• Nenhum resultado encontrado

2. PERSPECTIVAS NATURALISTAS

2.1. Naturalismo na Modernidade

Sabemos que Nietzsche leu A essência do cristianismo, de Feuerbach, em 1861- 1862; a obra de Feuerbach inaugura o materialismo alemão no final dos anos 1830. A sua obra se tornou conhecida culturalmente em 1850, influenciando uma abordagem fisiológica como base do conhecimento a respeito do ser humano e como base da integração do ser humano com a natureza73. Nietzsche leu O mundo como vontade e

representação, de Schopenhauer, em 1865; História do materialismo, de Lange, em 1866

(realizando diversas anotações no capítulo a respeito da obra Força e matéria (1855), de Büchner, considerada a obra magna do materialismo); Filosofia do Inconsciente, de Eduard Von Hartmann, em 1869; A natureza dos cometas, de Zöllner, em 1872 e

Problemas biológicos, de Rolph, em 1884-1885.

Além disso, sabemos que existiam na biblioteca particular de Nietzsche as seguintes obras: A variação das plantas e dos animais domesticados (1868) e A expressão

das emoções no homem e nos animais (1872) de Charles Darwin; Origem e conceito da História Natural (1865) de Carl Naegeli; Teoria da descendência e darwinismo (1873) de

Oskar Schmidt; A luta das partes no organismo (1881) de Wilhelm Roux74. No entanto, é

importante insistir que a relação de Nietzsche com as ciências naturais é analisada de forma mais ampla ao perceber a sua forma de escrever filosofia em consonância com alguns resultados ou convicções da ciência moderna, mas não propriamente com os métodos da pesquisa científica75, e sem desconsiderar o aprendizado do rigor que a

pesquisa científica pode oportunizar.

73 LEITER, Brian. Nietzsche on Morality. London; New York: Routledge, 2002; LOPES, Rogério. A

ambicionada assimilação do materialismo: Nietzsche e o debate naturalista na filosofia alemã da segunda metade do século X)X . In: Cadernos Nietzsche 29, p. 309-352, 2011; LOPES, Rafael Werner. Antropologia e

Moral em L. Feuerbach. Porto Alegre: Phi, 2014.

74 BROBJER, Thomas. Nietzsche s philosophical context: an intellectual biography. Illinois: University of

Illinois Press, 2008, p. 23-50.

75 HEIT, Helmut. "Perspectivas naturalizantes de Nietzsche em Além do bem e do mal". Accepted for

A reconstrução do contexto histórico em que Nietzsche se formou é necessária para recolocar os argumentos nietzschianos no contexto da história efetiva do pensador, conhecendo seus principais interlocutores, e esperando que dessa análise resulte a percepção de características extemporâneas em sua filosofia. A partir da publicação de

História do materialismo76 de Lange, a filosofia alemã nas décadas de sessenta e setenta do século XIX foi dominada por inclinações materialistas77. Durante essas décadas, Hans

Vaihinger narra que na filosofia alemã se acreditava ser necessário o afastamento de especulações estéreis e querelas escolásticas para retornar ao campo das ciências positivas. Nenhum filósofo que não tenha sido ungido com uma gota de óleo do materialismo será erguido ao trono 78. Nietzsche pode ser interpretado como um

filósofo em acordo com essa proposição, como ele afirma:

[...] eu considero o autoespelhamento do espírito como um ponto de partida estéril e não acredito em nenhuma investigação séria que não tome o corpo como fio condutor. Não uma filosofia como dogma, mas como um regulativo provisório da investigação (NF/FP 26[432] 1884).

Para Nietzsche, a formação na disciplina da pesquisa é essencial para o surgimento de uma cultura científica. Nesse sentido, a principal contribuição do materialismo de Lange para Nietzsche é metodológica sem ser metódica, ensinando os valores positivos do rigor da pesquisa nas ciências naturais, mas sem defender a exclusividade da aquisição do método científico, estendendo-o a todos os tipos de pesquisa. Da mesma forma, uma das principais influências acerca da epistemologia para Nietzsche é Afrikan Spir79.

No interior de uma investigação metafísica, Spir80 afirma que todos aqueles que

se comprometem com a interpretação a respeito de um devir absoluto como característica principal da realidade devem estar conscientes que isso significa abandonar a possibilidade da inteligibilidade do real. Segundo Rogério Lopes, Nietzsche

76 1° edição em 1866 e 2° edição revista e ampliada em 1873-1875.

77 LOPES, Rogério. A ambicionada assimilação do materialismo: Nietzsche e o debate naturalista na

filosofia alemã da segunda metade do século X)X . In: Cadernos Nietzsche 29, p. 309-352, 2011, p. 319.

78 VAIHINGER, Hans. Hartmann, Dühring und Lange: Zur Geschichte der Deutschen Philosophie im XIX. Jahr- hundert. Ein kritischer Essay. Iserlohn: Baedeker, 1876, p. 2 apud LOPES, Rogério. A ambicionada

assimilação do materialismo: Nietzsche e o debate naturalista na filosofia alemã da segunda metade do século X)X . )n: Cadernos Nietzsche 29, p. 309-352, 2011, p. 319.

79 BROBJER, Thomas. Nietzsche s philosophical context: an intellectual biography. Illinois: University of

Illinois Press, 2008, p. 58-59

80 SPIR, Afrikan. Denken und Wirklichkeit. Versuch einer Erneuerung der kritischen Philosophie. I & II.

mantém a concordância com a tese de Spir81 a respeito das implicações normativas dos

conceitos epistêmicos, no entanto, como opta pela crença em um devir absoluto, se afasta da perspectiva transcendental acerca da realidade e procura desenvolver uma hipótese naturalista e pragmática em relação aos elementos de nossa vida mental, por exemplo, a crença no mundo exterior e a liberdade da vontade82.

Nessa abordagem de Nietzsche não estão incluídos os conceitos epistemicamente normativos, como objetividade, verdade, justificação racional, pois se esses conceitos participassem da formação de nossas crenças básicas, tanto por percepção como por inferência, apresentariam critérios elevados de fundamentação que produziriam efeitos prejudiciais para os seres humanos (FW/GC §110). Elementos como a linguagem, a lógica, a matemática, as quais juntas fornecem as possibilidades necessárias para que ocorra a assimilação teórica da realidade, são apresentadas por Nietzsche como um sistema de ficções (MAI/HDH I §11 e §18), as quais têm sua eficácia histórica e psicológica repousando na ignorância de seu estatuto ficcional por parte de seus agentes cognitivos; essa ignorância está enraizada em funções orgânicas básicas83.

Nietzsche evita qualquer tipo de normatividade epistemológica definitiva, por esse motivo, ele também evita a normatividade da epistemologia evolutiva. No entanto, não existe a certeza de que Nietzsche tenha lido e estudado as obras principais de Charles Darwin, A origem das Espécies (1859) e A descendência do homem (1871), mesmo que o filósofo faça diversas referências às teorias do naturalista em seus escritos84. Thomas Brobjer85 enfatiza que entre os anos de 1871 e 1872, Nietzsche

81 A tese transcendental de Spir, segundo a qual a certeza originária de que existem casos idênticos na

natureza está racionalmente fundada na lei lógica do sujeito transcendental e de que apenas a sua admissão torna a ciência possível (no sentido de epistemicamente fundada) é transformada por Nietzsche em uma hipótese genealógica acerca das condições fisiológicas, psicológicas, e históricas do surgimento da ciência LOPES, Rogério. A ambicionada assimilação do materialismo: Nietzsche e o debate naturalista na filosofia alemã da segunda metade do século X)X . )n: Cadernos Nietzsche , p. -352, 2011, p. 330 e p. 326-327).

82 LOPES, Rogério. A ambicionada assimilação do materialismo: Nietzsche e o debate naturalista na

filosofia alemã da segunda metade do século X)X . )n: Cadernos Nietzsche , p. -352, 2011, p. 326- 330.

83 Ibid., p. 330.

84 Referências a Charles Darwin na obra de Nietzsche: textos publicados: David Strauss: o devoto e o escritor, §7, 8 e 9; A gaia ciência, §357; Além de bem e mal, §253; Genealogia da moral, Prefácio §7; e Crepúsculo dos ídolos, Incursões de um extemporâneo § Anti-Darwin ; Fragmentos póstumos: NF/FP,

inverno de 1871 – outono de 1872, 8 [119]; NF/FP, outono de 1880, 6 [184]; NF/FP, inverno de 1880-81, 8 [4]; NF/FP, primavera de 1880 – primavera de 1881, 10 [D88]; NF/FP, primavera – outono 1881, 11 [177]; NF/FP, inverno de 1883 -1884, 24 [25]; NF/FP, primavera de 1884, 25 [85]; NF/FP, primavera de 1884, 28 [45] e [46]; NF/FP, outono de 1884, 34 [73]; NF/FP, abril-junho de 1885, 7 [25]; NF/FP, fim de 1886 – primavera de Contra o darwinismo ; NF/FP, início de , [ ]; NF/FP, primavera de , [ ] Anti-Darwin e [ ] Anti-Darwin ; além disso, uma busca nas obras completas KSA

provavelmente leu O homem e o mundo, de Christian Radenhausen (1° edição de 1863 e 2° edição em 1870-1871). Nesse livro, o autor procura apresentar uma ampla história cultural do mundo baseada nas ciências naturais, especialmente no darwinismo e na filosofia schopenhaueriana, a partir de uma abordagem histórica. O homem e o mundo, de Christian Radenhausen, é uma obra composta por quatro volumes massivos. Os dois primeiros volumes tratam principalmente da religião e da ética a partir de uma perspectiva naturalista e histórica, e os dois últimos volumes abordam questões relativas às ciências naturais, vida social e filosofia.

Em 1881, Nietzsche leu uma longa discussão crítica e revisão da obra Darwinismo

e Filosofia, de Gustav Teichmüller, professor de filosofia em Basel, na revista Zusammenhang der Dinge (1881). Primeiramente em 1869, e novamente em 1870, 1873,

1874, 1887 e 1888, Nietzsche leu a obra intitulada Filosofia do Inconsciente (1869) de Eduard von Hartmann, uma discussão crítica das partes filosóficas e naturais da filosofia do inconsciente a partir da perspectiva das ciências naturais , o qual pretendia construir uma visão de mundo sistemática inspirado nas filosofias de Hegel, Kant e Schopenhauer.

Ainda leu os livros de Hartmann intitulados A verdade e o erro no darwinismo (1875) e Fenomenologia da consciência moral (1879). Hartmann demonstrou nos seus trabalhos um interesse sério pelo darwinismo e pode ter sido uma das primeiras fontes de Nietzsche para informação e crítica a respeito do assunto. A tese principal de Hartmann consiste na aceitação parcial das teorias de Darwin, ou seja, aceita a teoria da descendência e procura integrá-la em sua filosofia, porém rejeita o princípio de seleção natural, tanto por razões técnicas quanto por razões filosóficas. Nietzsche acreditava que a hipótese da seleção natural é boa e pode existir, no entanto, essa hipótese está muito distante de ser suficiente para explicar a força da evolução86.

de Nietzsche apresenta ainda quatro trechos de textos publicados e 23 fragmentos póstumos nos quais Nietzsche escreve os termos Darwinismus (darwinismo), Darwinisch (darwiniano), Darwinist (darwinista) e Darwinistisch ou darwinistisch (darwinista, substantivo ou adjetivo).

85 BROBJER, Thomas. Nietzsche s philosophical context: an intellectual biography. Illinois: University of

Illinois Press, 2008, p. 39.