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NATUREZA E CULTURA EM A EVOLUÇÃO CRIADORA (1907): ASSIMILAÇÃO E CRÍTICA DO

No documento Natureza e cultura na filosofia de Bergson (páginas 156-200)

EVOLUCIONISMO

Com a publicação de A evolução criadora o tema da relação entre natureza e cultura ganha uma dimensão inédita: trata-se de discutir não só como natureza e cultura se articulam, mas se há, efetivamente, uma diferença mínima entre estes dois termos que permita tal articulação. Um dos problemas de fundo passa a ser então a possibilidade de que tal articulação se transforme em identificação, quer dizer, de que a cultura, uma vez diluída na imensidão da natureza, se transforme, ela mesma, em natureza, o que poderia ocasionar uma indiferenciação simplificadora, alheia às particularidades das espécies e, em especial, da espécie humana. Tendo em vista este último aspecto, não é excessivo insistir sobre os perigos e inconsistências da transposição não refletida de aspectos do homem como espécie para sua condição "cultural", "histórica", "social" e "psicológica". Por isso será imperativo acompanhar se, neste contexto, o filósofo da duração operará distinções (quantitativas, qualitativas, categoriais ou mesmo de outro tipo) que lhe permitam traçar a especificidade e a articulação entre os diversos níveis do mundo natural, a fim de evitar justamente um "sufocamento" da variedade de expressões ou obras da natureza, sejam elas provindas da criatividade humana ou de qualquer outra espécie ou reino (animal e vegetal).

Mas por que tais problemas aparecem com tanta força neste momento na obra bergsoniana? Tal ineditismo deve ser conferido em grande medida à adesão total e profunda do nosso filósofo à corrente de pensamento que, na falta de um melhor termo e num primeiro momento, chamaríamos de evolucionismo, isto é, um conjunto de teses de cunho científico-biológico que poderia ser identificado muito genericamente à ideia de transmutação das espécies; contrária, portanto, às teorias que concebiam as espécies como entidades fixas. Mas não é desprovido de crítica que Bergson efetua tal assimilação. De uma maneira explícita, é somente a partir de 1907 que ele próprio se tornará um dos expoentes dessa tradição, apresentando, assim, a sua própria teoria da evolução. É um passo a mais se tomarmos como parâmetro o que dizíamos sobre as novidades trazidas por Matéria e memória e mesmo pelos textos posteriores. Se em 1896 a grande novidade era traduzida com o advento de uma filosofia da natureza, agora, os novos ventos acrescentam a este adágio um termo repleto de consequências: trata-se, doravante, de uma filosofia evolucionista da natureza 399. O problema dos diversos níveis do mundo natural (já posto, ainda que de modo difuso e incipiente em Matéria e memória, através da teoria

399 Obviamente não ignoramos a influência decisiva das teorias evolucionistas – sobretudo a versão

spenceriana – desde o início do itinerário intelectual de Bergson. Esse, inclusive, foi um dos nossos esforços nos capítulos anteriores. Nosso intuito com essa fórmula em itálico não é, assim, negar, por exemplo, o "evolucionismo" de Matéria e memória mas, antes, de enfatizar a centralidade adquirida por tal ideia na filosofia bergsoniana, a ponto de transformar essa última, em A evolução criadora, numa "filosofia da evolução".

O filósofo americano Josiah Royce defende uma diferença entre doutrina da evolução e filosofia da evolução. A primeira seria uma teoria puramente empírica, baseada em generalizações de fatos, isto é, em induções gerais , e não deve ultrapassar esse limite; em suma, ela seria uma ciência da evolução. A segunda, em contrapartida, se ocuparia da pergunta "O mundo tem sentido?" e, caso seja uma "verdadeira filosofia da evolução", deve reponder afirmativamente a tal questão. ROYCE, J. The spirit of modern philosophy. New York, Geroge Brazilier, 1955, pp. 289-290. É uma distinção interessante e representa a postura, de uma maneira geral, de muitos intérpretes de A evolução criadora. No entanto, não podemos segui-la, uma vez que a pergunta pelo "sentido do mundo" não autoriza o filósofo evolucionista de prescindir dos elementos trazidos pela ciências; pelo contrário, são os experimentos e as conjecturas científicas que muitas vezes darão elementos para que se possa inferir a "significação" do problema. O confronto de Bergson com a biologia de seu tempo não é circunstancial, ou seja, não é um mero exemplo de teses filosóficas concluídas anteriormente. Ademais, a ciência pode perfeitamente interpretar para além dos "fatos" recolhidos, como fez, inclusive, em muitas ocasiões. Acompanharemos como, do ponto de vista bergosoniano (mas não só) as teorias evolucionistas fizeram-no reorganizar seu próprio pensamento, como, aliás, havia sido o caso em

Matéria e memória, a partir das teorias dinamistas na física e dos avanços obtidos na psicofisiologia. A

pergunta pelo "sentido" não pode servir de refúgio (ou petição de princípio) ao filósofo que vê suas certezas confrontadas pelo suposto "sem sentido" do cientista.

dos ritmos de duração e dos graus de tensão da memória) torna-se, assim, no contexto de A evolução criadora, o problema da variabilidade das espécies, ao menos no que concerne às considerações desse livro sobre o domínio orgânico. Afinal, por que e como a vida se diferenciou? Quais são os traços específicos de cada espécie? Como elas se comunicam? E mais: o que caracteriza a cultura (humana ou não, admitindo-se que hajam outras), se sua ancoragem última é a "vida em geral"? Tais são algumas perguntas que tentaremos responder.

4.1. A renovação de um tema: o lugar do homem no universo

Do ponto de vista historiográfico, percebe-se que tal problema é difundido entre vários pensadores e linhas de pensamento contemporâneas ou um pouco anteriores a Bergson, indicando uma reverberação muito expressiva das teorias científicas evolucionistas (ou, mais genericamente, ligadas à vida) no âmbito filosófico. Alguns estudiosos já evidenciaram a assimilação ou negação das diversas versões – muitas vezes conflitantes entre si – dessas teorias em inúmeros domínios da cultura, não só na filosofia, como também no âmbito dos estudos religiosos e teológicos 400, bem como nas então recentes disciplinas com aspiração epistemológica própria, como a psicologia, a antropologia e a etnologia, a sociologia e mesmo a história 401, fato que, veremos, não passará desapercebido por Bergson. Mais especificamente, a análise de uma vasta

400 PAUL, H. W. The edge of contingency. French Catholic Reaction to Scientific Change from Darwin to

Duhem. University Presses of Florida, Gainesville, 1979. STEBBINS, R. E. op. cit., 1965, pp. 61-102

("Chapter IV – The antireligious and extra-religious reactions").

401 STAUM, M. op. cit. MUCCHIELLI, L. op. cit., CONRY, Y. op. cit., BLANCKAERT, C. op. cit. JOLY,

M. op. cit. Também nosso artigo: RATES, B. B. "Vie et histoire humaine dans L’évolution créatrice de Bergson". In EBKE, T., ZANFI, C. (Hrsg.). Das Leben im Menschen oder der Mensch im Leben?

Deutsch-Französische Genealogien zwischen Anthropologie und Anti-Humanismus. Potsdam: Universitätsverlag Potsdam, 2017.

bibliografia científica o forçará a tomar uma posição mais acabada no interior de uma querela muito presente nas discussões científicas da época, a saber, aquela que versava sobre o lugar do homem na natureza. Portanto, não basta dizer que a filosofia e outros saberes foram impactadas pelas ciências da vida e suas vertentes evolucionistas – isso de fato ocorreu. Mas foi uma "via de mão dupla", cujo tráfego talvez tenha sido mais intenso no sentido que ia da ciência à filosofia, mas que, decerto, não impedia o fluxo que percorria a direção contrária 402. A ideia de que o universo tem uma história, de que o planeta Terra possui uma idade, e de que o homem é fruto de um processo evolutivo, forçará os próprios biólogos, fisiologistas, embriologistas, paleontólogos, etc, a ultrapassarem as fronteiras de suas respectivas especialidades e dotarem suas indagações com um teor mais abrangente e "especulativo". Algumas referências comumente esquecidas de A evolução criadora, como a exercida pelo geólogo americano Nathaniel Southgate Shaler, pelo paleontolólogo Edward Drinker Cope, e pelo psicólogo James Mark Baldwin não nos deixam mentir a este respeito, já que suas obras possuem, em inúmeras ocasiões, extrapolações acerca dos limites impostos pelas disciplinas que lecionavam e pesquisavam 403.

402 Na verdade, é preciso dizer que se tratava de "várias vias" que nem sempre respeitavam o mesmo fluxo,

para continuarmos com a metáfora utilizada. Era o caso, por exemplo, da sociologia, cuja tentativa de autonomia epistemológica – ao menos na França – se dá na contramão não só da biologia e do pensamento evolucionista, como também da própria filosofia. Se tomarmos ainda o caso do embate entre a antropologia e a etnologia na segunda metade do século XIX, veremos que a primeira, em sua maioria, era crítica tanto da influência dos aspectos externos como de qualquer forma de transformismo na explicação acerca da origem e da natureza do homem. Um cientista como Broca, por exemplo, um ferrenho fixista no tocante às espécies, se apoiava sobretudo nas descrições da estrutura do organismo provindas da fisiologia. STAUM, M. op. cit., CONRY, Y. op. cit., BLANCKAERT, C., op. cit. Balan também chama a atenção para dimensão filosófica inerente "quando o vivente e o homem estão em questão", sobretudo com o surgimento da anatomia comparada de Cuvier e com o evolucionismo de Darwin. BALAN, B. L'ordre et le temps.

L'anatomie comparée et l'histoire des vivants au XIXe siècle. Vrin, Paris, 1979, pp. 20-5.

403 Nota-se, assim, já no século XIX, uma tentativa no interior da própria ciência de se pensar o homem

tendo em vista as dimensões tanto científicas quanto teológicas e filosóficas, o que coloca em xeque o autodeclarado ineditismo da chamada antropologia filosófica alemã no que diz respeito à tentativa de apreensão da "unidade do homem", ao menos se levarmos em conta certas declarações de Max Scheler em 1928. SCHELER, M. "Die Stellung des Menschen im Kosmos" (1928)" in Gesammelte Werke IX – Späte

Schriften, Bouvier-Verlag, Bonn, 1976.

Nathaniel Southgate Shaler (1841-1906) era professor de geologia em Harvard. Aluno do eminente biólogo suíço radicado nos EUA, Louis Agassiz (1807-1873), duas obras de Shaler são citadas em A evolução

Em contrapartida, não se pode ignorar o fato de que muitas dessas ideias possuíam o intuito justamente de destruir e desencorajar qualquer tipo de especulação sobre o tema. Se as considerações sobre o lugar do homem na natureza estavam forçosamente carregadas de um sentido mais "abstrato" (mais, inclusive, do que muitos savants gostariam de admitir), para uma parte dos cientistas, o termo "especulação" possuía uma conotação pejorativa e deveria ser evitado: ele significava distanciar-se da concretude dos "fatos", da observação minuciosa e segura exigida pelos padrões de cientificidade então vigentes. Além disso, tal palavra estava associada a dogmas e preconceitos de ordem teológica que, como se sabe, eram vistos por grande parte da comunidade científica como pilares a serem destruídos. E o pensamento evolucionista, apesar de toda a sua variedade e polissemia, se não destruía, no mínimo reordenava a configuração daquela que parecia ser a última (e, quiçá, a principal) base de sustentação da "cidadela especulativa": o homem 404.

natural com a teologia, além de evidenciarem a centralidade da questão do lugar do homem no universo:

The Interpretation of Nature, de 1893, e The individual: Study of Life and Death, de 1900. Edward Drinker

Cope (1840-1897) é considerado, ao lado de Alpheus Hyatt, o principal expoente do neo-lamarckismo americano. A relação entre vida e consciência e a ideia de homem frente ao modelo natural evolucionista estão entre algumas de suas preocupações. Bergson o considerava "um dos mais notáveis naturalistas de nosso tempo", EC, p. 34. Inicialmente um divulgador da psicologia alemã (tendo estudado em Leipzig e traduzido em inglês o livro La Psychologie Allemane Contemporaine de Théodule Ribot) James Mark Baldwin (1861-1934) foi um psicólogo evolucionista americano com publicações importantes nesse campo. Próximo de Bergson, revelou-se uma voz crítica da neutralidade americana e um fervoroso defensor da França contra a Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial, tendo escrito vários livros sobre o tema. Aprofundaremos a relação de Bergson com Baldwin mais adiante, tanto neste quanto no último capítulo.

404 Lembremos, no entanto, que cientistas da estatura de Charles Lyell e A R. Wallace sustentavam que

algum tipo de intervenção sobrenatural deveria estar envolvido na criação da alma humana. Além disso, no caso especificamente francês, Harry Paul mostrou como a intelectualidade católica foi crucial para a assimilação, e não para a negação, do evolucionismo em geral e do darwinismo em particular. PAUL, H. W., op. cit. (capítulo 2 e, sobretudo, capítulo 3).

Em tempo: não se deve esquecer também que a maioria dos naturalistas da época permaneceu hostil ao evolucionismo, apesar de Lamarck, já em 1809, ter incluído a espécie humana em sua teoria geral da evolução apresentada em Philosophie Zoologique. Segundo Bowler, tal situação mudará "dramaticamente em 1844, quando Vestiges of the Natural History of Creation, publicado anonimamente por Robert Chambers, discute com profundidade as consequências filosóficas de se tratar a espécie humana como o último estágio de uma progressão orgânica universal". BOWLER, P. J., op. cit, 1986, pp. 2-4. Igualmente: GREENE, J. C., The death of Adam. Evolution and its impact in Western thought. Iowa State Press, Iowa, 1996.

Outro ponto que deve ser levado em consideração é o fato de muito da bibliografia produzida sobre o assunto (da autoria, por exemplo, de pensadores como Thomas Henry Huxley e Ernst Haeckel) era assolada pela assimetria entre as implicações decorrentes da tese da evolução humana (que eram enormes), e a descrição deste mesmo processo, majoritariamente vaga e confusa, quando não inexistente. Em outras palavras, como sustenta um estudioso do tema, o "fato de que [a espécie humana] havia evoluído" parecia ser suficiente para que não se procurasse explicações "sobre como [...] [ela] havia evoluído" 405. No âmbito dos estudos ditos "culturais", a inversão da posição tradicionalmente refratária às novidades trazidas pelo naturalismo – e talvez por isso – acarretava muitas vezes uma assimilação passiva, não passando de uma aplicação nua e crua do axioma científico em questão, o que ficava evidente no fato de que os autores, por exemplo, "que discutiam as implicações sociais do evolucionismo geralmente usavam os mecanismos da evolução biológica como analogias que poderiam ser aplicadas diretamente na sociedade" 406. Bergson representará então, mais uma vez, um caso que não pode ser pareado inteiramente a nenhum dos lados do campo de batalha, já que desagradava tanto os defensores mais radicais da excepcionalidade humana em relação ao conjunto da natureza, como os representantes do mecanicismo, que consideravam "irracionalista" qualquer atitude minimamente favorável aos conceitos de liberdade, interioridade, consciência e espírito, negando, por conseguinte, qualquer tipo de independência – seja histórica, lógica ou factual – de tais noções em relação ao alcance das ciências da natureza. Isso fica claro com o fato de que, para o desgosto dos partidários de ambas as posições, Bergson acreditava que a natureza, tal como o homem, é livre, e

405 BOWLER, P. J. op. cit, 1986, p. 4.

406 Idem. "Simplificando bastante a situação, um darwinista social deveria saber somente que toda a

evolução funcionava a partir da sobrevivência do mais apto ("survival of the fittest"); a evolução humana era assim somente um caso especial desta regra geral [...] O mesmo era verdade para aqueles que baseavam suas analogias sociais em outros mecanicismos, tal como o lamarckismo".

que a vida constituía um domínio privilegiado para a defesa dessa tese. Se a história, a sociedade e a linguagem humanas gozam de algum tipo de especificidade, esta não pode ser afirmada em contraposição à suposta necessidade e total previsibilidade da natureza. E mais: segundo o escrutínio bergsoniano, eram as ciências naturais – e não propriamente a filosofia – que ofereciam, não raras vezes, amostras e indícios da veracidade de tal ideia (seja pelas teorias físicas dinamistas, cujas versões mais atuais ancoravam-se nas descobertas no campo do eletromagnetismo 407, seja pelos novos experimentos na biologia que iam na direção do transformismo 408, seja pela recém-criada termodinâmica 409) aindaque, em alguns casos, inconsciente e involuntariamente.

No caso de A evolução criadora, o problema do lugar do homem no universo ganhará contornos muito marcados a partir do segundo capítulo, cujo objetivo é o de "determinar a relação do homem no conjunto do reino animal e o lugar do reino animal no conjunto do mundo organizado" 410; se estendendo até o terceiro capítulo, onde Bergson tentará mostrar a intimidade entre a inteligência e o que ele denominará de "ordem geométrica", assentada em outro conceito aí forjado, a materialidade. Acompanharemos então, a partir de uma definição acerca da vida e de seu funcionamento, como o filósofo chegará a uma teoria do homem através de uma teoria da inteligência, que também será definida "negativamente", por contraste, seja em relação ao torpor, seja em relação instinto, tendências cuja perfectibilidade é encontrada, respectivamente, no reino animal e vegetal, ainda que não sejam exclusivas a estes. Um dos fatores mais importantes será o de entender como, uma vez o conceito de espírito sendo substituído pelo de vida, as manifestações humanas serão compreendidas como manifestações vitais

407 MM, pp. 222ss 408 EC, pp. 23-27. 409 Idem, pp. 242ss. 410 Idem, p. 106.

ou, em outros termos, como a cultura será considerada como "produto" da evolução da vida. A articulação entre a natureza e a cultura não será então mais corroborada pela dualidade clássica entre espírito e natureza. A questão passa a ser como a articulação entre a matéria orgânica (vida) e a matéria inorgânica pode criar formas vivas (os viventes) e, consequentemente, como as criações destas possuem um lastro com a articulação primordial entre o orgânico e o inorgânico. À propósito, e com o risco de nos comprometer com uma certa dose de anacronismo, que nos seja permitido recuperar algumas conclusões do estudo decisivo sobre o vitalismo feito por Roselyne Rey, em que a autora indica justamente uma inflexão semelhante na história da ideia de vida no século XVIII: "A clivagem fundamental não se situa talvez entre o materialismo monista e dualismo, mas entre mecanicismo e vitalismo [...] [quer dizer], primado da demarcação entre vivente e não vivente, o que restitui o homem entre os animais" 411.

4.2. Consciência e vida: o recurso à interioridade psicológica, ao "como se", à "analogia" e às ciências naturais

Tendo em vista o projeto de uma filosofia evolucionista da natureza mencionado por nós, o início do primeiro capítulo de A evolução criadora é no mínimo surpreendente. Lá, logo nas páginas de abertura, Bergson nos apresenta considerações não acerca da vida enquanto tal, mas da existência em seu sentido íntimo, profundo, interior, já que, "incontestavelmente", a "nossa existência" é a que melhor conhecemos 412. Nesse verdadeiro tour de force introspectivo, em que são evocadas, inclusive, as considerações sobre a duração do Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, o filósofo procura

411 REY, R. op. cit., pp. 137, 139. 412 EC, p. 1.

mostar o caráter temporal da consciência psicológica caracterizando-a como "mudança", mas uma "mudança muito mais radical do se acreditou até então". A conclusão é conhecida: "Nós procuramos somente o sentido preciso que nossa consciência confere à palavra 'existir', e descobrimos que, para um ser consciente, existir consiste em mudar, mudar consiste em amadurecer, amadurecer consiste em se criar indefinidamente a si mesmo. Pode-se dizer o mesmo da 'existência em geral?" 413. A despeito da importância do tema, não nos interessa esmiuçarmos as novidades que tal caracterização traz para o conceito de duração 414. Cabe-nos compreender como tais considerações constituem o ponto de partida para que Bergson pense "a existência em geral", isto é, os "objetos materiais" ou "corpos inorganizados" e, posteriormente, o domínio privilegiado do livro, a saber, os "corpos vivos" ou "organizados". A surpresa decorre, portanto, do fato de que a investigação sobre a "evolução da vida" parte de uma démarche metodológica explicitamente "introspectiva", sobretudo se pensarmos na defesa que fazíamos da mudança do modelo perceptivo em Matéria e memória, em que a exterioridade não se configurava mais como deformação da interioridade que se exterioriza. O primeiro ponto a ser notado é que tal recurso à auscultação "de nós mesmos, interiormente, profundamente" 415 está, nesse momento, a serviço da compreensão da "exterioridade", seja dos objetos inertes, seja dos organismos, o que exorciza, ao menos em parte, a ideia de que sua utilização seja totalmente "subjetivista". Ademais, lembremos que o esquema gnosiológico da "parte/todo" nos mostra que somos parte da totalidade do universo, de modo que a relatividade do conhecimento (e sua decorrente interdição ao que estaria "além de mim"), uma vez substituída pela sua parcialidade, indicaria a ligação necessária

413 EC, p. 7.

414 Por exemplo, a suposta inclusão da dimensão de futuro e de criação na duração. A este respeito, a bela

tese de Marcos Camolezi oferece pistas importantes: CAMOLEZI, M. D. A causalidade em Henri Bergson:

formação de um pensamento em contato com as ciências experimentais. Tese de Doutorado defendida no

Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.

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