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Sobre a interpretação da natureza : contribuições e limites do naturalismo para o problema da moral na filosofia de Nietzsche

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Academic year: 2017

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

FELIPE SZYSZKA KARASEK

SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA: CONTRIBUIÇÕES E LIMITES DO NATURALISMO PARA O PROBLEMA DA MORAL NA FILOSOFIA DE NIETZSCHE

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FELIPE SZYSZKA KARASEK

SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA: CONTRIBUIÇÕES E LIMITES DO NATURALISMO PARA O PROBLEMA DA MORAL NA FILOSOFIA DE NIETZSCHE

Tese apresentada como requisito para a obtenção do grau de Doutor em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS / CAPES.

Orientador: Dr. Nythamar H. F. de Oliveira Jr.

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FELIPE SZYSZKA KARASEK

SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA: CONTRIBUIÇÕES E LIMITES DO NATURALISMO PARA O PROBLEMA DA MORAL NA FILOSOFIA DE NIETZSCHE

Tese apresentada como requisito para a obtenção do grau de Doutor em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio

Grande do Sul PUCRS / CAPES.

Aprovada em:______de_______________________________de_________.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________________________ Prof. Dr. Nythamar H. F. de Oliveira Jr. (Orientador) - PUCRS

________________________________________________________________ Prof. Dr. Ronel Alberti da Rosa - PUCRS

________________________________________________________________ Prof. Dr. Norman Madarasz - PUCRS

________________________________________________________________ Prof. Dr. Clademir Araldi - UFPEL

________________________________________________________________ Prof. Dr. Oswaldo Giacóia Júnior - UNICAMP

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O objetivo deste estudo é analisar o debate contemporâneo que propõe a relação do pensamento de Friedrich Nietzsche com o naturalismo filosófico. A partir dessa análise, procuro demonstrar que o pensamento de Nietzsche não pode ser relacionado com nenhum tipo de proposta naturalista fechada. Para atingir esse objetivo, analiso os seguintes argumentos: (i) o debate atual a respeito do naturalismo em Nietzsche tende a valorizar uma tipologia e se afasta do significado de filosofia proposto por ele; (ii) não é possível relacionar o pensamento de Nietzsche a um tipo de naturalismo fechado, mas é possível encontrar perspectivas naturalistas em sua filosofia; (iii) Nietzsche só pode ser considerado um filósofo naturalista se a sua filosofia representar um novo tipo de abordagem, diferente das categorias naturalistas que existem na filosofia contemporânea; (iv) suas perspectivas naturalistas estão relacionadas com uma noção de natureza distante do conceito de natureza proposto pelo naturalismo contemporâneo; (v) o problema da moral em Nietzsche está conectado com o seu projeto de transvaloração dos valores, o qual está sustentado pela sua noção de natureza; (vi) o problema da moral em Nietzsche pretende apreender o elemento trágico em sua constituição.

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This doctoral dissertation addresses the analysis of the contemporary debate that puts forward the relation between Friedrich Nietzsche s thought and philosophical naturalism. From this analysis, I argue that Nietzsche's thought cannot be related, prima facie, to any preconceived type of naturalist proposal. To achieve this goal, I analyze the following arguments: (i) the current debate about naturalism in Nietzsche tends to value a typology and wards off the meaning of philosophy proposed by him; (ii) it is not possible to relate Nietzsche's thought to any kind of preconceived concept of naturalism, though one can find naturalistic perspectives in his philosophy; (iii) Nietzsche can only be considered a naturalistic philosopher insofar as his philosophy is to represent a new approach away from the naturalistic categories that can be found in contemporary philosophy; (iv) his naturalistic perspectives are related to a notion of nature remote from the concept of nature proposed by contemporary naturalism; (v) the problem of morality in Nietzsche is related to his project of a transvaluation of values which is upheld by his notion of nature; (vi) the problem of morality in Nietzsche intends to seize the tragic element in its constitution.

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Adotam-se aqui as abreviaturas convencionadas pelo periódico brasileiro Cadernos Nietzsche, segundo as quais indicaremos as obras de Nietzsche (com adaptações).

Textos editados pelo próprio Nietzsche:

GT/NT - Die Geburt der Tragödie (O nascimento da tragédia).

DS/Co. Ext. I - Unzeitgemässe Betrachtungen. Erstes Stück: David Strauss: Der Bekenner und der Schriftsteller (Considerações extemporâneas I: David Strauss, o devoto e o escritor).

HL/Co. Ext. II - Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück: Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben (Considerações extemporâneas II: Da utilidade e desvantagem da história para a vida).

SE/Co. Ext. III - Unzeitgemässe Betrachtungen. Drittes Stück: Schopenhauer als Erzieher (Considerações extemporâneas III: Schopenhauer como educador).

WB/Co. Ext. IV - Unzeitgemässe Betrachtungen. Viertes Stück: Richard Wagner in Bayreuth (Considerações extemporâneas IV: Richard Wagner em Bayreuth).

MA I/HH I - Menschliches allzumenschliches (vol. 1) (Humano, demasiado humano (vol. 1)).

MA II/HH II - Menschliches allzumenschliches (vol. 2) (Humano, demasiado humano (vol. 2)).

VM/OS - Menschliches allzumenschliches (vol. 2): Vermischte Meinungen (Humano, demasiado humano (vol. 2): Miscelânea de opiniões e sentenças).

WS/AS - Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Der Wanderer und sein Schatten (Humano, demasiado humano (vol. 2): O andarilho e sua sombra).

M/A - Morgenröte (Aurora).

IM/IM - Idyllen aus Messina (Idílios de Messina).

FW/GC - Die fröhliche Wissenschaft (A gaia Ciência).

Za/ZA - Also sprach Zarathustra (Assim falava Zaratustra).

JGB/BM - Jenseits von Gut und Böse (Para além de bem e mal).

GM/GM - Zur Genealogie der Moral (Genealogia da Moral).

WA/CW - Der Fall Wagner (O caso Wagner).

GD/CI - Götzen-Dämmerung (Crepúsculo dos Ídolos).

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AC/AC - Der Antichrist (O anticristo).

EH/EH - Ecce homo.

DD/DD - Dionysos-Dithyramben (Ditirambos de Dioniso).

Siglas dos escritos inéditos inacabados:

GMD/DM - Das griechische Musikdrama (O drama musical grego).

ST/ST - Socrates und die Tragödie (Sócrates e a Tragédia).

DW/VD - Die dionysische Weltanschauung (A visão dionisíaca do mundo).

GG/NP - Die Geburt des tragischen Gedankens (O nascimento do pensamento trágico).

BA/EE - Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten (Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino).

CV/CP - Fünf Vorreden zu fünf ungeshriebenen Büchern (Cinco prefácios a cinco livros não escritos).

PHG/FT - Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofia na época trágica dos gregos).

WL/VM - Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e mentira no sentido extramoral).

Sigla dos fragmentos póstumos:

NF/FP

Edições:

KGB = Briefwechsel: Kritische Gesamtausgabe.

KGW = Werke: Kritische Gesamtausgabe.

KSA = Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe.

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS ... 10

1. NATURALISMO FILOSÓFICO ... 13

1.1. Subdivisões e Variações ... 14

1.2. Naturalismo Filosófico e a Filosofia de Friedrich Nietzsche ... 22

2. PERSPECTIVAS NATURALISTAS ... 35

2.1. Naturalismo na Modernidade ... 39

2.2. Vontade de Poder: uma interrogação ... 43

2.3. Naturalismo Liberal ... 53

2.4. Naturalismo e Normatividade ... 57

2.5. Genealogia, Sentido e Valor ... 59

2.6. Genealogia e História Efetiva ... 63

2.7. Normatividade Moral ... 73

3. SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA ... 84

3.1. Consciência e Linguagem ... 94

3.2. Psicologia ... 102

3.3. Organismo ... 116

3.4. Cultura e Política ... 119

3.5. Estado ... 127

3.6. Notas acerca da Grande Política como crítica ... 131

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 136

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Atualmente, a relação do pensamento de Nietzsche com o naturalismo filosófico é um dos principais debates nos círculos de estudos da filosofia nietzschiana, os quais investigam as implicações, as contribuições e os limites que essa relação pode trazer para a interpretação das temáticas desenvolvidas por Friedrich Nietzsche1. Nesses

estudos, o principal problema não é a associação da filosofia nietzschiana com o naturalismo filosófico, mas conseguir contemplar em uma abordagem naturalista as análises de Nietzsche relativas à natureza, à cultura, à moral e às outras temáticas, as quais parecem, na maioria das vezes, distantes de abordagens naturalistas.

Nesse sentido, é necessário investigar os diferentes significados de naturalismo filosófico, e ponderar se essa associação é uma necessidade hermenêutica que contribui para o entendimento da filosofia nietzschiana ou se evidencia uma necessidade da própria filosofia contemporânea2. A partir disso, analisarei a filosofia nietzschiana e o

1 Consideramos as seguintes publicações: SCHACHT, Richard. Nietzsche. London; Boston: Routledge, 1983;

LEITER, Brian. Nietzsche on Morality. London: Routledge, 2002; JANAWAY, Christopher. Beyond Selflessness. Reading Nietzsche s Genealogy. Oxford: Oxford University Press, 2007; CLARK, Maudemarie; DUDRICK, David. The soul of Nietzsches Beyond Good and Evil. Cambridge: Cambridge University Press, ; SC(AC(T, Richard. Nietzsche s naturalism and normativity , in: JANAWAY, Christopher. ed. ; ROBERTSON, Simon. (ed.). Nietzsche naturalism and normativity. New York: Oxford University Press, 2012; ABEL, G“nter. Bewusstein – Sprache – Natur. Nietzsches Philosophie des Geistes . )n: Nietzsche Studien 30, p. 1-43, 2001; HEIT, Helmut; ABEL, Günter; BRUSOTTI, Marco. Nietzsches Wissenschaftsphilosophie. Hintergründe, Wirkungen und Aktualität. Berlin; New York: de Gruyter, 2012; HEIT, Helmut; HELLER, Lisa. Handbuch Nietzsche und die Wissenschaften. Natur-, Geistes-, und Sozialwissenschaftliche Kontexte. Berlin; Boston: de Gruyter, ; dentre outros. A publicação Cadernos Nietzsche dedicou a edição n. para a discussão a respeito do naturalismo em Nietzsche; além disso, podemos encontrar artigos publicados a respeito do debate nas revistas Estudos Nietzsche PUCPR , Revista Trágica PPGF-UFRJ). Da mesma forma, encontramos publicações isoladas em outras revistas acadêmicas brasileiras a respeito da temática, além de livros publicados que consideram algum tipo de relação da filosofia nietzschiana com o naturalismo. Durante o desenvolvimento desta pesquisa irei analisar alguns desses estudos.

2 Para Rogério Lopes (2011, p. 311-312), "esta guinada naturalista da filosofia contemporânea,

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problema da moral em Nietzsche à luz de algumas perspectivas que demonstrem as contribuições e os limites da associação entre naturalismo filosófico e a questão da moral.

Assim, esta tese possui os seguintes objetivos:

(i) Analisar o debate contemporâneo acerca do naturalismo em Nietzsche, com o interesse de demonstrar que nenhum modelo fechado de naturalismo consegue representar de forma adequada o pensamento nietzschiano. Além disso, pretendo demonstrar que o debate atual a respeito do tipo de naturalismo nietzschiano tende a valorizar uma tipologia e se afasta do significado de filosofia pretendido pelo filósofo. Como alternativa, apresentarei a possibilidade aberta de pensar a filosofia de Nietzsche com diferentes perspectivas naturalistas;

(ii) Demonstrar que as perspectivas naturalistas na filosofia nietzschiana são relacionadas ao significado de natureza proposto por Nietzsche. Nesse contexto, a noção de natureza deve ser interpretada a partir da sua relação com a consciência, com a linguagem e com a psicologia. A partir dessa relação, sugiro a conexão da natureza com a cultura (política), algo que pode ser percebido principalmente nas análises da filosofia do jovem Nietzsche, e que contribui para o entendimento do problema da moral no contexto de seu pensamento.

Ao concluir esta tese, espero ter demonstrado que: (a) o debate atual a respeito do naturalismo em Nietzsche tende a valorizar uma tipologia e se afasta do significado de filosofia proposto por ele; (b) não é possível relacionar o pensamento de Nietzsche a um tipo de naturalismo fechado, mas é possível encontrar perspectivas naturalistas em sua filosofia; (c) Nietzsche só pode ser considerado um filósofo naturalista se a sua filosofia representar um novo tipo de abordagem, diferente das categorias naturalistas que existem na filosofia contemporânea; (d) suas perspectivas naturalistas estão relacionadas com uma noção de natureza distante do conceito de natureza proposto

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pelo naturalismo contemporâneo; (e) o problema da moral em Nietzsche está conectado com o seu projeto de transvaloração dos valores, o qual está sustentado pela sua noção de natureza; (f) o problema da moral em Nietzsche pretende apreender o elemento trágico em sua constituição3.

3 Esta pesquisa não segue uma orientação cronológica de consulta das publicações e dos textos de

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1. NATURALISMO FILOSÓFICO

Uma posição filosófica naturalista básica aproxima o pensamento filosófico dos resultados obtidos pelo método científico, aliando os resultados da filosofia aos resultados da investigação científica, refutando perspectivas filosóficas que representam uma contradição em termos científicos4. Além disso, uma posição naturalista acredita

que a realidade possui sua referência naquilo que é o natural. Nessa perspectiva, não existe nada de sobrenatural na realidade e o método científico é capaz de investigar todas as dimensões do real, inclusive aquilo que denominamos de espírito humano5. No

entanto, o naturalismo filosófico não tem uma definição exata, e dependemos da particularidade com que cada autor utiliza esse termo no seu contexto filosófico para nos aproximarmos de uma definição6.

Para Jack Ritchie, slogans naturalistas como a filosofia é contínua com as ciências naturais e não existe filosofia primeira não explicam muita coisa. Nesse caso, diante da multiplicidade de afirmações contraditórias que se denominam naturalistas, o principal desafio é conseguir transformar o termo naturalismo em algo significante para a filosofia. Essa afirmação não precisa parecer exagerada, como se não existisse nada em comum entre posições naturalistas. Algumas semelhanças são evidentes: (i) uma admiração pelas ciências naturais e por suas realizações (Física, Química, Biologia); (ii) uma desconfiança a respeito de como as investigações filosóficas estão sendo conduzidas; (iii) uma posição mista, a qual não entende como impossível uma filosofia primeira e, ao mesmo tempo, suspeita dos métodos de investigação da filosofia e demonstra uma admiração pelas ciências naturais (por exemplo: Descartes e o ceticismo

4 A falta de definição de conceitos importantes nesse parágrafo, como método científico , investigação

científica , termos científicos , natural e até mesmo ciência demonstram a complexidade do problema. No decorrer desse estudo, irei evidenciar a necessidade de definição conceitual, contextualização e de especificidade terminológica ao propor qualquer forma de naturalismo filosófico.

5 KRIKORIAN, Yervant. Naturalism and the Human Spirit. New York: Columbia University Press, 1944. 6 Esse significado de naturalismo se origina, principalmente, nas teorias filosóficas da primeira metade do

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metódico; Kant e as condições de possibilidade da experiência). Todavia, nas posições de Descartes e de Kant, parece ser possível perceber a intenção de produzir um novo tipo de filosofia que fundamentasse as ciências naturais. Na filosofia contemporânea, ocorre uma inversão: devemos iniciar o pensamento pela nossa ciência natural mais desenvolvida (acerca do método e das verdades produzidas) e construir a filosofia a partir desse ponto inicial7.

O problema em relação a essa inversão é que não existe nenhum argumento filosófico consistente que justifique os motivos pelos quais se deveria fazer esse movimento de naturalização da filosofia. Nenhum argumento pode garantir que as novas abordagens filosóficas decorrentes dessa naturalização serão satisfatórias. Uma posição naturalista amparada por essa solicitação só consegue apresentar motivações. Nesse sentido, ainda devemos lembrar que as motivações de Descartes e Kant, ao afirmarem uma atitude positiva em relação às ciências naturais, pretenderam reconhecer as falhas de abordagem da filosofia primeira. Além disso, é necessário questionar o quanto a adoção de uma posição naturalista consegue direcionar a uma filosofia interessante e o quanto consegue ser uma posição filosófica consistente8.

Como a análise desses problemas conduziria para uma consideração dos principais argumentos naturalistas para as questões em epistemologia, metafísica, filosofia da ciência, filosofia da mente, filosofia da linguagem, moral, entre outras, necessitamos escolher uma via metodológica. Assim, irei esboçar uma conceituação abrangente das principais divisões do naturalismo filosófico na filosofia do século XX e XXI, para, a partir disso, apresentar como a filosofia de Nietzsche foi relacionada a algumas dessas posições.

1.1. Subdivisões e variações

A principal distinção do naturalismo ocorre entre naturalismo metodológico e naturalismo metafísico. Para os naturalistas metodológicos, os métodos das ciências naturais devem, tanto quanto for possível, ser adotados pelos filósofos. Em contrapartida, os naturalistas metafísicos não iniciam com o problema do método. Iniciam com uma perspectiva acerca de como o mundo é, para, em seguida, afirmar que

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essa visão de mundo foi escolhida porque derivou da melhor ciência existente. O naturalismo metodológico e o naturalismo metafísico ainda têm subdivisões importantes e que devem ser compreendidas.

Para Jack Ritchie, o naturalismo metodológico pode ser divido em naturalismo metodológico construtivo (N-Met. construtivo) e naturalismo metodológico deflacionário (N-Met. deflacionário). Os N-Met. construtivos utilizam os métodos científicos em metafísica, ou seja, acreditam que o método da inferência da melhor explicação pode ser utilizado para justificar a crença no realismo científico, nos números, nos mundos possíveis e nos universais. Os N-Met. deflacionários pretendem analisar os principais problemas ontológicos adotando os mesmos métodos das ciências naturais e das matemáticas; criticam os N-Met. construtivos por não conseguirem se orientar pelos padrões da ciência da realidade natural (distante dos problemas metafísicos clássicos)9.

O naturalismo metafísico se divide em naturalismo fisicalista e naturalismo não fisicalista. O naturalismo fisicalista ainda pode ser fisicalismo a priori e fiscalismo a posteriori. Para o NM fisicalista a priori, existe uma conexão conceitual entre o vocabulário físico e o não físico, ou seja, pretende demonstrar como afirmações acerca da mente, da moral, etc., decorrem de verdades físicas por uma questão de necessidade conceitual. Para o NM fisicalista a posteriori, a conexão entre o físico e o não físico é natural, não é conceitual. Os NM não fisicalistas defendem que a consciência não é física. Afirmam que não existe nenhuma razão empírica consistente para sustentar que a física, entendida como a nossa melhor ciência , é causalmente completa10.

Conhecidas as subdivisões, podemos perceber alguns limites e algumas contribuições do naturalismo. Os N-Met. construtivos fornecem uma estratégia ampla para a construção de argumentos a favor ou contra a existência de diversas entidades. Os NM fisicalistas demonstram, a partir de uma proposta conceitual e de uma proposta natural, a existência de conexões entre o físico e o não físico. No entanto, os argumentos dessas subdivisões estão sustentados por uma noção adequada de ciência, um modelo de melhor ciência existente, o qual não consegue ter os seus critérios de justificação

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suficientemente explicados. Diante disso, o N-Met. deflacionário parece ter as melhores contribuições11.

Os principais objetivos do N-Met. deflacionário incluem: (i) a tentativa de demonstrar quais são os padrões de compromisso ontológico que efetivamente são utilizados nas ciências naturais; (ii) a proposta de executar qualquer projeto filosófico em consonância com uma investigação detalhada das ciências naturais; (iii) investigar as relações entre as diferentes ciências, considerando questões a respeito da redução e da unificação científica.

O objetivo (iii) implica na análise do argumento reducionista e na questão do relacionamento entre as ciências. Se o argumento reducionista estiver correto, todas as ciências se reduzirão à física (em favor do fisicalismo). Além disso, considerando o relacionamento entre as ciências, podemos afirmar que diferentes ciências incorporam diferentes paradigmas. Nesse caso, considerando que diferentes paradigmas são incomensuráveis, então não podem ser significativamente comparados. Entretanto, as definições apresentadas para essas duas questões são exageradas.

Para Jack Ritchie, as coisas não são nem tão ordenadas (reducionismo) nem tão incoerentes (relacionamento entre as ciências). Diferentes ciências interagem mesmo quando não se enquadram em nenhum modelo comum (por exemplo, nas investigações interdisciplinares). Se elas interagem com sucesso, significa que não pretendem reduzir uma ciência à outra e seus paradigmas não são incomensuráveis. E essa conclusão é importante para uma investigação com base naturalista. Significa afirmar que a busca de explicações para essa interação e as explicações para seu sucesso (quando ele ocorre), pode evidenciar a forma como cada ciência percebe e analisa o seu objeto. E isso se torna um projeto filosófico interessante porque pode ajudar o naturalismo a se afirmar como uma posição filosófica consistente12.

Contudo, para o naturalismo se tornar consistente, ainda precisa transpor algumas dificuldades. Em primeiro lugar, se alguma forma de filosofia primeira for entendida como inconsistente, é necessário demonstrar que o naturalismo não enfrenta um problema parecido. Nesse caso, uma posição naturalista consistente deve apresentar fundamentações para seus argumentos, se afastando de exclusões e rejeições que não consideram todas as etapas de uma refutação. Da mesma forma, a consistência só pode

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ser alcançada após superar a dificuldade de considerar como sérios alguns problemas filosóficos fundamentais. Além disso, a priorização das ciências naturais em detrimento de outras ciências, e a dificuldade de reconhecer a importância do conhecimento e da investigação não científica, ignorando essas possibilidades sem uma razão fundamental, precisa ser repensada.

Diante dessas problematizações, Jack Ritchie afirma que a partir das principais publicações de Quine13, ocorreu uma mudança na forma de pensar as questões

filosóficas, bem como na forma de justificar o apreço pelas ciências naturais. O principal interesse de Quine é apontar um tipo de fracasso da filosofia na tentativa de responder os problemas relacionados com a filosofia primeira e de derrotar o argumento cético, por isso, a filosofia deve tentar um novo método, nesse caso, o naturalismo. Quine reconhece que as questões da filosofia são questões importantes, mas afirma que a clareza a respeito dos problemas filosóficos só pode acontecer a partir de uma aproximação das ciências naturais14.

Por quais motivos os naturalistas defendem com tanto vigor a necessidade de aproximar a filosofia das ciências naturais? Principalmente, porque acreditam que as ciências naturais se tornaram mais competentes do que a filosofia no desempenho da tarefa de descrever o mundo, de compreender como ele funciona e de descobrir os melhores métodos para realizar essa tarefa. Nesse sentido, significa afirmar que as ciências naturais superaram as indagações epistemológicas e metafísicas dos filósofos do passado. Se isso está correto, por que não abandonar a reflexão filosófica e entregar de vez às ciências naturais todos os problemas tradicionais a respeito do método, do conhecimento e da natureza do mundo? Simplesmente, porque essa posição radical vai contra a definição básica de naturalismo, ou seja, pressupor uma relação necessária entre filosofia e ciências naturais para produzir conhecimento. É preciso reconhecer que os interesses da filosofia e das ciências naturais se cruzam em diversas áreas.

Mesmo diante das afirmações dos naturalistas mais radicais em defesa dos resultados atingidos pelas ciências naturais, uma posição naturalista filosófica não pode permitir que o interesse pelo método e pelos resultados das ciências naturais signifique uma exclusão de toda a tradição filosófica, de todos os seus métodos e de todos os seus

13 QU)NE, Willard Van Orman. Natural Kinds . )n: Ontological Relativity and Other Essays. New York:

Columbia University Press, 1969; QU)NE, Willard Van Orman. Two Dogmas of Empiricism . )n: From a Logical Point of View. Cambridge: Harvard University Press, 1953; QUINE, Willard Van Orman. The Web of Belief. New York: Random House, 1978.

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resultados. Por exemplo, as ciências naturais não conseguem dizer muito a respeito de como devemos viver e conduzir as nossas vidas e julgar as implicações por adotar certos valores morais. Assim, uma posição naturalista filosófica básica deve sustentar uma visão de ciência natural que não contradiz totalmente algumas posições filosóficas tradicionais, ao mesmo tempo em que sustenta uma posição filosófica que não contradiz totalmente o conhecimento científico15.

Diante das considerações analisadas, o naturalismo é uma posição consistente? Para Jack Ritchie, nenhuma posição naturalista radical conseguiu oferecer boas razões para substituir as respostas filosóficas de alguns problemas fundamentais, com exceção de algumas argumentações acerca do método, da epistemologia e da metafísica. Além disso, mesmo se acreditarmos que filosofia e ciência são a mesma coisa (afirmando que a filosofia é uma ciência), é relevante o esforço para compreender o significado de ciência para as ciências naturais e, nesse sentido, as posições naturalistas podem ajudar.

Se existe o interesse em modelar a filosofia nas ciências naturais, é preciso conhecer detalhadamente o que as ciências naturais fazem e como produzem o conhecimento, para, a partir disso, afirmar com certeza que a filosofia produzida está em consonância com a ciência natural que a modelou. Por fim, se existe um desejo de colocar a filosofia em contraste com as ciências naturais, parece ser necessário conhecer os mesmos elementos, para conseguir afirmar com certeza que a filosofia produzida é completamente dissonante da ciência natural em contraste.

A análise de Jack Ritchie esclarece o significado do naturalismo na filosofia contemporânea, bem como apresenta as subdivisões naturalistas fundamentais, demonstrando suas implicações, limites e contribuições para a filosofia. No entanto, para compreender a complexidade do naturalismo nos debates filosóficos contemporâneos, precisamos ainda compreender as posições de Jesse Prinz, Keith Ansell-Pearson e John Protevi, para, então, iniciar a análise de como a filosofia de Nietzsche foi relacionada com o naturalismo filosófico.

Os naturalistas filosóficos não discordam em relação à divisão do naturalismo em dois tipos principais, o naturalismo metodológico e o naturalismo metafísico. No entanto, em adição, outras subdivisões de naturalismo foram propostas. Jesse Prinz16

15Ibid., p. 286.

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considera que o naturalismo filosófico possui quatro subdivisões fundamentais: naturalismo metafísico (NM), naturalismo explicativo (NE), naturalismo metodológico (N-Met.) e naturalismo de transformação (NT).

O naturalismo metafísico (NM) pode ser compreendido em contraste com o sobrenaturalismo. Nessa perspectiva, o nosso mundo é limitado e postulado pelas leis das ciências naturais. Não pode existir nada que viole essas leis, e todas as entidades existentes devem, em algum sentido, ser compostas pelas entidades que nossas melhores teorias científicas exigem. Sustentado por uma concepção adequada de ciência, o naturalismo metafísico é uma tese metafísica porque trata da natureza fundamental da realidade, a qual deve ser explicada sem nenhum recurso sobrenatural.

Na perspectiva do naturalismo explicativo (NE), se tudo o que existe é composto de matéria natural e é limitado pela lei natural, então tudo o que não é descrito na linguagem de uma ciência natural deve ser descrito com os termos das ciências naturais. No entanto, isso não significa um reducionismo no sentido forte do termo. Reducionistas fortes afirmam que a relação entre as ciências naturais e os domínios de alto nível (estados mentais) são dedutíveis. Poderíamos ser capazes de deduzir eventos de alto nível dos seus substratos de baixo nível (estados físicos). Antirreducionistas negam isso porque acreditam que existem leis de alto nível que ocorrem sem relação com os domínios de baixo nível. O naturalismo explicativo (NE) pode ser antirreducionista, já que não precisa afirmar exclusivamente que as explicações de baixo nível são as únicas explicações (estados físicos). Nesse caso, o mais importante em uma posição antirreducionista é considerar que deve existir algum tipo de correspondência sistemática entre os níveis.

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Para Jesse Prinz, assim como outros métodos empíricos, a análise conceitual não é muito potente, já que atua através do acesso em primeira pessoa a estruturas psicológicas. A introspecção é propensa a erros e existem problemas metodológicos associados a tirar conclusões a partir de uma investigação que utiliza um único referencial (si mesmo). Além disso, também podemos investigar os conceitos utilizando as ferramentas das ciências sociais. Por exemplo, os conceitos podem ser formados a partir da experiência, então eles também podem ser revistos através da experiência. Eles não possuem nenhum estatuto especial quando desvelam fatos a respeito do mundo, assim, os conceitos representam um método natural de produção de verdades.

O naturalismo de transformação (NT) deriva dos estudos de Quine. Em 1953, Quine argumentou que todas as afirmações filosóficas estão sujeitas à revisão empírica. Na crítica à epistemologia realizada em 1969, Quine afirmou que a investigação do conhecimento pode ser feita utilizando os recursos das ciências sociais17. Além disso,

estamos sempre operando a partir do interior de nossas teorias a respeito do mundo. Ao fazermos revisões teóricas, não podemos sair de nossas teorias e adotar uma postura transcendental. Fazer isso seria supor que temos um caminho de pensamento acerca do mundo que é independente das nossas teorias acerca do mundo. Se as teorias do mundo abrangem todas as nossas crenças, então essa postura não é possível. Esse tipo de naturalismo é denominado por Jesse Prinz de naturalismo de transformação (NT) porque trata de uma perspectiva a partir da qual podemos mudar as nossas visões de mundo. No entanto, a respeito da epistemologia naturalizada de Quine, é importante considerar a análise de Jack Ritchie: [...] considero convincente o ataque de Quine à filosofia primeira, [...] mas considero decepcionantes as suas tentativas de naturalizar a filosofia . Para Jack Ritchie, a argumentação de Quine é meramente especulativa, inteiramente a priori , não demonstrando qualquer interesse nos estudos da psicologia moderna e da linguística18.

17QU)NE, Willard Van Orman. Two Dogmas of Empiricism . )n: From a Logical Point of View. Cambridge:

(arvard University Press, ; QU)NE, Willard Van Orman. Natural Kinds . )n: Ontological Relativity and Other Essays. New York: Columbia University Press, 1969; QUINE, Willard Van Orman. The Web of Belief. New York: Random House, 1978.

18 É importante evidenciar que Jack Ritchie está analisando as teses de Quine acerca da aquisição da

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Buscando uma introdução abrangente ao problema do naturalismo filosófico, ainda analisaremos uma última perspectiva. Keith Ansell-Pearson e John Protevi19

propõem uma diferenciação entre naturalismo metodológico (N-Met.) e naturalismo ontológico (NO)20, bem como apresentam as subdivisões de cada tipo de naturalismo

filosófico.

O naturalismo metodológico (N-Met.) pode ser dividido da seguinte maneira: (i) N-Met. Fraco: aceitamos a compatibilidade entre os métodos e os objetivos da filosofia com os métodos e objetivos das ciências naturais. Existe um aproveitamento das informações da ciência para a filosofia, no entanto, a filosofia mantém a sua especificidade e independência em relação às ciências naturais; (ii) N-Met. Forte: existe a continuidade dos resultados das ciências naturais para a filosofia. Nesse caso, a filosofia não possui independência em relação às ciências naturais; (iii) N-Met. muito forte: significa uma posição cientificista, considerando que apenas as ciências naturais produzem significados e resultados eficientes para a produção de crenças21.

O naturalismo ontológico (NO) pode ser dividido da seguinte maneira: (i) NO fraco: negamos a existência de entidades sobrenaturais, mas aceitamos que as explicações a respeito dos organismos não estão reduzidas ao plano físico, as instituições sociais não estão reduzidas ao fenômeno biológico e os estados mentais não são redutíveis ao campo neurológico; (ii) NO forte: aceitamos um fisicalismo não reducionista, admitindo que os estados vitais, sociais e mentais derivam dos estados físicos, mas possuem propriedades que não são completamente explicáveis por suas propriedades físicas de base. Assim, sustenta um dualismo de propriedades relacionado a uma substância monista; (iii) NO muito forte: aceitamos um fisicalismo reducionista, considerando que apenas entidades físicas existem, os estados vitais, mentais e sociais são compreendidos como estados físicos. Os processos orgânicos e inorgânicos podem ser explicados pelas leis da natureza pelas leis da Física, com a linguagem da Física. O naturalismo ontológico muito forte é uma posição eliminativista que dispensa as noções de propriedades vitais, mentais e sociais22.

19 PEARSON, Keith Ansell; PROTEVI, John. Naturalism in the continental tradition. Disponível em:

http://www.protevi.com/john/Naturalism-Aug-2014.pdf. Acesso em 08/09/2015, p. 1-2.

20 )rei manter a terminologia naturalismo ontológico porque é a forma utilizada pelos autores. No

entanto, o naturalismo ontológico pode ser compreendido em analogia ao naturalismo metafísico.

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As abordagens a respeito do naturalismo filosófico de Jack Ritchie, Jesse Prinz, Keith Ansell-Pearson e John Protevi se complementam. Com algumas diferenças terminológicas, os autores desenvolvem as subdivisões do naturalismo metodológico e do naturalismo metafísico, apresentando as implicações das perspectivas moderadas (as quais concedem uma autonomia maior à filosofia em relação às ciências naturais) e das perspectivas mais radicais (as quais se direcionam a um cientificismo, privilegiando as ciências naturais em detrimento da filosofia). A partir dessa apresentação abrangente, diferentes filósofos que se intitulam naturalistas apresentam seus argumentos para defender a posição específica que adotam. A partir desse ponto, o nosso objetivo se torna analisar como o pensamento de Nietzsche foi relacionado com o naturalismo e quais os argumentos que sustentam essa associação.

1.2. Naturalismo filosófico e a filosofia de Friedrich Nietzsche

Brian Leiter afirma que Nietzsche é um filósofo naturalista23. Assim, organiza a

sua interpretação do pensamento nietzschiano a partir de duas categorias naturalistas que ele denomina categoria metodológica ou naturalismo metodológico e categoria substantiva ou naturalismo substantivo (um tipo de naturalismo metafísico). Nietzsche é um naturalista metodológico por ter a convicção de que a pesquisa filosófica deve ser contínua às pesquisas nas ciências naturais, tanto em virtude de sua dependência dos resultados efetivos do método científico em diferentes domínios quanto em virtude do emprego e da imitação de modos especificamente científicos de ver e explicar as coisas. Além disso, o naturalismo substantivo caracterizaria a filosofia nietzschiana a partir da convicção de que as únicas coisas que existem são naturais24. Dessa forma, Brian Leiter

situa o naturalismo de Nietzsche não apenas entre as teorias especulativas da natureza humana que são informadas pelas ciências naturais, mas entre aquelas comprometidas com uma visão científica de como as coisas funcionam25.

23 LEITER, Brian. Nietzsche: on morality. London: Routledge, ; LE)TER, Brian. Nietzsche s naturalism

Reconsidered . University of Chicago, )n: Oxford Handbook of Nietzsche, 2009, n. 35.

24 LEITER, Brian. Nietzsche on morality. London: Routledge, 2002, p. 5.

25LE)TER, Brian. O naturalismo de Nietzsche reconsiderado . )n: Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 29,

(23)

Richard Schacht26 discorda da interpretação de Brian Leiter acerca da

continuidade da filosofia nietzschiana com as descobertas científicas afirmando que o pensamento filosófico de Nietzsche não pode ser associado a metodologias de causa e efeito e continuidade de resultados entre filosofia e ciências naturais. Pretendendo resgatar o pensamento de Nietzsche de um naturalismo cientificista, Richard Schacht afirma:

Para muitos de nós, que tanto nos empenhamos para que Nietzsche fosse levado a sério nos círculos da filosofia analítica como algo mais do que um mero proto-pós-estruturalista, não é pouco irônico que hoje, ao menos em alguns círculos, ele comece a ser levado a sério por ser seriamente mal entendido na direção contrária, e interpretado de forma cientificista sob a bandeira do

naturalismo 27.

Nesse sentido, Richard Schacht analisa de forma positiva a relação de Nietzsche com as ciências naturais, desde que essa relação não seja supervalorizada ou ultrapasse os limites para uma relação de subserviência da filosofia nietzschiana às ciências naturais ou ao método científico.

A partir da publicação de Humano, demasiado humano (1878), Nietzsche atribuiu grande importância à sofisticação do pensamento das ciências da natureza (física, química e biologia), mas também atribuiu a mesma importância às investigações das ciências históricas, culturais, linguísticas e psicológicas, assim como ressaltou a importância da relação dessas ciências com a investigação filosófica. Para Nietzsche, a relação da filosofia com as ciências em geral é necessária para a aprendizagem a respeito de nós mesmos e do mundo, além de ser uma característica do seu pensamento filosófico como um todo. Assim, o tipo de naturalismo filosófico nietzschiano pode ser entendido como instruído pelas diversas ciências, e não dependente ou subserviente às ciências naturais (ou a uma ciência específica)28.

O pensamento filosófico de Nietzsche pretende ser cientificamente informado e sofisticado, seu naturalismo filosófico respeita as ciências naturais e se instrui por elas, mas não se identifica totalmente e não extrai das perspectivas científicas todas as suas inspirações. O naturalismo nietzschiano está disposto a considerar a investigação

26SC(AC(T, Richard. O naturalismo de Nietzsche . In: Cadernos Nietzsche 29, p. 35-75, 2011; SCHACHT,

Richard. Nietzsche s naturalism and normativity , in: JANAWAY, Christopher. ed ; ROBERTSON, Simon. (ed.). Nietzsche naturalism and normativity. New York: Oxford University Press, 2012.

(24)

científica e o que pode ser entendido através dela, mas não supõe que tudo o que pode ser aprendido acerca da realidade humana e sobre o mundo no qual nos encontramos, com tudo o mais que isso abarca, dependem daquilo que as ciências da natureza são capazes de oferecer e dizer 29.

Richard Schacht afirma que Brian Leiter, na revisão de sua posição a respeito do naturalismo nietzschiano intitulada O naturalismo de Nietzsche reconsiderado30, admite

que algumas vezes Nietzsche se distancia de um projeto naturalista de explicação natural em modelos científicos e avança na direção de uma tarefa independente daquele que cria valores (tarefa que Brian Leiter considera inadequada31). No entanto, quando o

assunto diz respeito a como as coisas funcionam e do que ocorre na vida humana e no mundo, a visão global de Nietzsche seria uma visão científica. Nesse sentido, precisamos analisar as teses dos dois autores detalhadamente, para perceber as implicações resultantes de uma interpretação a partir da relação entre naturalismo e moral na filosofia nietzschiana.

Brian Leiter sugere que Nietzsche é um pensador naturalista bem sucedido, ou seja, ele se importa de fato em descobrir como os seres humanos realmente funcionam. Ainda afirma que um dos principais motivos pelo qual Nietzsche deve ser levado a sério pelos filósofos é porque ele parece ter entendido corretamente, em contornos amplos, diversos pontos acerca da psicologia moral humana. Brian Leiter exemplifica: (i) Nietzsche afirma que os fatos relativos ao tipo hereditário são determinantes da personalidade e dos comportamentos moralmente significantes, uma alegação bem fundamentada em vastas descobertas empíricas sobre genética comportamental; (ii) Nietzsche alega que a consciência é algo superficial e que a grande maioria dos pensamentos conscientes devem ser ainda atribuídos à atividade instintiva [inconsciente] (JGB/BM §3), teses amplamente corroboradas por recentes trabalhos de psicólogos sobre o papel do inconsciente32 e de filósofos que produziram meta-análises

sintéticas de trabalhos sobre a consciência na psicologia e na neurociência33; (iii)

Nietzsche afirma que os julgamentos morais são racionalizações post-hoc de

29Ibid., p.39.

30LE)TER, Brian. O naturalismo de Nietzsche reconsiderado . )n: Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 29,

2011, p. 91.

31SC(AC(T, Richard. O naturalismo de Nietzsche . In: Cadernos Nietzsche 29, p. 35-75, 2011, p. 41. 32 WILSON, Timothy. Strangers to Ourselves: discovering the adaptive unconscious. Cambridge: Harvard

University Press, 2002.

(25)

sentimentos que têm origem anterior, e que, portanto, não são resultado da reflexão racional ou da discursividade, uma conclusão em sintonia com descobertas do intuicionismo social em psicologia moral empírica de Jonathan Haidt34 e outros; (iv)

Nietzsche argumenta que o livre arbítrio é uma ilusão , que nossa experiência consciente de vontade é ela mesma um produto causal de forças inconscientes, uma posição defendida pelo psicólogo Daniel Wegner35, o qual sintetiza um amplo conjunto

de resultados empíricos36.

Para Brian Leiter, é determinante no pensamento acerca do naturalismo nietzschiano realizar a distinção entre aquilo que conta como confirmação de uma teoria e aquilo que pode ter levado um pensador como Nietzsche a perceber uma possível verdade acerca da psicologia moral humana. Afirma que a psicologia empírica desenvolveu métodos com os quais pode testar e comprovar hipóteses que não estavam disponíveis no século XIX, daí a particular visão especulativa de filósofos como Nietzsche. No entanto, isso não significa que Nietzsche não tenha evidências sobre as quais a sua psicologia moral especulativa possa se apoiar. Estas evidências parecem ser de três tipos básicos: (i) sua própria observação, tanto introspectiva quanto do comportamento alheio; (ii) as observações pessoais relatadas por outras pessoas, recolhidas ao longo do tempo em uma ampla variedade de textos históricos, literários e filosóficos, que por algum motivo tendiam a reiterar umas às outras (considere, por exemplo, o realismo acerca das motivações humanas, pormenorizadas por Tucídides na Antiguidade e pelos aforismos de La Rochefoucauld na modernidade, ambos os autores admirados por Nietzsche); (iii) suas leituras acerca dos desenvolvimentos científicos de

sua época, muitos dos quais  ainda que de forma amadora ou simplesmente errada

segundo os padrões atuais  representaram tentativas sistemáticas de aplicar os métodos científicos ao estudo dos seres humanos e que, em linhas gerais, vem sendo confirmada por subsequentes desenvolvimentos. Pelos parâmetros contemporâneos dos métodos das ciências humanas, não chegaríamos a considerar as intuições (insights) baseadas nessas evidências como bem confirmadas, mas isso certamente não quer dizer que não sejam adequadas37.

34 HAIDT, Jonathan. The Emotional Dog and )ts Rational Tail: a social intuitionist approach to moral

judgment . )n:Psychological Review 108, p. 814-834, 2001.

35 WEGNER, Daniel. The Illusion of Conscious Will. Cambridge: MIT Press, 2002.

36LE)TER, Brian. O naturalismo de Nietzsche reconsiderado . )n: Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 29,

2011, p. 119-120.

(26)

Em Beyond Selflessness38, Christopher Janaway afirma que o naturalismo

nietzschiano se fundamenta em um sentido amplo, ou seja, se fundamenta na negação da metafísica transcendente, seja a metafísica platônica, schopenhauriana ou a cristã, rejeitando as noções de imaterialidade da alma, vontade absolutamente livre sem controle ou divisão do mundo em dois. Ao invés disso, procuraria enfatizar o corpo humano pretendendo explicá-lo a partir da interpretação das pulsões e instintos, também dos afetos, na constituição de nossa existência física. Isso demonstraria a necessidade de recolocar o ser humano na natureza, para negar o risco de falsificar a história humana, a psicologia, os seus valores39.

Brian Leiter afirma que a tese de Christopher Janaway é um conceito adequado para algumas das afirmações de Nietzsche envolvendo uma intenção naturalista. Porém, enfatiza a necessidade de considerarmos outras hipóteses da interpretação do naturalismo nietzschiano, sugerindo que, subjacente à visão de Christopher Janaway e de acordo com os escritos nietzschianos, a investigação filosófica poderia estar em continuidade com a investigação empírica das ciências naturais40.

Interpretando Nietzsche a partir da possibilidade do filósofo ser um naturalista metodológico (M-Naturalist), Leiter considera que o naturalismo nietzschiano pode ser dividido em dois tipos. Nietzsche pode ser entendido como um naturalista metodológico especulativo (Speculative M-Naturalist), ou seja, assim como Hume, pretende construir teorias modeladas pelas ciências naturais, no entanto, os naturalismos de Hume e de Nietzsche possuem uma diferença específica. Hume modela a sua teoria a respeito da natureza humana a partir da ciência newtoniana, tentando identificar alguns princípios básicos que irão fornecer uma ampla explicação determinista do fenômeno humano, assim como a mecânica newtoniana fez pelos fenômenos físicos. Ainda assim, a teoria de Hume seria especulativa, já que suas afirmações acerca da natureza humana não são semelhantes e nem são confirmadas por uma metodologia científica, nem podem ser confirmadas por alguma teoria científica contemporânea de Hume41.

O naturalismo metodológico de Nietzsche se diferencia de Hume em alguns aspectos. Nietzsche parece ser cético em relação a qualquer tipo de determinismo,

38 JANAWAY, Christopher. Beyond Selflessness: Reading Nietzsche s Genealogy. Oxford: Oxford University

Press, 2007, cap. 3.

39Ibid., p. 34.

40 LEITER, Brian. O naturalismo de Nietzsche reconsiderado . )n: Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 29,

2011, p. 90.

(27)

baseado na afirmação de sua escolha não muito convincente , de que seria um cético a respeito de leis da natureza. Porém, assim como Hume, Nietzsche possui o interesse em explicar por que (como) os seres humanos agem, pensam, percebem e sentem, principalmente em relação à moral. Se o naturalismo metodológico especulativo de Nietzsche parece, em algumas passagens de sua obra, recorrer a causas deterministas, elas estão inseridas em uma psicologia especulativa, o que diferencia a abordagem nietzschiana da abordagem de Hume. Além disso, não só as teorias de Darwin influenciaram o pensamento de Nietzsche, como também o resultado dos pesquisadores materialistas alemães, e ainda as descobertas em fisiologia, as quais afirmavam que o ser humano não possui uma origem maior ou diferente do que o resto da natureza. A partir dessas constatações, Brian Leiter sugere em Nietzsche um naturalismo substancial, ou seja, a perspectiva que as únicas coisas que existem são naturais é uma consequência da continuidade de resultados entre filosofia e ciências naturais42.

Sabemos que Nietzsche estava interessado em ciências naturais, conhecia as obras dos materialistas alemães e as principais publicações científicas de sua época43. Da

mesma forma, a partir da pesquisa de Thomas Brobjer, percebemos que Nietzsche não só estudou Feuerbach, Büchner e Lange, mas também foi um leitor regular da principal revista que publicava artigos acerca do materialismo, intitulada Anregung für Kunst, Leben und Wissenschaft44. Ainda assim, Brian Leiter enfatiza que a sua interpretação a

respeito do naturalismo metodológico especulativo de Nietzsche não afirma radicalmente que os mecanismos explicativos das ações humanas estão apoiados pelos resultados científicos existentes, ou seja, Brian Leiter não afirma que apenas os resultados científicos explicariam por quais motivos os seres humanos agem e pensam da maneira como fazem. Para atingir uma compreensão apropriada a respeito da moral, é necessário considerar o recurso que Nietzsche faz dos mecanismos psicológicos.

42Ibid., p. 81-82.

43 BROBJER, Thomas. Nietzsche s philosophical context: an intellectual biography. Illinois: University of

Illinois Press, 2008; JANZ, Curt Paul cita um escrito do jovem Nietzsche: Kant, Schopenhauer, Lange –eu não preciso de mais nada eKGWB/BVN-1866, 526 —Brief AN Hermann Mushacke: November 1866). Nietzsche, em EH/EH, Porque sou tão inteligente, §2, afirma: […] A ignorância in physiologicis [em questões de fisiologia] o maldito idealismo  é a verdadeira fatalidade em minha vida, o estúpido e supérfluo nela, algo de que nada bom resultou, para o qual não há compensação ou contrapartida. Como consequência desse idealismo explico a mim mesmo todos os desacertos, todos os grandes desvios do instinto e modéstias exteriores à tarefa de minha vida, por exemplo, que me tornasse filólogo – por que não médico, ao menos, ou alguma outra coisa própria para abrir os olhos? .

(28)

Mecanismos simples poderiam dar origem a crenças e atitudes humanas. Nesse sentido, o ressentimento, por exemplo, poderia ter sido originado a partir de fatores históricos45.

Para Richard Schacht, Nietzsche não endossa nenhuma das duas doutrinas naturalistas de Brian Leiter, nem o naturalismo metodológico e nem o naturalismo substantivo. Nietzsche decerto supõe que tudo no mundo começou como algo meramente natural. Nietzsche parece supor que tudo a respeito da realidade humana veio a ser como é por meio de um processo cujo caráter é inteiramente mundano. No entanto, se tais convicções podem ser compreendidas como traços de seu naturalismo, elas não mostram nem implicam que Nietzsche seja um naturalista cientificista. Os métodos de Nietzsche são frequentemente descontínuos em relação àqueles da investigação científica empírica, ao invés de baseados ou modelados nela. Os fatos explicativos sobre o sujeito, mesmo que de alguma maneira se localizem na fisiologia e na psicologia, são essencialmente configurados pela cultura. E, além disso, se as explicações causais de Nietzsche sobre nossos valores morais são naturalistas, elas o são num sentido que inclui no natural não só a constituição fisiológica e psicológica do indivíduo cujos valores estão por explicar, mas também muitos fenômenos culturais complexos46.

Brian Leiter aceita que Nietzsche está interessado em cultura; ele insiste, porém, que isto não deveria nos levar a perder de vista o papel que as causas fisiológicas e psicológicas desempenham na explicação da moral que está sendo oferecida por ele. Com isso, ele segue sustentando que causação e explicação causal são centrais no naturalismo de Nietzsche, o que envolve, basicamente, a oferta de teorias que são fundamentalmente modeladas na ciência, em sentidos que buscam desvelar os determinantes causais desses fenômenos, típicos de diversos fatos fisiológicos e psicológicos sobre as pessoas47.

Segundo Richard Schacht, isso é uma má caracterização (ou má interpretação) do fato de que a explicação processual é central no naturalismo de Nietzsche. Explicação processual não é o mesmo que explicação causal. Precisamos nos afastar do paradigma científico naturalista e causal-determinista de Brian Leiter mais ainda do que Christopher Janaway o faz ao propor sua alternativa à posição de Brian Leiter,

45LE)TER, Brian. O naturalismo de Nietzsche reconsiderado . )n: Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 29,

2011, p. 121.

46 JANAWAY, Christopher. Beyond Selflessness. Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 42-43.

47 LEITER, Brian. O naturalismo de Nietzsche reconsiderado . )n: Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 29,

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apresentada em termos liberais (e nomeadamente não cientificistas)48. Richard Schacht

afirma que Nietzsche pode ser lido como um naturalista na medida em que busca explicações que referem causas de um modo que não entra em conflito com as ciências naturais, que sejam cientificamente informadas onde couber, e não façam referência a nada além das transformações e processos inteiramente mundanos em nossa animalidade humana original e fundamental (com mundano, Schacht pretende simplesmente captar o espírito de temas de Nietzsche tais como o caráter deste mundo e as origens de tudo o que é humano)49.

O tipo de naturalismo de Nietzsche, segundo Richard Schacht, poderia ser apresentado da seguinte forma: (i) o seu ponto de partida é o que ele resume na

expressão a morte de Deus  isto é, o fim da plausibilidade, não só da ideia judaico-cristã de Deus, mas também de qualquer modalidade religiosa, metafísica ou moralmente imaginada de realidade superior ou mais verdadeira que seja subjacente ou transcendente ao mundo no qual nos encontramos e vivemos nossas vidas; (ii) a modalidade de mundo em que consiste este mundo  o mundo da vida, da natureza e da história (FW/GC §344)  é a única modalidade de mundo e realidade que há, sem que qualquer configuração particular deles seja essencial ou fundamental; (iii) em conformidade com uma diretriz geral, no sentido de que tudo que ocorre e vem a ser neste mundo é o engendramento de processos ocorridos em seu interior, que são inteiramente devedores de sua dinâmica interna e das contingências geradas por estes processos e acontecem de baixo para cima, através da elaboração ou da transformação, relacionalmente precipitada, daquilo que já estava acontecendo ou já tinha chegado a ser.

Richard Schacht afirma que a filosofia, para Nietzsche, envolve experienciar e propor relatos de diferentes gêneros  genealógicos, processuais e interpretativos, todos aptos na atribuição de sentido. Esses relatos, com frequência, são propostos hipoteticamente para ajudar a evidenciar a plausibilidade da diretriz a partir da qual se pode dar sentido a todas as coisas humanas em termos de seu desenvolvimento processual nesse mundo, ainda que, a partir disso, eles resultem problemáticos. Afirma que

(30)

Nietzsche não duvida nem por um instante que os processos pelos quais a realidade humana veio a ser como é, e que as várias espécies de coisas que entram na vida humana são engendradas e perpassadas por necessidades, influências, atrações, injunções, reações, interações e relações de poder de toda sorte. Ele certamente duvida da ideia de que o pensamento causal em moldes científicos e naturais é capaz de fazer inteira justiça a todas elas, ou mesmo de ser adequado a um grande número delas não obstante o contraste entre a ciência e o modo patológico de interpretação que ele associa ao cristianismo sacerdotal em O anticristo, contraste que favorece a ciência , concebida como o

saudável conceito de causa e efeito (AC/AC §49). Traduzir o homem de volta na natureza , levando em conta o que ele chama de o terrível [schreckliche] texto básico do homo natura [homem em estado natural] , de um modo que se tornou duro no rigor científico [hart geworden in der Zucht der Wissenschaft] , não significa para Nietzsche tratar a realidade humana como se agora ela não fosse em nada diferente do que era quando nossa espécie apareceu pela primeira vez, nem tampouco lidar com ela em moldes puramente científico-naturais 50.

Nesse sentido, o que mais interessa na consideração de Nietzsche às ciências naturais é a percepção do potencial transformativo a respeito da produção de sentidos e conhecimento acerca do ser humano e do mundo que as ciências naturais oportunizaram, e também todas as suas transformações futuras ainda possíveis. No entanto, sem desconsiderar as possibilidades qualitativas dos fenômenos históricos e culturais de transformação da vida humana:

O naturalismo de Nietzsche sustenta a possibilidade e a realidade de episódios qualitativamente transformadores na vida humana, ocorrendo no transcurso de eventos inteiramente humanos e mundanos episódios que resultam na emergência de formas de vida Lebensformen, formas de vida humanas que se desenvolvem (e às vezes entram em mutação) de forma historicamente diversificada e que são social e linguisticamente configuradas. Nietzsche identifica e discute muitos fenômenos dessa natureza, de diferentes tipos e sujeitos à contingência histórica, que costumam variar significativamente em relação aos seus e a outros precedentes e contemporâneos, variações de natureza tanto histórica quanto biológico-evolucionária e que demandam, além disso, um tipo de compreensão distinto daquele fornecido pela consideração de seu embasamento fisiológico51.

Nesse sentido, as principais contribuições de Schacht na investigação a respeito do naturalismo na filosofia de Nietzsche se referem às considerações do autor em relação à importância que Nietzsche concede às várias espécies de Lebensformen (formas de vida). Os principais argumentos podem ser apresentados da seguinte maneira52: (i) o naturalismo de Nietzsche é sensível e atento às várias espécies de

Lebensformen e aos tipos de experiência, atividade e objetivação a elas associados que

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vieram a se tornar parte da realidade humana, envolvendo a tentativa de compreendê-las de um modo que seja justo à riqueza e à diversidade por ecompreendê-las atingida, bem como às suas origens estritamente humanas; (ii) as Lebensformen que Nietzsche menciona e discute incluem variados fenômenos sociais, culturais, políticos, religiosos, artísticos, científicos e até filosóficos. Todas elas, juntamente com o tipo Mensch em geral devem ser ao mesmo tempo traduzidas de volta na natureza em sua constituição e origem básicas, mas também compreendidas em seu caráter de fenômeno humano, como um tipo de natureza transfigurada, a qual evidencia algumas das coisas que nossa natureza, no princípio puramente natural, tinha de ter em si para ter sido engendrada e vindo a ser como é; (iii) o naturalismo de Nietzsche é, provavelmente, minimalista. Ainda assim é um naturalismo consistente, no sentido de perceber os aspectos complexos de nosso mundo e da realidade humana, consideravelmente diferente do naturalismo cientificista atribuído a Nietzsche por Brian Leiter, segundo o qual as únicas coisas que existem são naturais, e tudo na realidade humana deve ser entendido em termos de uma imagem científica de como as coisas funcionam; (iv) o naturalismo de Nietzsche é muito mais abrangente do que um naturalismo cientificista, tanto substantivamente, em termos de como está apto a falar do que existe e acontece no mundo da realidade humana quanto metodologicamente, em seus modos de abordá-la e lidar com ela; (v) o mundo da realidade humana, segundo Nietzsche, contém entidades como palavras, linguagens, livros, óperas, sinfonias, esculturas, cidades, estados, universidades, profissões, leis, valores morais, ciências naturais, dentre outras coisas. Todas essas são coisas cuja existência está acima de disputa. Embora haja um sentido em que elas são naturais, isto é, não têm origem supramundana, existe outro sentido em que elas, de modo algum, são apenas isso  isto é, compreensíveis nos termos do tipo de processos que bastam para explicá-las e acontece no resto da natureza. As partes e pedaços da realidade natural que nelas figuram podem de alguma maneira ser aquilo do que elas são constituídas, porém, o que elas são é uma extensa variedade de histórias diferentes.

(32)

significados que contribuem de forma decisiva para que todas as coisas que acontecem no mundo e em nossas vidas sejam a realidade que são. Assim, importa para Nietzsche a respeito de quais assuntos a diretriz cientificista é mobilizada para interpretar e, dessa forma, demonstrar que a ciência não pode ser mobilizada para tratar de todos os assuntos pertinentes ao mundo e ao ser humano53.

No aforismo 373 de A gaia ciência, Nietzsche afirma que em relação a algo como a música, por exemplo, existe muita coisa que pode ser descoberta e aprendida se a interpretação não se limitar apenas a uma abordagem sensível e, da mesma forma, se não se limitar a uma abordagem cientificista. Nietzsche considera ambas necessárias para a compreensão da música, mas ele se serve igualmente de uma ampla variedade de disposições e perspectivas que podem ser direcionadas para os múltiplos aspectos da música como fenômeno e parte da realidade humana, algumas físico-científicas, fisiológicas, neurológicas e psicológicas, outras antropológicas, culturais, históricas, biográficas, sociológicas e mesmo tecnológicas54. A respeito disso, Richard Schacht

afirma:

Isto serve para evidenciar e ilustrar um ponto importante sobre que tipo de naturalismo é o de Nietzsche. Ele próprio o indica numa passagem bastante conhecida da Terceira Dissertação da Genealogia da moral. Ali ele anota, acerca da necessidade da Zucht [disciplina, treinamento, rigor] e da preparação do intelecto para sua futura objetividade , que quanto mais olhos, olhos diferentes, pudermos usar para observar uma mesma coisa [diselbe Sache], mais completo será nosso conceito dessa Sache, nossa objetividade . E ele considera isso desejável não só para os propósitos da autoexpressão e da criação, mas principalmente porque desse modo se saberá como tornar a diversidade [Verschiedenheit, variedade] de perspectivas e interpretações afetivas aproveitáveis para o conhecimento [fur die Erkenntniss] (GM/GM III §12)55.

Richard Schacht entende que Nietzsche considera o tipo de mentalidade que ele associa ao pensamento das ciências naturais como um conjunto daqueles olhares necessários, mas que de modo algum é o único olhar. Nesse sentido, o naturalismo de Nietzsche é tanto biologicamente quanto historicamente processual, e sua concepção da realidade que nós humanos atingimos é tão social e cultural quanto é biológica, fisiológica e psicológica. A respeito disso, afirma que

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