uma metáfora da condição do ser humano nessa nova fase de sua história. No geral, o autor nos apresenta uma visão otimista da liquidez em que o tempo e o espaço na modernidade se apresentam. E nos sugere que o melhor é agirmos igualmente aos líquidos (de modo flexível e desprendidos) que se adaptam a todas as situações, todos os recipientes, assim, auxiliar-nos-ia a melhor assimilação do ritmo frenético no qual as coisas se insurgem e desaparecem, às vezes de modo intenso, que nem percebemos.

Os primeiros sólidos a derreter e os primeiros sagrados a profanar eram as lealdades tradicionais, os direitos costumeiros e as obrigações que atavam pés e mãos, impediam os movimentos e restringiam as iniciativas. Para poder construir seriamente uma nova ordem (verdadeiramente sólida) era necessário primeiro livrar-se do entulho com que a velha ordem sobrecarregava os construtores. Derreter os sólidos significa, antes de tudo, as obrigações irrelevantes que impediam a via do cálculo racional dos efeitos [...] liberta a empresa das obrigações para com a família, o lar e da densa trama de obrigações éticas, dentre outros laços de obrigações mútuas, deixar restar somente o nexo “dinheiro” (BAUMAN, 2001, p. 10)

A citação acima, deixa entrever o tipo de sociedade que pensadores como Bauman (2001) exaltam. Assim, ser flexível, na linguagem capitalista, significa evitar os choques (luta de classes), e aceitar as mudanças advindas da reprodução, do mundo do trabalho; aceitar de bom grado a barbárie como mero efeito colateral, ou seja, nada disso condiz com uma filosofia e uma pedagogia que se reivindica revolucionária. O capitalismo de fato, faz da técnica uma religião; e do dinheiro seu Deus49 (LOWI et al,).

O discurso de Bauman (2001) é um encobrimento do outro; é uma forma de afirmar a história dos vencedores (da classe dominante) como sendo a vitória de toda a humanidade contra suas patologias políticas (como ele encara o projeto socialista). O autor ainda admite que as transformações cíclicas que ocorrem no capitalismo como algo natural, bem diferente do que admitiam Benjamin ou Mészàros, como formas de perpetuar o status quo e o modo societário que considera ideal.

Porém nessa fugacidade, típico emblema da condição moderna, está a tônica das preocupações de autores como Benjamin, que desmistificam a reprodução de conceitos, tais como os apresentados por Bauman (2001), que se apresentam quase como expressões naturais da evolução humana (para Bauman), enquanto para Benjamin, esse movimento é mediado pela

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ascensão do pensamento único e reificante da classe burguesa, e reiterado constantemente e insistentemente através dos mais variados meios de comunicação de massa. A ascensão dessa forma de pensar se alia a elevação das mercadorias e sua fetichização.

Nos dias atuais, não raro, o que mais se nota na sociedade é essa falsa sensação de “leveza” apregoada por Bauman (2001), pois como bem coloca Dussel (1978), “a guerra é quente para quem a sofre”. Para continuar no poder e se autorreproduzir, a burguesia investe na dominação ideológica por meio da educação e da cultura, fazendo dessas forças que garantem a manutenção do status quo da classe dominante sem precisar usar de meios violentos o tempo todo, o que Saviani chamaria de violência simbólica. Possivelmente, se o capitalismo usasse das armas somente para combater as ameaças, haveria um momento que tornaria a convivência insustentável. Desde de Hegel a Marx, já se colocava a questão da autodependência entre as classes antagônicas – burguesia e proletariado. Essa ameaça também é uma preocupação de Bauman, como se nota:

O medo de que a democratização das ciências e das artes viesse a tornar os operários “pretensiosos e intoleráveis” era comum à aristocracia e aos segmentos burgueses mais conservadores, mas a grande burguesia procurava destacar o papel estratégico da educação no amortecimento dos conflitos sociais. Patrões e empregados dissolveriam suas contradições visando o progresso e as possibilidades de melhorar suas condições físicas através da ciência. O operário valorizaria os padrões de desenvolvimento industrial introduzidos pela burguesia (D’ANGELO, 2006, p. 69).

E a tarefa, portanto, do materialista dialético e da teoria crítica seria pensar e pôr em prática uma outra proposta de educação, uma outra forma de fazer arte e de estar junto as massas. Para a sedimentação da ideologia dominante, vários artifícios entram em cena como percebemos acima. Mas vale a pena ressaltar que tais mudanças de comportamento pertencem não somente a instituições tradicionais, tais como a escola, outros segmentos da sociedade devem ser ocupados. A sociedade moderna, de certo modo, despreza as crianças e velhos por não serem indivíduos “produtivos por excelência”. A sociedade moderna e os seus historiadores e educadores, que seguem a cartilha do positivismo, buscam no novo (na técnica ou novas metodologias de ensino) novos instrumentos para analisar os fatos e narrativas, um posicionamento técnico, de quem não enxerga ali, senão números a serem postos em estatísticas que comprovem seus cálculos. A lógica descartiana impera de modo mais frio em suas pesquisas.

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E é exatamente aquilo que os números não dizem; aquilo que não pode ser traduzido nas narrativas oficiais que mais interessa ao educador, ao educando, a comunidade campesina e a classe trabalhadora. É desvelar aquilo que é vergonhoso aos vencedores (a burguesia) que acumulam riquezas sobre as ossadas dos trabalhadores desfraldados de sua dignidade. Valorizar os mais velhos dentro e fora da escola é uma das formas de resgatar a sua importância como remanescentes de tantas batalhas travadas. Saber ouvi-los é um gesto belo e educativo por natureza, pois, muitos têm tanto a dizer e a transmitir.