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Necessidade ou vontade?

No documento Literatura na universidade: para quê? (páginas 107-111)

5 O PROFESSOR E A LITERATURA

5.2.2 Necessidade ou vontade?

―Como a função estética do prazer se relaciona com outras funções do mundo cotidiano‖? (JAUSS, 1979, p. 74). A pergunta feita por Jauss encontra eco nas colocações dos professores, de Literatura, BR3 e BR4, quando entendem o trabalho com a Literatura como extensão de um interesse próprio. Ainda que as suas leituras literárias estejam vinculadas às pesquisas acadêmicas, buscam aliar as investigações ao prazer pessoal. Vale ressaltar, porém, que ambos os professores, são também escritores, o que implica conceber um engajamento estreito e particular com a Literatura porque são sujeitos que também interferem no mundo pela via da criação artística literária. Para BR3, poeta, mestre, doutor em Letras e pós- doutorado em Literatura Portuguesa, acompanhar as produções e publicações de autores contemporâneos baianos o mantém atualizado com o contexto profissional no qual está inserido. Além disso, declara que, apesar de ser uma ―leitura de trabalho‖, a pesquisa acadêmica ligada à poesia, é a sua ―grande paixão‖. Ratifica a ideia dizendo que ―se pudesse vivia de descobrir poetas novos e escrever sobre eles e se inspirar neles‖. Demonstra ser feliz em fazer o que gosta: ―trabalhar com poesia, falar de poesia, ler poesia‖:

Eu gosto muito de ler e estou cada vez mais me interessando e acompanhando os autores contemporâneos baianos. E isso eu não dou em sala de aula. Os brasileiros, em geral, eu não dou em sala de aula porque eu trabalho com Literatura Portuguesa, mas eu leio. Eu pesquiso e digo que a minha pesquisa é onde está o meu prazer. É onde está o meu prazer! Camões, eu adoro Camões, mas dar pela enésima vez o mesmo texto, então assim: às vezes eu exulto. Sei que não basta exultar diante do texto. Sei que basta eu dar a minha aula. Mas a minha pesquisa é onde eu guardo o prazer! Se eu pudesse mergulhava e não saia nunca mais. Vivia de descobrir poetas novos, escrever sobre eles, me inspirar por eles. Brasileiros ou não brasileiros. Portugueses ou não portugueses. Qualquer nacionalidade. O fato é tentar, já que eu trabalho com o que gosto, é tentar adequar o núcleo do que eu gosto que é poesia, ao meu trabalho que é Literatura Portuguesa. Tenho que tentar adequar a isso, senão fica uma alucinação, não é? BR3.

Consideração semelhante é mencionada pela professora e escritora brasileira BR4. Nas múltiplas leituras que faz durante o dia além das leituras consideradas como ―obrigatórias‖ para as disciplinas que leciona, assegura que existem horários destinados às leituras literárias. Na sua rotina, cabe um livro para ―cada hora do dia: o da manhã, o da tarde e o da noite‖ que, embora convivam, pacificamente, na mesma estante, cada um tem o seu tempo determinado e nunca se confundem. Acentua, porém, que a proposição ―do amor‖ a interessa muito porque, além de ser o seu assunto de pesquisa, é também o tema das suas escolhas de leituras literárias particulares.

Eu leio mais de um livro por dia. Então tenho o livro da manhã, tenho o livro da tarde, o livro da noite etc. Sempre tem um livro de poesia ao pé da cama. Neste exato momento, o livro de poesia que eu estou lendo é de um autor novo, chamado Daniel Jones que é da Literatura Portuguesa também. É um autor contemporâneo. Não é muito conhecido. Eu me deparei com ele e estou lendo. Esse de Miguel Souza Tavares e também estou lendo Autran Dourado, Confissões

de Narciso que é um livro pequenininho, muito gostoso, que fala

sobre o amor, que eu me interesso por esse tema. É o meu projeto de pesquisa: ―Representações do Amor na Contemporaneidade‖. Então, quase todo o livro que trabalhe de uma maneira consciente ou que tenha mitos relacionados com a ideia do amor, por exemplo,

Confissões de Narciso fala do mito do Dom Juan e do Narciso. Então

sempre que tenha, assim, algum mito que seja retomado, me interessa. BR4.

Fato que também nos leva a crer que, embora inseridos em um contexto profissional opressor de deveres e produções literárias para fins acadêmicos, os professores BR3 e BR4 procuram e encontram uma forma particular de organizar o

tempo, a fim de assegurar a contemplação, o fascínio e o prazer do passado. Para que as suas leituras não se percam no tempo atual da rapidez e das obrigações, asseguram momentos destinados à experiência estética de leitura literária. A propósito, define Ricardo Piglia ser esse um tipo particular de leitor, o ―visionário‖, o que lê para ―saber como viver‖ (PIGLIA, 2006, p. 23). Segundo o autor, essa faceta remete ao que denominou de leitor ―puro‖, ou melhor, aquele para quem ―a leitura não é apenas uma prática, mas uma forma de vida‖. (PIGLIA, 2006, p. 21). O que ressoa nas palavras de Santaella:

O livro na estante, a imagem exposta, À altura das mãos e do olhar. Esse leitor não sofre, não é acossado pelas urgências do tempo. Um leitor que contempla e medita. Entre os sentidos, a visão reina soberana, complementada pelo sentido interior da imaginação. Uma vez que estão localizados no espaço e duram no tempo, esses signos podem ser contínua e repetidamente revisitados. (SANTAELLA, 2004, p. 24)

No contexto português estudado, mesmo que ―ocasionalmente‖, as leituras literárias atuais dos professores de Literatura permanecem. As declarações dos professores PT4, PT5 e PT2, respectivamente, confirmam que o tempo e o lugar destinados à experiência estética de fruição da leitura literária estão assegurados: ―ocasionalmente alguns textos que são releituras de autores portugueses clássicos‖, diz o professor doutor em Estudos Literários. A professora mestre em Supervisão Pedagógica em Ensino do Português e doutoranda em Ciência da Educação na Especialidade em Literacias e Ensino do Português afirma que lê livros a quem chama ―prazer‖. Diz: ―neste momento, estou a ler Os irmãos Karamazov de Dostoievsky‖. Ou ainda, nas palavras do mestre e doutor em Ciência da Educação PT2: ―atualmente leio O legado de Humboldt, de Saul Bellow e Le chercheur d’or, de J.M.G. Le Clézio. Terminei, recentemente, a leitura de Raga, deste mesmo autor e O

mapa e o território, de Michel Houllebecq; antes tinha lido Era bom que trocássemos

umas ideias sobre o assunto, de Mário de Carvalho‖.

Fato e posturas que estabelecem um ―contraste entre as exigências práticas e aquele momento de quietude, de solidão, àquela forma de recolhimento, de isolamento, em que o sujeito se perde indeciso, na rede de signos‖ (PIGLIA, 2006, p. 29). Fato que se confirma ao que menciona o professor brasileiro BR1 que, durante toda a entrevista concedida, fez questão de ratificar que ―antes de ser professor, já

era escritor‖. Na sua concepção, ―a poesia é essencial‖ para a vida, tanto quanto as práticas de leitura literária: ―Leio todos os dias!‖ Menciona ainda a relevância da Literatura para a vida, ao afirmar que: ―Ela (a poesia) está acima da utilidade. É a linguagem primordial do ser humano. As descobertas humanas foram poéticas! A palavra é do poeta. Tudo no mundo fora os primeiros poetas que criaram e até hoje continuam criando‖. E continua: ―Como posso ficar sem ler e escrever poesias?‖ Com essas palavras, confirma a sua condição de poeta ao tempo em que pergunta a natureza dessa mesma condição.

Confessa ser um leitor ―multifacetado‖, razão que o faz ―circular‖ por áreas aparentemente distintas do saber e aprendizagem. Graduado em Ciências Sociais,

com mestrado e doutorado em Letras, a sua curiosidade para diferentes temas faz

com que as suas leituras não se limitem à Literatura, mas também às outras áreas do conhecimento como, por exemplo, a Filosofia, a História, a Sociologia e diferentes expressões artísticas em material impresso ou digital. Acrescenta que circula livremente por atos de leituras exigidos por cada texto e suporte. Afirma que a sua curiosidade por temas e autores variados lhe permite ampliar o conhecimento de forma a atender a uma demanda para além da sua profissão. E explica a sua opção: ―só com a variedade de leituras o conhecimento é possível, desde quando se constrói numa teia de relações e não de forma isolada. Leio tudo em tudo‖. Por seu relato se evidencia que as suas atuais leituras não se restringem ao trabalho acadêmico apenas, mas a um amplo universo que acolhe e configuram os três tipos de leitor propostos por Santaella:

O leitor do livro, meditativo, observador ancorado, leitor sem urgências, provido de férteis faculdades imaginativas, aprende assim a conviver com o leitor movente; leitor de formas, volumes, massas, interações e forças, movimentos; leitor de direções, traços, cores; leitor de luzes que se acendem e se apagam; leitor cujo organismo mudou de marcha, sincronizando-se à aceleração do mundo. (SANTAELLA, 2004, p. 30)

Por manter viva a chama da experiência estética da leitura literária, o referido professor brasileiro se diferencia do que Woolf (2007) denomina de ―leitor comum‖. Pois, para melhor repartir conhecimento ou corrigir opiniões alheias, não mais se deixa guiar pelo instinto de criar para si mesmo, à margem de quaisquer ―outras miudezas que possam assemelhar alguma espécie de plenitude – o retrato de um

homem, a descrição de uma época ou uma teoria‖ (WOOLF, 2007. p. 11). Ou seja, aquele para quem a leitura literária representava a satisfação do seu próprio prazer e o encanto da descoberta - que marcaram a sua formação literária de outrora – permanece nos dias atuais como um leitor curioso e ―multifacetado‖. Ávido na busca da multiplicidade de sentidos demonstra ser um leitor incansável. As suas leituras, atuais, representam um compromisso efetivo, cujo objetivo é alcançar um resultado satisfatório, não apenas para satisfazer a uma necessidade pessoal, mas também para atender à necessidade coletiva de formação literária – o dever da profissão: formar o leitor literário, os seus alunos de Letras.

No documento Literatura na universidade: para quê? (páginas 107-111)