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Nascimento da distinção entre ônus da prova objetivo e subjetivo

2.1 DOGMA DO ONUS PROBANDI NA MODERNIDADE

2.1.5 Nascimento da distinção entre ônus da prova objetivo e subjetivo

Foi Julius Glaser154 quem primeiro vislumbrou e estabeleceu uma distinção sobre o tema ônus da prova, em trabalhos publicados em 1883.155 Os juristas daquela época entendiam o ônus da prova como consistindo em uma necessidade da parte de cunho prático, ou seja, provar para vencer. A sanção correspondente a esse ônus baseava-se em perder a demanda.

Os trabalhos de Glaser apresentaram ao mundo jurídico da época a distinção entre ônus formal e ônus material da prova, a qual foi inicialmente utilizada pelos processualistas penais. Contudo, a distinção de Glaser não se mostrou perfeita ao direito processual civil, tendo sido os processualistas civis austríacos os precursores na identificação e apresentação da distinção entre ônus subjetivo e ônus objetivo da prova.156

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Nesse sentido PATTI, Prove..., 1987, p. 13 e 14.

154In Handbuch des Strafprozesses. Leipzig, 1883. v. 1, p. 364 e ss. Apud ROSENBERG, La carga…, 2002, p. 33 e nota 14. Ainda, BUZAID, Do ônus da prova, 1972, p. 65. PATTI, Ibid., p. 14, afirma que a distinção entre ônus da prova subjetivo e objetivo se deve à doutrina austríaca do século passado, sendo prontamente acolhida pela doutrina alemã, recebendo menor quantidade de adeptos na literatura italiana.

155Essa foi a tônica dos estudos dos processualistas do direito comum e dos tratadistas alemães e austríacos daquela época. Na visão de ROSENBERG, La carga..., 2002, p. 35 e nota 23, mereceu destaque a obra de Adolph Dieterich Weber, intitulada “Sobre a obrigação de produzir a prova no processo civil”, cuja primeira edição foi publicada em 1804, a segunda em 1832 e a terceira em 1845. (tradução nossa).

156POLLAK, System, v. 2, p. 656; SPERL, Lehrbuch, p. 368 et seq. Apud BUZAID, Do ônus da prova, 1972, p. 65.

A distinção sob enfoque, que foi objeto de trabalhos científicos posteriores, mostrou de forma clara que o instituto do ônus da prova pode ser entendido sob duas vertentes: uma relativa à atividade probatória das partes e às consequências dessa inatividade e outra relativa à atividade jurisdicional. A primeira é denominada ônus subjetivo da prova e tem suas fontes conceituais em concepções jurídicas de ordem privada. A segunda, denominada ônus objetivo ou regra de julgamento, é aplicada no momento da prolação da sentença, possuindo natureza de ordem pública.158

Reiterando o anteriormente mencionado, é possível afirmar que o fenômeno do ônus da prova apresenta duas faces que se complementam. Apesar disto, são faces que possuem características bem distintas entre si e que apresentam apenas um ponto de congruência, o risco, que será adiante desenvolvido. Ad abundantiam, uma das faces é relativa às partes, de caráter subjetivo e a outra diz respeito à função jurisdicional, de caráter objetivo.159

Ambas as faces do dogma do ônus da prova, a face objetiva e a subjetiva, são necessárias e úteis ao todo, à completude do dogma, sendo impossível extrair de uma delas argumentos aptos a combater a outra, isso nos dois sentidos do fenômeno.160

Em efeito, o fenômeno jurídico do ônus da prova deve ser visto de uma forma una e contextualizada, como um conjunto de relações interligadas e interdependentes, em

157ROSENBERG, La carga..., 2002, p. 33, afirma que os conceitos de ônus subjetivo e ônus objetivo da prova são importantes para a compreensão de todo o problema da teoria do ônus da prova.

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No direito anglo-americano a terminologia é diversa. Utiliza-se a expressão “burden of producing evidence” ou “burden of going forward with evidence” para se referir àquela parte chamada a produzir a prova de um determinado fato e “burden of persuasion” para se referir àquela parte que tem o ônus de persuadir o órgão judicial e que sofre as consequências da ausência de satisfação do respectivo ônus. Este equivale, portanto, ao ônus objetivo da prova. Normalmente ambos os ônus incumbem a mesma parte e, geralmente à parte autora. Contudo, em algumas hipóteses se leva em consideração qual parte tem um melhor conhecimento dos fatos ou dispõe de um melhor acesso à prova, v.g., a regra que grava o requerido com o ônus de provar o pagamento. Outro critério para estabelecer o ônus da prova consiste na probabilidade de certa situação fática, i.e., quem afirma a existência de um fato menos usual é onerado de tal prova. Cf., ainda, nota 89.

159Substancialmente nesse sentido ARENHART, Ônus da prova..., 2009, p. 335; BUZAID, Do ônus da

prova, 1972, p. 66. Este enxerga o problema do ônus da prova como sendo um fenômeno de duas faces:

uma voltada para os litigantes, indagando-se qual delas há de suportar o risco da prova frustrada; é o aspecto subjetivo; e outra, voltada para o magistrado, a quem deve dar uma regra de julgamento. É o aspecto objetivo. [...] O primeiro constitui uma sanção à inércia, ou à atividade infrutuosa da parte; o segundo, ao contrário, é um imperativo da ordem jurídica, que não permite que o juiz se abstenha de julgar, a pretexto de ser incertos os fatos, porque não provados cumpridamente.

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relações de causa e efeito: se o interessado não produzir prova para demonstrar a veracidade de suas alegações, o juiz não formará sua convicção quanto a quem diz a verdade e quanto a quem assiste o direito material, assim sendo, como lhe é vedado pronunciar o sibi non liquet, será obrigado a proferir provimento judicial definitivo e, a base fática desse provimento será uma ficção jurídica lastreada em uma consequência de ordem processual àquela parte que não cumpriu com seu ônus de produzir prova.

É possível considerar, ainda, que essas terminologias ônus da prova objetivo e ônus da prova subjetivo induzem ao equívoco, deixando transparecer prima oculi que se referem a dois fenômenos jurídicos autônomos, independentes entre si. Todavia, na realidade, o dogma do ônus da prova é um fenômeno único, que possui dois elementos distintos, duas faces que lhe integram, formando o todo, e que, isoladamente, não subsistem como fenômeno de natureza jurídico-processual.161

Demonstração cabal do mencionado equívoco terminológico, em aprofundada reflexão jurídica focada no conceito processual de ônus, se abstrai do sagaz raciocínio a respeito do ônus subjetivo da prova, ao se indagar se, conceitualmente, é concebível a existência de algum ônus que não seja subjetivo.162 163

2.1.5.1 Risco: elemento comum

161Nesse sentido ROSENBERG, La carga..., 2002, p. 60. Afirma que o problema da relação entre a o ônus subjetivo e o ônus objetivo da prova somente pode surgir onde ambos os ônus existem um ao lado do outro. Defende que o ônus subjetivo da prova não pode ter um alcance maior que o ônus objetivo da prova, tão pouco pode ter um alcance menor. (tradução nossa).

162Cf. DINAMARCO, Instituições..., 2009, v. 3, p. 82. ROSENBERG, Ibid., p. 42, apresenta afirmativa que se encaixa como resposta. Afirma que é completamente acertada a opinião de que não se pode imaginar o ônus da prova sem a característica de que grave sobre alguém. Porém esse gravame que recai sobre a parte onerada consiste unicamente na rejeição de sua petição fundada em uma norma que deveria ser aplicada, mas que não o será porque não constam suas características definidoras do fato, [...]. Ou seja, não guarda relação com a atividade processual probatória das partes.

163Uma parte da doutrina alemã reconhece a natureza de ônus apenas ao ônus da prova subjetivo. Quanto ao ônus da prova objetivo, ainda que a terminologia possa induzir a equívoco, se afirma que não se trata de um “ônus” no sentido técnico, mas de uma regra de juízo, que não requer um determinado comportamento das partes e que se destina ao juiz para tornar possível uma decisão no caso de ausência de convencimento. (tradução nossa). In PATTI, Prove..., 1987, p. 14.

Como anteriormente mencionado, parte da doutrina sustenta que o risco da prova frustrada ou o risco da parte onerada sofrer as consequências da não produção da prova integra o ônus objetivo da prova. Parte defende integrar o ônus subjetivo da prova.164 Contudo, vislumbra-se uma outra realidade quanto a esse aspecto.

É possível afirmar, como anteriormente pontuado, que o ônus da prova subjetivo é regra de conduta e que o ônus da prova objetivo é regra de julgamento. Contudo o risco da prova frustrada, na verdade, situa-se em uma esfera limítrofe, congruente entre os dois conceitos, formando uma área comum.

Se para a parte onerada o não cumprimento de uma regra de conduta conduz a uma consequência de ordem processual (julgamento de rejeição de seu pedido/defesa), para o juiz implica, ao usar a regra de julgamento, buscar essa mesma consequência para formar seu convencimento. Por sua vez e, em efeito, essa mesma consequência se tornará causa do provimento judicial final.

Assim, esse elemento comum, o risco, se para uma face do fenômeno, a subjetiva, consiste em consequência, para a outra face, a objetiva, transforma-se em causa.

O risco da prova frustrada, na essência, é o elemento que, umbilicalmente, liga as duas faces do fenômeno do ônus da prova e, ao mesmo tempo, impede e inviabiliza a sua separação no âmbito teórico.

Comprovando cientificamente este enunciado, se o autor não provar os fatos alegados, o juiz irá, ao utilizar a regra de julgamento, julgar improcedente seu pedido. Poderá julgar procedente? Não.165

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Cf. PATTI, Prove..., 1987, p. 13. Discorrendo sobre o artigo 2697, do Código Civil Italiano, afirma que o ônus da prova objetivo ou substancial indica à parte em quais limites se produz o efeito negativo no caso de ausência de esclarecimento da situação de fato. Isso exprime o risco da ausência de produção de prova relativamente a um determinado fato. Conclui ratificando que se compreende que o ônus objetivo da prova indica o risco da ausência de esclarecimento da situação de fato e, assim, da ausência de convencimento do juiz. (tradução nossa). Cf. Ainda nota 150.

165Não se pode considerar nesse raciocínio, para essa análise específica, a intervenção dos demais sujeitos do processo, pois, como é sabido, a comprovação dos fatos alegados pode vir para os autos pelas mãos da outra parte, de terceiros ou de ofício, pelo juiz, ante o seu poder instrutório.

Contudo, faz-se necessária a exposição de uma outra visão a respeito do ônus da prova e o risco da prova frustrada.

Como foi afirmado anteriormente, a lei processual civil, ao disciplinar e distribuir o ônus da prova, não estabelece expressamente sua consequência, a respectiva sanção processual, fixando apenas o ônus de agir de uma forma ou de outra quanto à matéria probatória, daí ser denominado por alguns como regra de conduta ou procedimento.

Há quem sustente que essa norma relativa ao ônus da prova, na realidade, não consiste em um verdadeiro e próprio ônus, uma vez que a ausência do cumprimento do comportamento prescrito pela norma, além de não estar expresso, não determina automaticamente a não obtenção do interesse perseguido, pois tanto a demanda quanto a exceção podem ser acolhidas assim mesmo.

Pode-se falar então de um risco da ausência de prova a cargo de uma ou outra parte. Contudo, para a aplicação da respectiva sanção - regra de juízo -, além desse indubitável risco relativo à ausência de prova, imperioso ainda conjugar um outro risco, o relativo à ausência de formação da convicção do juiz. Este último pode ser considerado fator determinante para a aplicação da regra do juízo. O primeiro não, diante do princípio da comunhão das provas, do fato da demanda ser fundada em fatos notórios etc.

Diante disso, quando a parte onerada não cumpre com seu respectivo ônus prescrito pela norma, quando não exerce sua faculdade em âmbito probatório, não significa que sua demanda ou sua defesa será obrigatoriamente rejeitada. Todavia, sua inércia implica um aumento significativo do risco de que essa venha a ser efetivamente rejeitada, tornando-se um evento mais provável que antes.

Na verdade, o risco é um elemento tão presente no tema do ônus da prova que mesmo quando a parte onerada cumpre com seu ônus, ou seja, exerce de forma plena sua faculdade em âmbito probatório, o risco faz-se presente, mesmo que em intensidade atenuada, pois a prova produzida passará pelo crivo valorativo do juiz no processo de formação de seu convencimento a respeito da matéria fática. Indiscutível, aliás, a natureza subjetiva do convencimento do magistrado.

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