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5 SOBRE OLHARES E CEGUEIRAS

5.4 Nas plagas de K.

Em análise anterior, constatou-se que o personagem K. mostrou-se alienado da vida política no Brasil, por conta de sua dedicação exagerada ao iídiche e da não aceitação das possíveis atrocidades cometidas com sua filha. Mas não são apenas cegueiras que marcam o livro. Há também a passagem da postura alienada de K. para um novo olhar estrangeiro sobre o regime ditatorial no país.

No passado, era muito comum que viajantes viessem às Américas por conta da imagem construída de paraíso e de exotismo. A paisagem tropical, o bom clima e a natureza atraíam estrangeiros que relatavam suas experiências no país através de diversos livros.

De acordo com Rouanet, “A América dos viajantes não existe pelo que ela é, mas sim pelo que não é. Em outras palavras: ela não é Europa.” (ROUANET, 1991, p. 70). Ao falar isso, Rouanet explica que qualquer relato de costumes de um povo é, obrigatoriamente, uma comparação.

O livro K.- Relato de uma busca é o relato de um viajante, K., protagonista que dá unidade à narrativa, resistente judeu polonês, que veio para o Brasil fugido durante a Segunda Guerra Mundial.

K. tinha trinta anos quando foi arrastado pelas ruas de Wloclawek, acusado de subversão pela polícia polaca. Por isso, emigrou às pressas, deixando mulher e filho, que só se juntariam a ele no Brasil um ano depois. Foi solto na condição de emigrar, além da propina coletada pelos amigos de militância. (KUCINSKI, 2014, p. 37)

K. não veio ao Brasil pelo paraíso nem pela imagem exótica construída pelos europeus. A América, para K., não existia pelo que ela era, mas pelo que não era, não era a Europa que travava uma guerra em perseguição aos judeus. A América, pela afirmação da identidade através da negação, era um lugar de paz, de liberdade, de esperança, de uma nova vida.

Porém, a terra que funcionou como refúgio para o personagem e sua esposa, no momento da narrativa, se transforma num “sorvedouro de pessoas” (KUCINSKI, 2014, p. 13) que desaparece com sua própria filha. Falando sobre os possíveis sentidos do verso “O Brasil não é longe daqui”, oriundo de uma propaganda imigratória, Süssekind (1990) nos leva a

pensar que uma das possibilidades de interpretação tomaria o país de forma real, revestida com inesperado humor negro. Essa visão pode ser observada também na trajetória de K.: “A distância entre o Brasil como era e a utopia imaginada parece agora impossível de ultrapassar. Assim como o convite para uma visão do paraíso converte-se em pouco tempo numa temporada no inferno.” (SÜSSEKIND, 1990, p. 23).

Depois da tomada de consciência de que sua alienação era fruto de um desejo de não querer enxergar o que estava tão próximo, o que era óbvio, em troca de estudos exaustivos sobre a literatura iídiche, o relato que narra a busca do estrangeiro apresenta o Brasil da época do regime ditatorial através de certa distância, de certo deslocamento. Tendo em vista que os brasileiros transformaram o período num mal de Alzheimer nacional, o estrangeiro verá com outros olhos os meandros do sistema repressivo, vai-nos “ensinar a ver” (SÜSSEKIND, 1990, p. 39).

O início do livro insere o leitor no momento em que o personagem começa a desconfiar do desaparecimento da filha. Naquela mesma noite, o personagem sonha com um momento vivido na Polônia.

Naquela noite sonhou ele menino, os cossacos invadindo a sapataria do pai para que lhes costurasse as polainas das botinas. Despertou cedo, sobressaltado. Os cossacos, lembrou-se, haviam chegado justo no Tisha Beav, o dia de todas as desgraças do povo judeu, o dia da destruição do primeiro templo e do segundo, e também o da expulsão da Espanha. (KUCINSKI, 2014, p. 14)

Por associação, parece que o sonho anuncia um mal presságio, retomando as desgraças presenciadas por ele, quando pequeno: “Sem saber o que temer, mas já temendo [...]” (KUCINSKI, 2014, p. 15), “Pressentiu o pior.” (KUCINSKI, 2014, p. 17). Também por associação, o personagem começava a agir como na época da guerra na Polônia: “Sem perceber, K. retomava hábitos adormecidos da juventude conspiratória na Polônia.” (KUCINSKI, 2014, p. 18), “K. passou a contabilizar a duração da ausência da filha, outro preceito dos tempos da juventude.” (KUCINSKI, 2014, p. 19).

Há também outra associação, em outro momento do livro, mas desta vez não é em sonho. Um general ia recebê-lo no Clube Militar a pedido de um dirigente da comunidade judaica. Lembrou-se de quando buscava pistas da irmã desaparecida durante a Segunda Guerra Mundial. A semelhança entre passado e presente, a associação de lembranças, mais uma vez, anuncia o presságio de que situação semelhante com o que já havia vivido estava prestes a acontecer novamente.

A imagem repentina de Guita puxou a do delegado que o expulsara do topo da escadaria de Varsóvia aos gritos de que sua irmã nunca fora presa, de que teria fugido para Berlim, isso sim, com algum amante.

Ainda pensava em Guita quando chegou ao general, que o recebeu de maus modos. Mandou-o sentar com rispidez. Reclamou que ele estava espalhando na comunidade judaica acusações pesadas e sem fundamento contra os militares. E se sua filha fugiu com algum amante para Buenos Aires? O senhor já pensou nisso? (KUCINSKI, 2014, p. 37)

A primeira diferença entre sua experiência vivida na Polônia e o início de sua saga por pistas da filha no Brasil fica marcada quando ele faz sua primeira visita ao IML:

[...] Para dizer a verdade, deve fazer mais de ano que não chega aqui um corpo não identificado de mulher branca. K. saiu do IML aliviado; mantinha- se a esperança de encontrá-la viva. Mas as fotografias do álbum dos indigentes e desconhecidos o deprimiram. Nem na guerra na época da guerra da Polônia deparara com rostos tão maltratados e olhos tão arregalados de pavor. (KUCINSKI, 2014, p. 19)

Mais adiante, o narrador evidencia outra diferença da experiência autoritária na Europa com o que K. estava vivendo durante a ditadura brasileira, sem notícias e informações do desaparecimento da moça. “[...] na Polônia, embora a repressão fosse dura, quando prendiam, registravam, avisavam à família. Depois tinha julgamento. Havia acusação e defesa, visitas à prisão. Lá não sumiam com os presos.” (KUCINSKI, 2014, p. 145).

Outro momento de diferença importante é quando o personagem vai a uma reunião de familiares de desaparecidos políticos e se depara com inúmeros relatos de pessoas que desapareciam sem deixar vestígios. Na passagem, é como se K. achasse que a repressão brasileira fosse mais cruel e covarde do que o que aconteceu no nazismo por conta do sumiço dos registros e do silêncio mantido pelos militares.

K. tudo ouvia, espantado. Até os nazistas que reduziam suas vítimas a cinzas registravam os mortos. Cada um tinha um número, tatuado no braço. A cada morte, davam baixa num livro. É verdade que nos primeiros dias de invasão houve chacinas e depois também. Enfileiravam todos os judeus de uma aldeia ao lado de uma vala, fuzilavam, jogavam cal em cima, depois terra e pronto. Mas os goim de cada lugar sabiam que os seus judeus estavam enterrados naquele buraco, sabiam quantos eram e quem era cada um. Não havia a agonia da incerteza; eram execuções em massa, não era um sumidouro de pessoas. (KUCINSKI, 2014, p. 23).

Algo similar é relatado no momento em que K. tenta pôr uma lápide para a filha. Tendo completado um ano do desaparecimento de Ana, K. tenta convencer um rabino a colocar uma “matzeivá” (lápide colocada no túmulo, em geral um ano após o sepultamento) ao lado da sepultura de sua ex-mulher. O rabino não concorda, já que não se coloca lápide sem corpo. Antes desse episódio, o narrador comenta que o secretário da Sociedade do Cemitério já o havia alertado sobre isso. Para tentar argumentar, K. retoma novamente a comparação com o Holocausto.

[...] Ele retrucara ao Avrum, o secretário da Sociedade, que na entrada do cemitério do Butantã há uma grande lápide em memória dos mortos do holocausto, e debaixo dela não há nenhum corpo. Avrum o admoestara por comparar o que aconteceu com sua filha ao Holocausto, nada se compara ao Holocausto, disse; chegou a se levantar, tão aborrecido ficou. O Holocausto é um mal único, o mal absoluto. Com isso K. concordou, mas retrucou que para ele a tragédia da filha era com tinuação do Holocausto. [...] (KUCINSKI, 2014, p. 79)

No capítulo intitulado “Os informantes”, o narrador rememora os primeiros momentos do personagem, quando chegou fugido ao Brasil e recebeu um aviso dos amigos para tomar cuidado com os informantes. No tempo em que K. vive sua saga em busca de Ana, ele se depara novamente com as pessoas comuns que estão ao redor dele e que, surpreendentemente, são também informantes. Além disso, há uma crítica ao governo brasileiro, de modo geral, e o uso dos informantes para descobrir informações sigilosas e, com elas, cometer crueldades, como foi o caso de Olga Prestes.

Se o Caio e o Amadeu são informantes, espias devem estar em toda a parte, raciocinou K., perplexo. É verdade que quando chegou ao Brasil em 1935, fugido da polícia polaca, os patrícios o alertaram contra os espias de Getúlio, zei zainem umetum, eles estão em toda a parte, advertiram em iídiche. Mas isso foi na época do fascismo. E eis os espias de novo em toda a parte. Ou sempre estiveram? Começa a achar que sempre estiveram; o Governo podia usar ou não as informações, mas os informantes nunca pararam de informar. Se fosse um Governo maligno, como o de Getúlio, usava; se fosse benigno, usava menos. Pois o Getúlio não descobriu o esconderijo da Olga e de tantos outros através dos informantes? O que ele fez com a Olga foi repugnante. (KUCINSKI, 2014, p. 31)

Quando K. vai a Nova York em busca de notícias, o personagem repara na quantidade de imigrantes que frequenta uma lanchonete: “A América dos imigrantes europeus está nessa lanchonete” (KUCINSKI, 2014, p. 55). Aproveitando-se do momento distanciado do Brasil,

arrepende-se por não ter fugido para a América do Norte: “E imaginar que ele poderia ter sido um desses imigrantes, mas foi dar no Brasil. Quem sabe, se tivesse vindo para a América do Norte, como o primo Simon, em vez da América do Sul, a tragédia não teria acontecido.” (KUCINSKI, 2014, p. 55).

Como já mencionado anteriormente, ao fim do livro, K. vai ao quartel para visitar presos políticos para contar sobre sua vida e a saga em busca da filha desaparecida e tentar descobrir de algum deles o que aconteceu com a moça. Ele conhecia aquele lugar há mais de cinquenta anos, época em que chegou ao Brasil. Encantou-se com o lugar, vendia seus tecidos, adorava ouvir histórias da freguesia. No momento da narrativa, K. não precisava mais ir ao quartel vender seus produtos, os fregueses iam à loja. “Comparavam o K. de antes do sumiço da filha com o K. de depois e se condoíam. Antes, K. queria ouvir suas histórias. Agora eram eles que tinham que ouvir seu lamento.” (KUCINSKI, 2014, p. 171).

Em meio a soluços, o personagem cai e há a sugestão de seu fim. O romance lida, portanto, com dois finais: o de Ana e o de K. O de Ana é ponto central do enredo. Toda a construção literária dos pseudo-relatos se dá por conta do desaparecimento da personagem seguido da aceitação da ideia de sua morte. O de K. representa o fim da busca, o que resta ao leitor é satisfazer-se agora apenas com o que foi contado, com a experiência que se pode retirar dos acontecimentos. Aprender com a experiência relatada por K. não para evitar a morte, pois, de acordo com Bauman (2004):

O amor e a morte não têm história própria. São eventos que ocorrem no tempo humano – eventos distintos, não conectados (muito menos de modo causal) com eventos “similares” [...]. E não se pode aprender a arte ilusória – inexistente, embora ardentemente desejada – de evitar suas garras e ficar fora de seu caminho. (BAUMAN, 2004, p. 17)

mas para que fique para os brasileiros a experiência da ditadura, para que seja escrita uma memória por cima da rasura do período ditatorial.

O suposto fim de K. concede autoridade final ao seu relato de judeu que encontrou no Brasil a esperança de uma vida nova fugido da Polônia e o sorvedouro que desapareceu com sua filha nas teias de um sistema repressivo cruel. Nas palavras de Benjamin:

Ora, é no moribundo que não apenas o saber e a sabedoria do homem, mas sobretudo sua vida vivida – e é dessa substância que são feitas as histórias – assumem pela primeira vez uma forma transmissível. Assim como no interior do agonizante desfilam inúmeras imagens – visões de si mesmo, nas

quais ele havia se encontrado sem dar-se conta disso –, o inesquecível aflora de repente também em suas expressões e olhares, conferindo a tudo o que lhe dizia respeito aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo possui, ao morrer, para os vivos em seu redor. Na origem da narrativa está essa autoridade. (BENJAMIN, 2012, p. 224)