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Narrativa é uma tradição de contar um acontecimento em forma seqüencial e estmturada, cuja composição mais simples inclui começo, meio e fim. Ao narrar um acontecimento a pessoa reorganiza sua experiência de modo que ela tenha ordem coerente e significativa, dando um sentido ao evento. Para Langdon (1994, p. 38), “é uma expressão simbólica que explica e instmi como entender o que está acontecendo”.

Através das narrativas podemos ter acesso á experiência do outro, porém de modo indireto, pois a pessoa traz sua experiência a nós da maneira como ela a percebeu, ou melhor, da maneira como ela a interpretou. “A pessoa fala de suas experiências, reconstruindo eventos passados de uma maneira congruente com sua

compreensão atuai; o presente é explicado tendo como referência o passado reconstruído, e, ambos são usados para gerar expectativas sobre o futuro” (Garro, 1994, p. 776). Ao contar um acontecimento, a pessoa tem compromisso com a expressão simbólica do mundo e de como ele flinciona. Ela se refere a um acontecimento que ocorreu no passado, mas agora, à luz de novas vivências, de outros conhecimentos que adquiriu, de outros padrões de comportamentos que socialmente são estabelecidos, enfim, ela reconta o acontecimento a partir de novas reflexões sobre a experiência passada (Rabelo, 1994). Sempre será possível contar uma experiência de uma nova maneira, pois a experiência vivida é sempre maior e mais complexa que sua descrição ou narração. A vida de uma pessoa tem muitas ramificações, entrelaçamentos, expansões e uma infinidade de possibilidades a serem realizadas, que se relacionam com muitas outras experiências, permitindo que um evento seja contado e recontado de diferentes maneiras e considerando diferentes pontos de vista.

Narrativas, segundo Riessman (1990), são sempre versões editadas do que aconteceu, não são descrições objetivas e imparciais, pois o entrevistado sempre faz escolhas sobre o que quer contar.

Outro aspecto que também está envolvido em uma narrativa é o ouvinte. A pessoa organiza sua narrativa também considerando quem a está ouvindo. Ela tenta guiar a impressão que o outro terá a seu respeito, geralmente projetando uma imagem favorável. Isso pode ser verificado na força que o narrador coloca em certos aspectos de sua história, não só no que ele diz, mas também em como ele diz (atos ilocucionários), tentando convencer seu ouvinte (Riessman, 1990).

Quando a pessoa está narrando, ela está organizando sua experiência e poderá estar recontando-a, de modo a considerar padrões socialmente reconhecidos na sua relação com o ouvinte, selecionando o que considera importante para reconstruir sua história e expressar seus valores. Esse aspecto foi bastante evidente em algumas entrevistas que realizei, uma vez que os entrevistados sabiam que eu era enfermeira

e acredito, algumas vezes, construíram suas narrativas considerando que a ouvinte era uma profissional da saúde.

Surge então a possibilidade de contradições ou de brechas na narrativa, porque o narrador seleciona, da experiência, qual o aspecto está interessando, considerando sua relação com o que éstá em pauta. Para Rabelo (1994), as brechas que aparecem revelam tensão entre o padrão que se busca impor e a experiência que não se ajusta perfeitamente a esse padrão. Assim, ao narrar sobre suas doenças, as pessoas podem negociar outras ou novas responsabilidades, definir identidades, falar através de outros autorizados, como por exemplo, contar algo sobre seu tratamento na voz do médico, dando com isso, maior autoridade ao que está narrando. Como diz Rabelo (1994, p. 13) “tecendo em tomo de si os fios de uma realidade em que buscam envolver outros”.

Várias vezes os entrevistados, do presente estudo, utilizaram a voz do médico para reforçar o que estavam dizendo, mas também, muitas vezes, para desacreditar o que esses profissionais haviam dito.

De acordo com Good (1995), as histórias contadas estão relacionadas não somente com a experiência de quem as conta, mas também com a experiência provocada em quem as ouve. É o que Ricoeur (1976), chama de ato perlocucionário.

O pesquisador tem um grande desafio ao usar a forma narrativa para conhecer as experiências vividas pelas pessoas. Esse desafio acontece na interpretação das narrativas, pois ele terá que elucidar seus significados potenciais e o processo de produção de significado de tais narrativas, que é inerente à interação entre ouvinte/leitor e o texto/narrativa. O pesquisador precisa descobrir os conflitos presentes nas narrativas, como são interpretados e como são resolvidos, procurando identificar como as pessoas constróem seu mundo e como esse mundo funciona. Assim, a partir das narrativas, o pesquisador vai buscar estabelecer a estmtura de um episódio, organizar a seqüência dos eventos, estabelecer explicações através da

interpretação dos eventos, identificar os dramas e/ou conflitos sociais e identificar os significados que dão sentido à experiência.

Ricoeur (1994) destaca a inter-reiação entre a atividade de narrar uma história e o caráter temporal da experiência humana, como uma necessidade transcultural: “o tempo toma-se tempo humano na medida em que é articulado de um modo narrativo, e que a narrativa atinge seu pleno significado quando se toma uma condição da existência temporal” (Ricoeur, 1994, p. 85).

O ato de tecer a intriga combina duas dimensões temporais; uma cronológica que dá a dimensão episódica da narrativa, caracterizando a história enquanto constituída por acontecimentos, e uma outra dimensão, a não cronológica, que é a dimensão configurante propriamente dita, onde a intriga transforma os acontecimentos em história. Este ato configurante consiste em reunir os incidentes da narrativa, extraindo a unidade de uma totalidade temporal (Ricoeur, 1994).

Na composição de uma narrativa, seu enredo (ou intriga) vai sendo organizado no entrelaçamento de diferentes acontecimentos ou incidentes individuais, dirigidos para a configuração de uma história considerada no seu todo. Desse modo, para Ricoeur (1994, p. 105), “Seguir uma história é avançar no meio de contingências e peripécias sob a conduta de uma espera que encontra sua realização na conclusão. ... Compreender a história, é compreender como e por que os episódios sucessivos conduziram a essa conclusão, a qual longe de ser previsível, deve finalmente ser aceitável, como congmente com os episódios reunidos”.

As narrativas criam um campo para ação coletiva, legitimando certas identidades e conduzindo as pessoas a tomarem posições que estão de acordo com seu padrão cultural. Isso permite aos profissionais de saúde constmírem conhecimento sobre determinados temas e situações pelas quais as pessoas passam. Ao conhecer como são as ações das pessoas quando estão vivenciando determinadas situações, é possível antecipar alguns cuidados, ter participação mais ativa e adequada, interferir onde pode haver algum risco.

As narrativas que trabalhei neste estudo, não têm a forma convencional. Em primeiro lugar porque as narrativas foram obtidas a partir de respostas a questões que elaborei. Além disso, numa primeira leitura não é possível identificar o enredo que culminaria em conclusão como uma forma característica da narrativa. No entanto, busquei apoio no trabalho de Jackson (1994), para argumentar favoravelmente à consideração de resultados de entrevistas como narrativas. Para esse autor, a falta de conclusão mostra que essas narrativas estão em evolução, e que o narrador está agindo continuamente, porém centrado num foco, que é sua doença e a busca da maneira de conviver melhor com a mesma. Em cada entrevista, é possível identificar coerência, embora como afirma Jackson (1994), esta é bastante complexa. A entrevista não revela um narrador coerente, único, mas sim um narrador que se coloca como múltiplas pessoas na tentativa de compreender a experiência que está vivendo com sua doença.

A possibilidade de ver essas entrevistas somente como histórias clínicas é contestada por Jackson, porque elas incluem mais do que a história das alterações fisicas, elas incluem o drama que a pessoa vive com sua doença, como a doença interfere em outros aspectos de sua vida, inclui a expressão de seus sentimentos, suas dúvidas e falam sobre seu futuro. As pessoas nessas entrevistas estruturam suas narrativas para buscar clarear suas experiências, tanto para o entrevistador quanto para elas próprias, de modo que uma interpretação ou várias combinações de interpretações poderão fazer surgir a reconfiguração de sua experiência, levando à compreensão de sua condição crônica.

No documento Narrativas do viver com diabetes mellitus : (páginas 50-54)

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