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NATUREZA E CULTURA NOS TEXTOS DE 1896-1900: ESBOÇOS DE UMA FILOSOFIA DA NATUREZA

No documento Natureza e cultura na filosofia de Bergson (páginas 76-115)

O modo com que Bergson pensa a inserção prática no mundo em Matéria e memória visa resolver o problema maior do livro, a saber, o problema metafísico da relação entre a alma e o corpo. Mas este problema possui também uma dimensão psicológica, imprescindível, apresentada por Bergson através do estudo da relação da memória com o cérebro. Ora, não será surpresa então que o resultado da tentativa de resolução deste duplo problema seja ele próprio também duplo: a proposta de uma teoria dos "planos da consciência" no âmbito psicológico e dos "graus" ou "ritmos da duração" no plano metafísico. É verdade que há uma interpenetração entre ambas as teorias, fato que se coaduna com a interpenetração dos problemas psicológico e metafísico, e que desembocará nas polêmicas acerca do caráter dualista, monista ou pluralista da proposta bergsoniana. No entanto, ainda que a intersecção entre psicologia e metafísica seja proveitosa para nós, nos cabe analisá-la desde um ponto de vista mais específico, isto é, a partir das consequências provindas da inserção da memória na matéria através do corpo tendo em vista a gênese do "humano" e a caracterização de seus estágios psicológicos. Não há dúvida que os temas relativos à cultura e à sociedade praticamente desaparecem na obra de 1896. E como se não bastasse a dificuldade decorrente deste desaparecimento, nos parece quase impossível investigar tais temas sem passar pelas teses mais evidentes

do livro, o que torna, neste momento, a nossa empreitada ainda mais complicada. Mas porque então se debruçar sobre Matéria e memória? É que essa necessidade de abordar as questões mais laterais e percorrer, ao mesmo tempo, o problema do dualismo – central no livro –, revela que as considerações com peso metafísico e psicológico (e mesmo físico) possuem um alcance antropológico muito rico, apontando um horizonte de inteligibilidade da interação do homem com a natureza. Com efeito, é em Matéria e memória que Bergson, pela primeira vez, caracteriza a natureza de um ponto de vista abertamente não mecanicista, o que terá um efeito enorme no modo como ele conceberá o corpo e a relação deste com a memória. No plano da gênese da vida humana, ele continuará a lançar mão de um arsenal científico inspirado de uma maneira geral por aquilo que poderíamos chamar de "naturalismo", precisamente nas considerações feitas acerca da percepção que, mescladas à sua apreciação aparentemente idealista da memória, dão uma pista de como seria adequado entender as produções humanas. No caso de sua obra posterior, O Riso, não será diferente. Veremos como um problema de aparência exclusivamente estética, revelará, no fundo, uma articulação ambiciosa entre sociologia e biologia. E é essa articulação que tornará possível a reflexão sobre a relação entre produções culturais (notadamente a arte) e a natureza.

2.1. Da natureza ao homem e a pergunta pelo vivente: a cultura como manifestação vital

O primeiro ponto a ser destacado acerca da contribuição de Matéria e memória para a compreensão do problema por nós abordado diz respeito ao estabelecimento da filosofia bergsoniana enquanto uma filosofia da natureza. Mas o que queremos dizer com um termo tão vago como este? Dada a dificuldade em sintetizar uma expressão tão ampla

como "filosofia da natureza", como fazê-lo? Buscamos aí caracterizar um esforço em colocar tanto os problemas quanto as respostas relativas ao homem, à sociedade, à história, à moral, etc, tendo sempre em vista a relação – quando não a total identificação – com algo que muito genericamente poderíamos chamar de "mundo natural" e cujos conceitos nos são dados não raramente pelas ciências naturais. É verdade que, como já advertíamos anteriormente, o projeto de integração do homem na natureza não possui, em Matéria e memória, uma envergadura que permita abordar de maneira inequívoca os problemas socioculturais. Isto se consolidará plenamente apenas com a centralidade do papel das "teorias da evolução" e da "vida" em A evolução criadora, cujos desdobramentos morais e sociais se realizarão com maior amplitude somente em As duas fontes da moral e da religião. Além disso, é possível observar que, no livro de 1896, este projeto é repleto de pormenores que, por vezes, parecem colocar em risco a sua unidade argumentativa, uma vez que as dualidades aí enfrentadas – corpo e espírito, matéria e memória, percepção e lembrança, memória-hábito e memória-profunda, entre outros – podem, de acordo com algumas passagens, ser interpretadas muito mais como termos opostos que se relacionam do que propriamente como uma unidade problemática e compreensiva de ritmos que se articulam. Seja como for, acreditamos ser possível inferir algumas conclusões da obra de 1896 muito importantes para este debate, ainda mais se vislumbrarmos O Riso, de 1900, em que teses psicológicas encontrarão articulações às vezes inesperadas com teses sociológicas, biológicas, morais e estéticas, o que é de grande proveito para os nossos propósitos. Quais seriam, portanto, as contribuições trazidas por Matéria e memória para o nosso trabalho? A primeira, que se coaduna com o que defendíamos ser uma "filosofia da natureza", é de fundo metodológico e diz respeito à pergunta pelo vivente em geral, mas também pela espécie humana em particular, pergunta que aparece no contexto da investigação acerca da percepção. Comecemos com uma

declaração feita logo no primeiro capítulo, revelando desde já a radicalidade do modo pelo qual Bergson coloca o problema. Dirá o filósofo: "O problema é o de responder não como a percepção nasce, mas como ela se limita, já que ela seria, de direito, a imagem do todo, e que ela se reduz, de fato, ao que lhe interessa" 159. A percepção deve ser entendida a partir de uma "totalidade" que a abrange, e não o contrário, em que o mundo deve ser deduzido a partir da consciência que lhe é exterior, como é o caso, por exemplo, do cartesianismo, do criticismo de uma maneira geral e, de certo modo, de toda argumentação de tipo "transcendental", geralmente movida por razões ligadas à primazia da anterioridade lógica sobre a cronológica. Se nos voltarmos para o desenvolvimento interno da filosofia bergsoniana e tomarmos como termo de comparação o Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, tal mudança fica ainda mais visível, pois veremos aí uma transformação considerável no modelo adotado. Mara Meletti Bertolini nos mostra claramente como tal mudança constitui uma “mutação complexa”:

O modelo de processo perceptivo ao qual implicitamente o Essai faz referência se configura como um processo de espacialização, de cujo efeito é necessário liberar-se para poder recuperar a duração. O interesse bergsoniano dirige-se à exterioridade somente na medida em que esta se transforma em um aspecto deformante para a consciência [...] No confronto com um esquema perceptivo deste tipo – que reside na tradição kantiana e psicofisiológica – amadurece em Matière et mémoire uma reação crítica que leva Bergson a conceber o processo perceptivo não mais como espacialização dos estados de consciência qualitativos, mas segundo uma perspectiva biológica fundada sobre a relação vital organismo-mundo externo [...] De uma explicação [...] que partia da

sensação puramente qualitativa para reconstruir a exterioridade, substitui-se uma explicação que parte da periferia [...] ao centro160.

Desta forma, trata-se uma reviravolta metodológica considerável, uma vez que, já de saída, é proposto que se substitua a clássica divisão entre sujeito e objeto (com todas as suas nuances e versões) pela relação entre parte e todo 161. Ao invés de partirmos do sujeito para então perguntarmos acerca do objeto (inclusive tendo o sujeito como parâmetro de investigação sobre as propriedades do objeto), ou ainda, ao invés de partirmos do homem para então perguntarmos acerca da natureza (como se essa só "existisse" a partir, "para" ele), partimos de um "todo" (o "objeto", a "natureza") para chegarmos à parte (o "sujeito", o "homem") 162. Em outras palavras, a relação entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível deve ser substituída pela relação entre o vivente que age tendo em vista uma porção de algo que poderíamos chamar de "natureza" ou "universo", e que Bergson denomina estrategicamente em 1896 de "conjunto de

160 BERTOLINI, M. M., Bergson e la psicologia, Milano, Franco Angeli, 1984, pp. 114, 117-118.

161 Num artigo notável, Quentin Meillassoux denominará a teoria da "parte-todo" desenvolvida no primeiro

capítulo de Matéria e memória de teoria da "subtração" que, segundo ele, seria carregada de um forte apelo anti-kantiano. MEILLASSOUX, Q., "Soustraction et contraction. À propos d’une remarque de Deleuze sur

Matière et mémoire" in Philosophie, n°96, Éditions de Minuit, 2008/1.

162 Curiosamente, em 1894, George Sorel, figura controversa e fundador do sindicalismo revolucionário,

via, já no Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, tal reviravolta metodológica, se posicionando contra as críticas de "egoísmo" e "solipsismo" que faziam Levy-Bruhl, Belot e Jaurès a Bergson, mencionadas por nós acima. Para Sorel, a cisão radical entre o "eu profundo" e o "eu social" representaria no Ensaio não a irredutibilidade da interioridade temporal frente a exterioridade espacial, mas, antes, que "a ordem exterior se imprime sobre nós". Como consequência, Sorel defenderá que o livro de 1889 do filósofo da duração e sua "nova metafísica" mostram a primazia da exterioridade sobre a interioridade, do real sobre o ideal. No entanto, se apressam aqueles que identificam, neste caso, os conceitos de "exterioridade" e "real" ao "materialismo" das ciências naturais – Bergson estaria, ainda segundo Sorel, alinhado ao materialismo dialético de Marx: "Desde dois séculos se pretende fundar o conhecimento sobre um processo que parte do homem para ir ao exterior; o ponto de vista materialista (no sentido marxista da palavra) é absolutamente oposto a essa maneira de ver; [...] eu estimo que a realidade penetra em nós do exterior e aí se imprime". SOREL, G., "L’ancienne et la nouvelle métaphysique" (1894) in SOREL, G.,

D'Aristote à Marx; l'ancienne et la nouvelle métaphysique, Paris, Editions Du Sandre, 2007. Também o

ótimo comentário de AZOUVI, F., op. cit., pp. 112-113. Segundo Azouvi, não se trata pura e simplesmente de uma leitura "aberrante" de Bergson, mas da inauguração do "bergsonismo de esquerda" (Sorel e posteriormente Charles Péguy, entre outros) cujo ponto comum é a afirmação de que Bergson é um "filósofo do real", e que a liberdade deve ser fundada sobre uma visão realista do mundo social. Ao distinguir o real (Ser) do verdadeiro (verificável pela ciência) Péguy explicita o dilema: no fundo, a discussão versa sobre a essência física (cientifica) ou social (metafisica) do real. Animal político ou animal racional? Filosofia da natureza (pre-socráticos) ou filosofia socrática?

imagens". Aliado a este fator, também no terreno gnosiológico, o filósofo apoia sua argumentação partindo de experimentos provindos das ciências naturais, mais especificamente da psicologia fisiológica da época, em que o caráter prático da percepção é comprovado pelo exame "da estrutura do sistema nervoso na série animal [...] da Monera aos vertebrados superiores" 163. Segundo alguns historiadores 164, tal constatação é retirada do esquema proposto por Wundt em seu seminal Grundzüge der Physiologischen Psychologie 165. Não obstante a verossimilhança de tal mapeamento teórico, nos parece que ele carrega somente uma parcela dos fatos. A outra parcela reside na presença patente do esquema proposto por Spencer, o que pode ser comprovado pela conotação claramente “evolucionista” da declaração de Bergson, que, é bom lembrar, não era compartilhada por Wundt 166. Para além de um interesse estritamente historiográfico, a relevância do esclarecimento desta “paternidade” é fundamental para entender que a filosofia da natureza que aparece em Matéria e memória deve ser encarada também como uma absorção mais radical – não sem reparos, é preciso dizer – da ideia de evolução, ainda que esta, como pudemos verificar, tenha acompanhado o filósofo da duração desde o início de seu percurso intelectual 167. Resumidamente, trata-se de entender a

163 MM, p. 24. Sobre a "Monera" como composição elementar da vida, ver nota da edição crítica.

164 Por exemplo, Camille Riquier, que é o responsável pela edição crítica de Matéria e memória. Idem, p.

318/nota 22.

165 WUNDT, W. Grundzüge der Physiologischen Psychologie - Erster Band, Lepzig, Verlag von Wilhelm

Engelmann, 1902, pp. 19-31. Bergson utiliza em Matéria e memória a tradução francesa, de 1886, baseada na segunda edição alemã, de 1880. Também é crível supor que o manual escrito por Ribot sobre a psicologia alemã (elogiado inclusive por Wundt no Prefácio à tradução francesa) tenha servido de base para Bergson.

Na 7a aula do curso sobre Psicologia em Clermont-Ferrand, Bergson aponta que as idéias de Wundt “foram

traduzidas para o francês por Théodule Ribot em La psychologie allemande contemporaine”. BERGSON, H., op. cit., 1990, p. 21. RIBOT, T., op. cit., 1879.

166 ARAUJO, S. de F., Wundt and the Philosophical Foundations of Psychology. A Reappraisal,

Switzerland, Springer, 2016, pp. 27-29.

167 Tanto a divisão do trabalho fisiológico e a diferenciação dos órgãos, quanto a extensão da percepção no

espaço e a maior latitude deixada à ação provém diretamente da filosofia de Spencer. Cf. BERTOLINI, M. M., op. cit., pp. 122-139. Isso coloca em xeque a filiação teórica estabelecida por Gouhier e seguida por Bento Prado Junior de que “abandonando Spencer, o jovem Bergson se encontra não com Maine de Biran, mas com Ravaisson e Lachelier”. Gouhier, H., Bergson et le Christ des Évangiles, Paris, Vrin, 1987, p. 24. PRADO JR., BENTO, Presença e campo transcendental. Consciência e negatividade na filosofia de

complexificação do sistema nervoso na série dos viventes como uma "escala" em que a sensação e o movimento que dela decorrem sejam cada vez mais indeterminados, imprevisíveis e criativos; em uma palavra, livres 168. Assim, mais uma vez, é importante notar que o homem, como qualquer vivente, deve ser investigado desde uma perspectiva genética, ou seja, relativa ao seu surgimento que se dá, antes de tudo, no interior do "todo", enfim, como "parte" da natureza. E que todas as suas produções e criações, consequentemente, devem ser colocadas sob esta mesma perspectiva, seja, por exemplo, a sociedade ou a história. Extrapolando o raciocínio para os nossos propósitos, não é descabido pensar que a relação do homem com o meio material que o circunda – meio este formado não só por "objetos", mas também por máquinas, construções de todos os tipos e até mesmo instituições – diz respeito ao que Bergson denomina de "lei fundamental da vida" 169, quer dizer, uma orientação sempre em direção à prática, à ação. Se compararmos o modo como o problema da "vida prática" era entendido no Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, a mudança é expressiva. Mais uma vez, longe de indicar uma interioridade temporal que, uma vez exteriorizada, se espacializaria e, consequentemente, tornar-se-ia mecânica e previsível, em Matéria e memória, o que seria a "interioridade" nada mais é do que a parte que se deduz de um todo através do critério da mobilidade/imobilidade que, por sua vez, não é senão o critério da ação vital. Como dirá Bergson, tendo em vista outra consequência de sua pergunta pelo vivente: "a distinção do interior e do exterior será reestabelecida assim àquela da parte e do todo" 170. Além disso, o que seria a "exterioridade", aqui sob o nome de "percepção" ou "corpo"

168 Esta capacidade de conferir novidade e significado ao dado perceptivo (através da memória) seria uma

das diferenças em relação ao esquema proposto por Spencer. BERTOLINI, M. M., op. cit., pp. 144-150.

169 MM, pp. 167, 178, 200. Sobre as discussões acerca do problema da ação como princípio vital, onde não

só Spencer, como também Ribot e outros pensadores são mobilizados. BERTOLINI, M. M., Il pensiero e

la memoria. Filosofia e psicologia nella “Revue Philosophique” di Théodule Ribot (1876-1916), Milano,

Franco Angeli, 1991, pp. 122-154.

está longe de constituir-se como expressão espacializada e mecânica do "interior", já que ela é, antes de tudo, "centro de indeterminação" 171. E tal caráter de imprevisibilidade dá- se por dois motivos: pela complexificação do cérebro, da medula e do sistema nervoso central, através da memória-hábito, o que em outros termos significa a retenção, pelo corpo, do passado através de dispositivos ou hábitos motores ("um dos modos de armazenamento do passado" 172); e pelo fato da percepção pura estar sempre "encharcada" de memória pura – a percepção é, de fato, concreta, e como veículo de passagem e transmissão da memória, ela exprime, necessariamente, ao agir, traços desta última. Finalmente, vale destacar que a própria matéria enquanto tal – o "universo" – é também irredutível à mecanização absoluta, uma vez que o espaço, descolando-se dela, torna-se esquema de imobilização que visa uma ação mais eficiente, e não condição sine qua non de tudo o que escapa à duração interior 173. Mas aqui, duas ponderações devem ser feitas, uma relativa à possibilidade de "criação", pelo vivente, deste entorno material que procuramos evidenciar – para além, portanto, dos "objetos" propriamente ditos –; e a segunda, derivada da primeira, relativa à capacidade ou incapacidade criativa desse fundo prático vital que, em Matéria e memória, pode ser entendido através do que Bergson chama de hábito (ou memória-hábito, percepção mista/concreta), conceito já examinado por nós em outros momentos da obra do filósofo.

171 Idem, pp. 39, 65-6.

172 MM, p. 95.

173 Já abordamos num trabalho anterior a concepção de matéria apresentada no último capítulo de Matéria

e memória. Não há espaço para analisarmos aqui este tema, nos limitaremos à indicação de duas referências

decisivas a este respeito: CAPEK, M., “La théorie bergsonienne de la matière et la physique moderne” in

Revue Philosophique de la France et de l’Étranger, tome CXLIII, Paris, PUF, 1953, e CAPEK, M., Bergson and Modern Physics, Dordrecht, D. Reidel Publishing Company, 1971.

2.2. A atenção à vida: consequências da inserção psico-fisiológica no ambiente

Uma maneira de responder a estas duas ponderações é voltarmo-nos para o conceito de "atenção à vida", já que ele visa responder ao "ajustamento" da ação no interior do célebre "esquema do cone" apresentado no terceiro capítulo do livro de 1896. Alguns comentadores 174 com leituras bem distintas a respeito da filosofia bergsoniana concordam ao menos a respeito de um aspecto: a importância desse conceito para o projeto geral de Matéria e memória – e de textos posteriores –, baseando-se em declarações do próprio Bergson, como é o caso do sétimo prefácio ao livro, escrito 15 anos após a publicação, em 1911:

Há, assim, tons diferentes de nossa vida mental, e nossa vida psicológica pode se passar em alturas diferentes, ora mais perto, ora mais distante da ação, segundo o grau de nossa atenção à vida. Esta é uma das ideias diretrizes da presente obra, que serviu inclusive como ponto de partida ao nosso trabalho175.

A estrutura da consciência tal como é apresentada no terceiro capítulo de Matéria e memória é, num certo momento, esquematizada através de dois polos, que iriam do sonho à ação, de modo que o espírito "percorreria sem cessar o intervalo entre estes dois extremos" 176. No fundo, tais extremidades da vida psíquica representariam a dualidade

174 LAPOUJADE, D., "L'atachment à la vie" in LAPOUJADE, D., Puissances du temps. Versions de

Bergson, Paris, Les Éditions de Minuit, 2010. WORMS, F., Introduction à Matière et mémoire de Bergson,

Paris, PUF, 2007, pp. 177-185. RIQUIER, C., op. cit., 2009, p. 357. Também o clássico estudo, de inspiração espiritualista, publicado pela primeira vez em 1938: MADINIER, G. Conscience et mouvement.

Étude sur la philosophie française de Condillac à Bergson. Louvain, Éditions Nauwelaerts, 1967 (2e

Editon), notadamente pp. 375-404.

175 MM, p. 7. 176 Idem, p. 192.

maior do livro, a memória e a matéria, o espírito e o corpo, bem como os dois tipos de memória, e a atenção à vida seria a expressão da união entre o volume do passado, em sua maioria inconsciente e "inativo", com os movimentos que o corpo pode executar no presente, movimentos com maior ou menor grau de imprevisibilidade e capacidade de mudança em relação ao seu entorno. Uma vida psíquica saudável seria justamente aquela capaz de se "equilibrar" entre esses dois extremos 177, não sucumbindo, pois, seja à figura do impulsivo – cuja ação não é acompanhada de uma carga suficiente de pessoalidade e criatividade mnêmica –, seja à figura do sonhador – cujo entorpecimento no passado não é acompanhado pela urgência muitas vezes requerida pela situação atual 178. O homem impulsivo estaria, ainda de acordo com este esquema, mais próximo ao "animal inferior" 179, já que responderia com um maior grau de automatismo às situações que lhe acometem; em suma, ele seria mais "adaptado" ao meio, mas possuiria menos capacidade de transforma-lo, de imprimir-lhe a sua "marca". Por razões contrárias, algo semelhante ocorreria com o homem sonhador: sem um corpo para agir e distante da realidade propriamente material, sua liberdade e criatividade estariam condenadas à "inutilidade", uma vez que a efetividade, ou melhor, a atualização da virtualidade do passado, função imprescindível para a saúde da vida psicológica, estaria neutralizada por uma espécie de devaneio permanente, de embriaguez, que acabaria por anestesiar a ação 180.

No documento Natureza e cultura na filosofia de Bergson (páginas 76-115)

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