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Narrativas publicitárias

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CAPÍTULO I A produção cultural publicitária em um contexto pós-moderno

1.4 A vez das narrativas

1.4.1 Narrativas publicitárias

Essa lógica narrativa modificou a maneira de comunicar produtos e marcas consumidos de modo geral. Assumindo que estamos em uma era pós-material e que a publicidade, como produto cultural, reflete a sociedade a qual comunica, técnicas utilizadas em outros momentos sociais, possivelmente, não seduzam o consumidor da forma como o fazia. A publicidade é considerada um gênero com estruturas não padronizadas, justamente pela liberdade de criação, assim como a arte e a poesia. Santaella e Nöth (2010) dedicam dois capítulos de sua obra para demonstrarem, através de análises, como a publicidade possui pontos de contato com a arte. Algumas técnicas possuem exatamente a intenção de transpor para a publicidade a estética e o glamour de uma obra de arte, perpassando à marca ou ao produto valores presentes na arte. Como exemplos, estão peças publicitárias que utilizam em suas narrativas obras de arte ou poesias famosas. A própria mercadoria pode apresentar características estéticas, pensando, aqui, no design dos produtos. Porém, provavelmente, o que melhor explique a justaposição entre estes dois mundos seja a qualidade visual das peças publicitárias e seu cuidado com questões estéticas. Obviamente, para muitos autores de visão crítica, somente as intenções de persuasão presentes em um anúncio e sua relação inseparável com o mercado já o descaracterizaria e eliminaria qualquer justaposição com o mundo das artes. Preferimos seguir, aqui, uma perspectiva menos crítica, embora não tenhamos a intenção de classificar a publicidade como uma forma de arte. Consideramos, de modo simplificado, que esteticidade agrada os sentidos e que qualquer técnica que busque a persuasão precisa estar atenta para questões estéticas. No entanto, os pontos de cisão entre publicidade, como linguagem de mercado, e arte estão na função utilitária e na linguagem clara e não ambígua da primeira. Não pretendemos, aqui, um aprofundamento no sentido de diferenciar as linguagens da publicidade e da arte, nossa intenção é entender como as técnicas utilizadas pela comunicação de mercado se adaptaram à nova realidade social, codificando seus valores, com a finalidade de serem decodificados pela sociedade. Uma mudança social como vimos anteriormente, e, consequentemente, uma transformação nos anseios do público modifica tais estratégias.

O ethos23 publicitário que constitui uma mensagem está repleto de representações simbólicas que compõem a oralidade, o visual, os elementos narrativos e figurativos que favorecem a identificação do receptor (alvo) com ela. Portanto, após pesquisas minuciosas de mercado, o enunciador busca a melhor comunicação possível com seu público. Pode-se afirmar que o resultado de uma campanha é um produto cultural por estar intimamente relacionada ao perfil psicológico e social de seu target. O ethos publicitário antecipa, então, a performance do ato comunicacional, já que a imagem do público-alvo projetada na obra já era conhecida através de pesquisas mercadológicas. O ideal do enunciador seria, desse modo, “envolver, seduzir seu público-alvo, ressemantizando-o como consumidor da mercadoria ofertada” (CASAQUI, 2005, p. 118). O estudo do ethos publicitário analisa as estratégias que conectam os sujeitos (enunciador e enunciatário), tendo como arena o mercado e o contexto sociocultural. Percebemos que, embora com uma função utilitária definida e essencialmente persuasiva, as narrativas publicitárias buscam, em uma crescente, estratégias que evitem referências à compra e venda, assim como exclamações hiperbólicas que enfatizem apenas o tangível. Se em outros períodos sociais falar do produto ou da marca de forma predicativa, enaltecendo seus elementos materiais, convencia, parece-nos que hoje esta técnica deixou de ser tão efetiva. A preocupação estética, que acompanha toda a história da propaganda, é ainda mais visível em tempos pós- modernos e, o que podemos observar, é a busca por sublimar elementos intangíveis em detrimento dos tangíveis em narrativas que visam o imaginário.

A publicidade sempre se preocupou em construir um mundo próprio, excluindo problemas, conflitos e elementos negativos presentes na vida real (ROCHA, 2002). Suas narrativas expõem uma realidade inventada em que os possíveis inconvenientes são instantaneamente solucionados por meio dos objetos, em um discurso persuasivo que convence, facilmente, os personagens da trama. Esses personagens vivem aquilo que desejam e, habitualmente, desfrutam eternamente a felicidade. A eternidade é algo implícito no mundo dos anúncios. Eles não lidam com o tempo real, presente, passado e futuro se misturam e a sensação final é de que a eternidade se instaura. Os mitos, ritos e arquétipos também habitam este mundo. Os mitos representam padrões de experiências humanas que acompanham a história da humanidade e transpassam culturas. Para Barthes (1993), o mito não se define pelo conteúdo da mensagem, mas pela forma como é proferida. Portanto, qualquer discurso pode ser

transformado em mito. Em tempos pós-modernos, em que os tradicionais criadores dos antigos mitos, como a igreja, perderam sua força, os meios de comunicação são os principais responsáveis pela criação dos novos mitos. Os ritos estão intimamente relacionados aos mitos. “São cerimônias que encenam o mito, conseguem que nos impliquemos na representação física de sua permanência a nossa vida24” (NUÑEZ, 2008, p.31, tradução nossa). Seguramente, as civilizações ditas primitivas contavam muito mais com ritos que tornavam sagrados as tradições e costumes sociais. Porém, pós-modernos, continuamos encenando ritos, como a cerimônia do casamento e o funeral, que contribuem para dar significado às nossas vidas.

Muitos dos personagens que habitam o mundo da publicidade são arquétipos, formas vivas no inconsciente coletivo das sociedades. Os arquétipos são extremamente simbólicos e comunicam mensagens universais. Por isso, a publicidade, ao fazer uso destes símbolos em suas narrativas, atinge o inconsciente de seu público de forma eficiente e persuasiva. “A força poderosa de uma imagem arquetípica – como a imagem mãe/filho – está no fato de os humanos responderem a ela não só em nível consciente, mas também num mais profundo e instintivo nível inconsciente” (RANDAZZO, 1997, p.69). Assim, arquétipos evocam emoções poderosas, despertando a memória do inconsciente. Mesmo considerando o dinamismo das transformações sociais, como já pontuamos, os arquétipos são sempre poderosos. Eles correspondem a imagens coletivas mitológicas, presentes em épocas e culturas diferentes. Dentro deste universo construído da publicidade, muitos dos personagens que nele habitam são representações de estereótipos. Definimos estereótipo como figura ou imagem composta por ideias pré-concebidas resultante de hábitos de julgamento ou falsas generalizações25. Portanto, mesmo que muitas vezes a representação estereotipada seja amplamente aceita culturalmente, ela é necessariamente alimentada pela falta de conhecimento real sobre o assunto em questão, definindo e limitando pessoas e grupos sociais, assim como pode ser motivadora de preconceito e discriminação. Deste modo, ao associar sua imagem a estereótipos, um produto ou uma marca pode se posicionar socialmente como preconceituoso ou discriminatório. O que para uma sociedade era visto como representativo do senso-comum dentro de uma cultura hegemônica, em um outro momento social já não o é. Neste sentido, a aceitação ou rechaço de um estereótipo muda em diferentes sociedades e em diferentes períodos sociais. Certamente, o

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“Son ceremoniales que escenifican el mito, logran que nos impliquemos en la representación física de su permanencia en nuestra vida”.

papel da publicidade como produção cultural em consonância com valores sociais preponderantes é propor uma reflexão social e não reforçar estereótipos desgastados, motivadores de preconceito e de exclusão social.

O mundo construído pela publicidade, com seus mitos, ritos, arquétipos e estereótipos, repleta de personagens felizes e desprovidos de grandes conflitos, não deixou de existir. Porém, para se adaptar à nova realidade social, regida pela sociedade pós-moderna, as narrativas publicitárias buscam outras formas de relatar este mundo. O discurso publicitário há muito enaltece que o produto comunicado proporciona algo além do material, reforçando a ideia de felicidade e de realização, por exemplo. O que vislumbramos hoje é que este discurso perdeu credibilidade. Todos falam positivamente sobre seu produto e, com o a abundância de mensagens publicitárias, somada à escassez de atenção, a fórmula estaria deixando de funcionar. Para envolver o público da chamada Sociedade dos Sonhos outras estratégias precisam entrar em cena. A persuasão explícita, característica de práticas publicitárias, que evoca expressões que convidam o consumidor a comprar determinado bem material, classificando-o como o de melhor qualidade ou o mais barato, é menos eficiente sob a lógica dessa sociedade. Assim, o ethos persuasivo dos discursos publicitários, paulatinamente, está ganhando novas roupagens. Cada vez menos são evidenciadas características funcionais e concretas dos bens de consumo e o intangível está ganhando o palco nesses discursos. As histórias são construídas de forma que o consumidor se identifique com as mesmas. Assim, não só os produtos e ideias comunicariam histórias intrínsecas a eles, como a própria empresa ou instituição precisaria ter sua imagem ligada a uma história.

Para tanto, a publicidade se desvestiria de seu ethos persuasivo explícito e faria uso de narrativas construídas para emocionar o receptor. A marca ou produto contaria uma história que enaltecesse valores simbólicos sociais que, quando interpretados, pudessem ser facilmente relacionados aos valores intangíveis que essa marca ou produto pretende comunicar. Dessa forma, o apelo para a emoção em narrativas publicitárias focadas no intangível parece ser uma eficiente arma em um mercado ditado por sonhos. Vislumbramos uma crescente procura em escolher produtos de acordo com o seu apelo emocional, associando-os a uma imagem positiva claramente exposta em narrativas que comunicam estes produtos. Histórias estas focadas no intangível e capazes de despertar algum tipo de emoção. Em uma era pós-material, a publicidade seria, então, muito mais uma forma de entretenimento do que de proclamação.

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