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CAPÍTULO 2 ENTRE OS TRONCOS DA TEORIA E DA METODOLOGIA

2.3 Narrativas infantis como fonte de pesquisa com crianças

Como já dito, este estudo contempla a metodologia de construção de narrativas pela criança e sua utilização como metodologia e fonte de pesquisa. Com o intuito de dar

visibilidade às narrativas de crianças, queremos contribuir com o registro escrito das concepções de escola, tendo em vista as suas histórias, provenientes de fontes oralizadas por elas, a partir de suas vivências dentro do processo educativo naturalmente restrito às relações vividas nesses espaços de aprendizagens.

Na metodologia, escolhemos as narrativas autobiográficas como fonte de pesquisa qualitativa com crianças alunos e alunas da Comunidade Quilombola Cajueiro I em Alcântara - Maranhão, nas quais emergem as falas e escritas de si, aliadas às histórias da Comunidade e da escola, externalizadas como probabilidade de conhecer a escola na percepção das crianças. Assim, as narrativas apresentam-se como um instrumento privilegiado, o qual considera a percepção da criança e indica caminhos para a melhoria do sistema educacional, para que possa ser oferecida a elas uma educação fundamental de efetiva qualidade.

Portanto, as narrativas são uma nova abordagem teórica que permite o acesso a informações relativas à vida humana. Apontamos, com Brockmeier e Harré (2003, p. 526), que através delas “compreendemos os textos e contextos mais amplos, diferenciados e mais complexos de nossa experiência” e, para tanto, nos organizamos em padrões narrativos.

Entretanto, é uma dificuldade conceituar narrativa pela diversidade de possibilidades presentes nas tradições da teoria literária e linguística, porém ponderamos que “a narrativa é o nome para um conjunto de estruturas linguísticas e psicológicas transmitidas cultural e historicamente, delimitadas pelo nível do domínio de cada indivíduo” (BROCKMEIER; HARRÉ, 2003, p. 526).

Nesse sentido, as comunidades quilombolas, de forma historicamente situada, têm a contação de histórias como tradição, uma maneira de transmitir seu legado aos mais jovens, na qual usam a oralidade como ferramenta compreensível para expressar os discursos. Essas histórias fazem parte da vida das crianças, desde a mais tenra idade, como um processo natural em que surgem as possibilidades de adquirirem a linguagem própria de seu grupo atrelado a uma série de constructos culturais que se entrelaçam perpassando o mundo individual e social, consequentemente.

Assim, a criança cria e conta histórias pelas experiências do mundo simbólico e pelas representações que faz diariamente de seu desenvolvimento físico, psíquico e social, o qual se dá a partir de sua interação e ação no mundo como autor ou autora de suas vivências. Desse modo, “não é apenas a narrativa que faz a mediação, expressa e define a cultura, mas também a cultura define a narrativa” (BROCKMEIER; HARRÉ, 2003, p. 528). Consequentemente, a linguagem representa a realidade pelo conhecimento dos contextos significados e por ser inerente à condição experiencial culturalmente construída no coletivo desses espaços.

A narrativa é definida por Brockmeier e Harré (2003, p. 533) como “um conjunto de estruturas linguísticas e psicológicas transmitidas cultural e historicamente” por meio de técnicas sociocomunicativas, as quais expressam os significados construídos pela criança ao narrar situações e experiências de vida. Não obstante, os autores afirmam que “as narrativas operam como formas de mediação extremamente mutáveis entre o indivíduo (e sua realidade específica) e o padrão generalizado da cultura” (Idem). Com isso, as crianças confirmam vivências reais, imaginárias e singulares expressas da forma como lhes convém ao falarem das temáticas propostas ao serem o centro de provocações significativas.

Do mesmo modo, refletimos sobre as narrativas de vida como fonte e como procedimento metodológico na pesquisa com crianças, quando Bertaux (2010) apresenta a narrativa de vida como um instrumento pertinente à pesquisa, pois permite apreender as lógicas da ação em seu desenvolvimento biográfico, assim como os modos pelos quais as relações sociais se configuram na promoção da libertação de si. Em conformidade com Passeggi (2010), narrar é uma capacidade inerente ao ser humano, por isso é através do uso da linguagem que a criança interage com o mundo, com as pessoas e consigo mesma na reconstrução pessoal de suas subjetividades e na objetivação do mundo onde está inserida.

Pontuamos que existe uma relação inerente entre narrar e refletir, propiciada pela apropriação da linguagem e pelo desenvolvimento do pensamento. A pesquisa com crianças trabalha priorizando uma metodologia interativa e dialógica e, ao promover a construção de narrativas, atribui significados aos fatos e episódios da vida pessoal e coletiva desses sujeitos. É nesse viés que as narrativas de crianças dão vida à pesquisa, porque expressam modos de pensar e ver as realidades peculiares, de maneira que elas se biografizam, muitas vezes, com narrativas curtas e densas, nas quais se colocam por inteiro, deixando transparecer suas histórias individuais extremamente implicadas nas histórias que partilham no meio social (PASSEGGI, 2014). Por conseguinte, neste estudo, contemplamos o processo de construção de narrativas pela criança e sua utilização como metodologia e fonte de pesquisa. É pertinente considerarmos que, mesmo em processo de desenvolvimento de sua linguagem e de seu pensamento, elas narram fatos e acontecimentos e refletem sobre eles.

Conforme Passeggi (2014, p. 140), é pela apropriação da linguagem e da narrativa que a criança “dota-se da possibilidade de se desdobrar como objeto de reflexão e como ser reflexivo, como espectador e espetáculo, como pensador e objeto pensado”. Nesse sentido, a linguagem ainda favorece a capacidade do ser humano de voltar-se para si mesmo como outro ser pelo viés da reflexividade.

O uso de narrativas, como instrumento de pesquisa, permite uma relação intrínseca entre narrar e refletir, propiciada pela apropriação da linguagem e pelo desenvolvimento do pensamento, em que a criança, em interação dialógica com os adultos e outras crianças do seu contexto social, conta histórias nas quais traduz e evidencia suas percepções da cultura infantil. Podemos ainda acrescentar o que nos diz Alarcão (2005) sobre as narrativas orais, enquanto “acto de escrita”:

[O ato de narrar] é um encontro conosco e com o mundo que nos cerca. Nele encetamos uma fala com o nosso íntimo [...] As narrativas revelam o modo como os seres humanos experienciam o mundo [...] serão tanto mais ricas quanto mais elementos significativos se registrarem para serem compreensíveis, é importante registrarem-se não apenas os factos, mas também o contexto físico, social e emocional do momento (ALARCÃO, 2005, p. 53/4).

Nesse sentido é que procuramos, na pesquisa com crianças, apreender em suas narrativas as expressões de si, de seu mundo e das percepções construídas sobre os outros, traduzindo a profundidade do que externalizam, revelando e manifestando, assim, o espaço social e a cultural onde vivem.

Segundo Macedo e Sperb (2007), a criança, enquanto ser ativo desenvolve seu pensamento reflexivo ao observar e participar de atividades sociais mediadas por outrem. Há na criança, “um entusiasmo natural por narrativas” e nessas conversações elas falam sobre suas experiências pessoais.

Nesse sentido, compartilhamos igualmente do pensamento de Cruz (2008) acerca do reconhecimento da criança como ator social ativo e criativo, participante da sua constituição social ao se apropriar da linguagem coletiva e se reinventar nesse processo de relações e interações conforme o local, o tempo e a cultura.

Compreendemos que a pesquisa com crianças privilegia metodologias interativas e dialógicas, promove a construção de narrativas e focaliza o significado atribuído, pela criança, aos fatos, aos acontecimentos e à vida. Por isso, compartilhamos, de acordo com Cruz (2008), que as crianças gostam da presença dos adultos e de tê-los interessados em ouvi-las. Por esse motivo, é importante atentar para não tirar a criança de seu ambiente natural, para que não seja coagida a falar o que se espera dela, mas que ela seja espontânea em seus enunciados. Assim, nós também nos preocupamos com o processo, a condução e a mobilização do diálogo, deixando a criança livre para falar. Essa perspectiva nos possibilitou pensar com a

criança, uma vez que a narrativa se desdobra em ações reflexivas e de ressignificação das experiências, tanto por quem narra, quanto por quem escuta, como já dissemos anteriormente.

Portanto, conhecer a infância tem proporcionado mudanças de paradigmas relacionadas às pesquisas com crianças, considerando os aspectos éticos envolvendo as pessoas que coordenam tal atividade; e, de igual modo, a forma como são ressignificadas as propostas de práticas de pesquisa, primando pela necessidade histórica de garantir autonomia e protagonismo infantil, ao dar voz a essas crianças em suas narrativas sobre a escola.

No processo de desenvolvimento humano, aparece, inicialmente, a individualidade da pessoa enquanto ser de cultura e membro de um grupo, de modo que as crianças apreendem a cultura de seu meio, expressam suas emoções nas formas estabelecidas pela cultura de seu grupo e, assim, aprendem as práticas culturais e as línguas e dominam as formas de comunicação. Desse modo, constituem-se indivíduos através da relação com o outro, ao possibilitar-lhes a comunicação que permite a socialização dos conhecimentos acumulados e a utilização dos instrumentos culturais construídos.

Nesse entendimento, é imprescindível mencionar que a cultura fornece formas coletivas de comportamento. Na perspectiva da arqueologia, o processo de humanização se traduz na preocupação com o outro em rituais. A emoção congrega os indivíduos em ações coletivas de preservação ou enfrentamento com base na individualização. A organização do comportamento se dá a partir da natureza biológica e da cultura com base na história do próprio sujeito. Assim, o crescimento físico e mental, acompanhado da apropriação da cultura, permite a construção da noção de temporalidade e da reflexividade sobre as práticas diárias e a elaboração do conjunto de símbolos que identificam seu grupo social.

Na escola, esse processo firma-se pela aprovação e implementação da Lei nº 10.639 (2003) em que a aprendizagem da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana é identificada como necessária à compreensão das contribuições destes povos na constituição do Brasil. Para além do aspecto da legislação e dos direitos sociais, a luta pelo acesso à educação, bem como pela sua qualidade, não pode deixar de fora nenhum segmento social ou campo de conhecimento, incluindo as crianças afrodescendentes.

A esse respeito, buscamos a contribuição do campo da Psicologia, pensando a criança em um processo de transformação que reitera a necessidade de mediação desde o seu nascimento, na sua condição de ser biológico no processo de ser cultural, ou seja, um ser semelhante aos outros homens e mulheres. Pino (2005) identifica duas condições básicas para o desenvolvimento infantil: uma ligada às condições biológicas e outra relacionada às práticas sociais do seu grupo cultural. Tanto numa condição como na outra, conta com a presença

desses “outros”, representados pela mãe, pai, irmãos, irmãs, familiares, agentes educativos e demais crianças, entre outros.

Desse modo, faz-se necessário contribuir para a perspectiva da pesquisa com crianças, valorizando seu processo comunicativo, seus pensamentos e suas falas, colocando-as como participantes e no centro das investigações. Como parte dessa chama, a brasa metodológica da pesquisa com crianças entra em ebulição quando ocorre a valorização da fala da criança e de seus pensamentos, expressos em narrativas orais ou escritas e em suas múltiplas linguagens.

Esse jeito de narrar se diferencia das demais narrativas que aprendem na escola em contato com outros gêneros narrativos que exploram o mundo da fantasia. Na construção de narrativas sobre experiências pessoais, o adulto precisa identificar a vontade da criança em falar e sobre o que almeja falar, ajudando-a a continuar com a narrativa, concordando, questionando, respondendo à criança, ou seja, ela só necessita de incentivo e atenção para discorrer sobre si e as coisas do mundo em seu jeito singular.

A capacidade de narrar vai além de simplesmente contar histórias. Nela está inerente a noção de temporalidade – passado, presente e futuro –, a história de suas vidas e as identidades próprias de um grupo. A narração de cada criança está sempre carregada das representações construídas e transmitidas em seu ambiente social e cultural. A criança expressa em suas histórias aquilo que vivencia, da forma como se apropria e percebe essas vivências. Por isso, é importante considerarmos a fala da criança e criarmos espaços para a construção de narrativas em casa e na sala de aula.

Por fim, salientamos que, enquanto ser social, histórico e cultural, considerando as predisposições cognitivas e mentais presentes no ser humano desde a infância, a criança apresenta também a predisposição para se comunicar e se expressar por meio de gestos, palavras, registros e, até mesmo, por meio do silêncio. Portanto, as narrativas infantis são ricas de subsídios à pesquisa educacional, contudo o grande desafio é construir procedimentos teóricos e metodológicos adequados para captar a fala da criança sem fugir dos padrões éticos que a pesquisa com crianças institui.

CAPÍTULO 3 – A COPA DO CENÁRIO DA EDUCAÇÃO QUILOMBOLA E DA