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Em que consiste a felicidade? Como defini-la? Qual a sua natureza? Antes de darmos a palavra aos psicólogos, ouçamos S. Agostinho que, além de filó- sofo e teólogo, também tinha muito de psicólogo, versando temas da persona- lidade e do comportamento humano, como é o caso da felicidade. No seu livro memorável – Confissões - relaciona-a com a memória, de que vinha falando nos capítulos anteriores do livro décimo. E aproxima a felicidade da

alegria e da verdade, insistindo no desejo universal de todos os homens de serem felizes. Escreve ele:

“Há quem seja feliz simplesmente em esperança. Estes possuem a felicidade dum modo inferior ao daqueles que já são realmente felizes. Mas, ainda assim, estão muito melhor do que aqueles que não têm nem a felicidade, nem a sua esperança. Mesmo estes, devem experimentá-la, de qualquer modo; caso contrário, não desejariam ser felizes. Ora, é abso- lutamente certo que eles o querem ser. Não sei como conheceram a felici- dade, nem por que noção a apreenderam. O que me preocupa é saber se essa noção habita na memória. Se lá existe, é sinal de que já fomos felizes alguma vez. (…) O que quero saber é se a vida feliz reside ou não na memória. Se a não conhecêssemos, não a poderíamos amar. Mal ouvimos este nome, “felicidade”, imediatamente temos de confessar que é isso mesmo o que apetecemos. (…) A felicidade real não é grega nem latina, mas os gregos, os latinos e os homens de todas as línguas têm um desejo ardente de a alcançar. E assim, se fosse possível perguntar-lhes a uma só voz se “queriam ser felizes”, todos, sem hesitação, responderiam que sim. O que não aconteceria se a memória não conservasse a própria realidade significada nessa palavra” (l. 10, 20).

No capítulo seguinte, Agostinho continua a falar da lembrança da felici- dade, que não é o mesmo como lembrar-nos da cidade de Cartago ou dos números, pois o pensamento da felicidade traz consigo o desejo: “Nós, tendo conhecimento da felicidade, amamo-la. Mais ainda: queremos possuí-la, para sermos felizes”. Depois de afirmar que também não é como lembrar-se da eloquência, pergunta:

“Recordá-la-emos, então, como a alegria? Sim, talvez. Eu lembro- me da alegria passada, mesmo quando estou triste; e penso na felici- dade quando me encontro desolado. Nunca vi, nem ouvi, nem cheirei, nem gostei, nem apalpei a alegria com os sentidos corporais. Simplesmente a experiementei na alma quando me alegrei. A ideia de alegria enraizou-se-me na memória para mais tarde a poder recordar (…) Onde e quando experimentei a vida feliz para a poder recordar, amar e desejar? Não sou o único, nem são poucos os que a desejam. Todos, absolutamente todos, querem ser felizes. Se não conhecêssemos a vida feliz por uma noção certa, não a desejaríamos com tão firme von- tade. Que significa isto? Se perguntarmos a dois homens se querem alis- tar-se no exército, é possível que um responda que sim, outro que não. Se lhes perguntarmos, porém, se querem ser felizes, ambos dizem logo, sem hesitação, que sim, que o desejam, porque tão o que quer ser mili- tar como o que não quer, têm um só fim em vista: o serem felizes. Um

opta por um emprego e outro por outro. Mas ambos são unânimes em querer ser felizes, como seriam também se lhes perguntassem se queriam ter alegria. De facto, já chamam felicidade à alegria. Ainda que um siga por um caminho e outro por outro, esforçam-se por chegar a um só fim que é alegrarem-se. Como ninguém pode dizer que não experimentou a alegria, encontramo-la na memória e reconhecemo-la, sempre que dela ouvimos falar” (l. 10, 21).

Depois de ter relacionado a felicidade com a memória e também com o desejo ou o apetite, que atinge todos os homens sem excepção, e ainda de ter aproximado a felicidade da alegria, Agostinho acaba por dizer que, na sua perspectiva cristã, a alegria e a felicidade só podem consistir em Deus:

“Longe de mim, Senhor, longe do coração deste vosso servo, que se confessa a Vós, o julgar-me feliz com qualquer alegria que seja. Há uma alegria que não é concedida aos ímpios, mas só àqueles que desinteres- sadamente Vos servem: essa alegria sois Vós. A vida feliz consiste em nos alegrarmos em Vós, de Vós e por Vós. Eis a vida feliz e não há outra. Os que julgam que existe outra, apegam-se a uma alegria que não é a verdadeira” (l. 10, 22).

A felicidade é também uma questão de verdade. Por isso, Agostinho ter- mina as suas considerações, desejando uma felicidade na verdade. Todos querem ser felizes, mas nem todos buscam a verdadeira felicidade onde ela se encontra. Diz o santo doutor: “Pergunto a todos se preferem encontrar a ale- gria na verdade ou na falsidade. Todos são categóricos em afirmar que a pre- ferem na verdade, como em dizer que desejam ser felizes. A vida feliz é a alegria que provém da verdade. (…) Todos desejam esta vida feliz. Oh, todos querem esta vida que é a única feliz; sim, todos querem a alegria que provém da verdade”. Para Agostinho, novamente esta Verdade absoluta, capaz de fazer feliz, é só Deus. Por isso muitos não são felizes ou são-no mediocre- mente, porque não buscam esta Verdade absoluta que os pode fazer felizes. Preferem viver no erro, querem que seja verdade aquilo que amam, vivem na cegueira espiritual. Mas o espírito humano só será feliz quando, liberto de todas os entraves, “se alegrar somente na Verdade, origem de tudo o que é verdadeiro” (l. 10, 23).

Através do santo doutor de Hipona já percebemos alguma coisa sobre a natureza da felicidade, mas também as dificuldades em defini-la e caracte- rizá-la, dificuldades de que os psicólogos não estão isentos. Diener (2000, p. 41), um dos grandes estudiosos deste construto, afirma que o conhecimento que os psicólogos têm do bem-estar subjectivo ainda é “rudimentar”. Segundo

Wilson (1967), desde os filósofos gregos, ao longo de dois milénios, pouco se progrediu na compreensão teórica da felicidade (cf. Diener, 1984). E se é difí- cil compreender em que consiste a felicidade, mais difícil é ser feliz. Não obs- tante este é o objectivo mais profundo e último do ser humano. É por isso também um problema de educação das novas gerações. Mas os psicólogos durante muito tempo menosprezaram este construto, talvez por ser menos apreensível empiricamente ou porque andavam mais centrados na cura do que na profilaxia, no remediar do que no prevenir.

Em que consiste a felicidade? Que fazer para ser feliz? Trata-se apenas dum “fenómeno estocástico”, dependente do acaso e simplesmente conjectu- ral (Lykken e Tellegen, 1996), ou é uma conquista do sujeito que pode ser previsível e programada? Estamos perante uma emoção passageira ou perante um traço estável da personalidade? É a felicidade “alguma coisa” (Ryff, 1989) ou apenas há pessoas mais ou menos felizes? Trata-se duma simples emoção ou dum autêntico valor pessoal e social? Estamos perante um conceito complexo e muito diferenciado, havendo tantas ‘felicidades’ quantas as pessoas que se dizem felizes. Cada uma vive a felicidade à sua maneira, embora se possam encontrar traços comuns. Trata-se outrossim de um conceito sócio-culturalmente muito diversificado e transcultural (Diener, 2000).

Deve tentar-se uma teoria holística mais resistente e capaz de explicar melhor o bem-estar subjectivo e a felicidade que depende de tantos facto- res, mas onde a personalidade e os seus valores, como a amizade e a fé religiosa (cf. Myers, 2000), jogam o papel principal e controlam as diver- sas interacções com outros factores sociodemográficos e contextuais. Só uma abordagem dinâmica e interactiva entre os factores endógenos e exó- genos à pessoa é capaz minimamente de apreender e avaliar o bem-estar psicológico ou a felicidade. A muitas descrições sobre a felicidade (cf. Argyle, 1987; Wilson, 1967) falta uma sólida teoria de base (Campbell, 1976), que busque as verdadeiras razões da felicidade (Diener, 2000, p. 40).

A própria terminologia usada, para além de felicidade, e que aponta conceitos similares (alegria, contentamento, satisfação, bem-estar) indicia as dificuldades em definir e controlar a felicidade, termo que expressa uma grande carga emotiva mas que tem também uma dimensão cognitiva, pois cada pessoa representa a felicidade a seu modo. O termo “satisfação na/com a vida” realça mais a componente cognitiva. A expressão “bem- estar (subjectivo)” pode ser mais abrangente, incluindo a satisfação e pres- supondo a felicidade. Para Palys e Little (1983) uma elevada satisfação com

a vida anda associada a um envolvimento em projectos importantes a curto- prazo, altamente gratificantes e moderadamente difíceis e que podem ser úteis socialmente, contando além disso com o apoio social. Por sua vez, quando nos referimos à alegria, contentamento, júbilo e termos quejandos, subentendemos de algum modo a felicidade. Freud praticamente não usa os vocábulos “alegria” (Freude) ou “felicidade” (Glueck), mas apenas “prazer” ou “gozo” (Lust, Genuss), interpretando a felicidade essencialmente como prazer físico (cf. índice dos vocábulos principais no 18º vol. das

Gesammelte Werke, 1968). Para outros, a felicidade é mais de ordem espi-

ritual (gozo interior ou plenitude pessoal) e menos de ordem física (prazer). Segundo Rogers (1961), a felicidade depende da realização das próprias esperanças e aspirações e do nível de congruência entre o eu actual e o eu ideal. Haggins (1987) pensa também a felicidade na base da “autocongruên- cia”. Para Beck (1976) a felicidade depende da realização das próprias expectativas e da consecução dos objectivos propostos.