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2. Capítulo II: Argumentos Tópicos e a Influência Aristotélica em Boécio

2.2 As Categorias: Predicados, Predicáveis, Predicativos e Condicionais

2.2.2 Necessidade e Verdade

Boécio frequentemente usa verdade e necessidade como termos intercambiáveis apesar de que seus escritos estabelecem significados distintos para eles em certos pontos, como no Livro V da Consolação71. O autor, de modo

algum, coloca em dúvida a definição de necessário de que algo é e não pode ser de outra forma. Dado que, para que os predicáveis de differentia e gênero sejam usados de modo intercambiável, ele oferece certos esclarecimentos, parece-nos adequado, aqui, também, considerar tais esclarecimentos em relação a suas considerações sobre necessidade. Boécio considera que argumentos tópicos podem ser necessários, falsos ou convincentes/plausíveis. Um argumento pode ser convincente ao mesmo tempo em que é necessário ou falso, pois sua plausibilidade não depende de como as coisas são e, sim, da crença que inspira naquele para quem tal argumento é apresentado.

É possível, assim, que um argumento necessário sequer seja um argumento. Isso se dá, simplesmente por tal argumento ser incapaz de convencer, ainda que isso não o torne falso. Nesses termos, o autor entende que

70 Tradução livre de: (…) a definition, he says, is na expression. Signifying the essence of

something, and a definition consists of the genus and the differentiae of what is being defined. STUMP, E. Differentia and the Porphyrian Tree. In.: STUMP, E. (trad.) De topicis differentiis, 1978, p. 238.

71 Não discutiremos os diferentes tipos de necessidade em Boécio, restringindo nossa definição

a sua concepção de necessidade lógica. Assim, cabe ressaltar que, por verdade entendemos uma declaração verdadeira e por necessidade entendemos aquilo que é e não pode ser de outra forma. Parece ser o caso que Boécio entende verdade lógica por algo necessariamente verdadeiro, o que lhe permite identificar uma verdade como um fato necessário.

algo é necessário se, e somente se, também for verdadeiro, mas não obrigatoriamente convincente. Portanto, uma vez que Boécio declare que algo é necessário, declara que esse mesmo algo é também verdadeiro. Mais do que isso, o filósofo defende que a lógica aristotélica é a mais adequada por ser aquela que é mais provável de causar crença em sua argumentação, uma vez que se utilize proposições verdadeiras. Isso se dá porque “se um silogismo vai de universais para particulares; e se for composto de proposições verdadeiras, há nele uma verdade certa e imutável”72 (BOÉCIO, 1978, [1184A] 5-8, Livro II, p. 45, tradução nossa). Por outro lado, considerar algo como verdadeiro e não- necessário não parece ser uma preocupação do autor.

Em se tratando de necessidade, o autor também considera a questão proposta por Aristóteles na obra Da Interpretação. Tais considerações estão intimamente ligadas ao Livro V da Consolação, onde Boécio considera a necessidade da presciência divina e o determinismo73 resultante de tal tese. Ainda que “(…) se Deus sabe agora o que devo fazer amanhã, então parece que o que devo fazer já está determinado, ou que tenho o poder de amanhã converter o conhecimento de Deus de hoje em uma falsa crença”74 e que Boécio, de fato,

72 Tradução livre de: For a syllogism moves from universals to particulars; and if it is made up of

true propositions, there is in it certain and unchangeable truth. BOÉCIO. STUMP, E. (trad.) De

topicis differentiis, 1978, [1184A] 5-8, Livro II, p. 45.

73 Trataremos tal tipo específico de determinismo pelo nome de Fatalismo Teológico, seguindo a

formulação básica de Zagzebski: “(1) Ontem Deus infalivelmente acreditava que T. [Suposição de presciência infalível]; (2) Se E ocorreu no passado, é agora-necessário que E tenha ocorrido. [Princípio da Necessidade do Passado]; (3) É agora-necessário que ontem Deus tenha acreditado que T. [1, 2]; (4) Necessariamente, se ontem Deus acreditava que T, então T. [Definição de “infalibilidade”]; (5) Se p é agora-necessário e necessariamente (p → q), então q é agora necessário. [Transferência do Princípio de Necessidade]; (6) Então é agora-necessário que T. [3, 4, 5]; (7) Se é agora-necessário que T, então não se pode fazer qualquer outra coisa que atender ao telefone amanhã às 9 AM. [Definição de “necessário”]; (8) Assim sendo, não se pode fazer qualquer outra coisa que atender ao telefone amanhã às 9 AM. [6, 7]; (9) Se não se pode fazer diferente quando se age, não se age livremente. [Princípio das Possibilidades Alternadas]; (10) Dessa forma, quando se atender o telefone amanhã às 9 AM, não se fará tal coisa livremente. [8, 9”]. Tradução livre de: Basic Argument for Theological Fatalism: (1)Yesterday God infallibly believed T. [Supposition of infallible foreknowledge]; (2) If E occurred in the past, it is now-necessary that E occurred then. [Principle of the Necessity of the Past]; (3) It is now-necessary that yesterday God believed T. [1, 2]; (4) Necessarily, if yesterday God believed T, then T. [Definition of “infallibility”]; (5) If p is now-necessary, and necessarily (p → q), then q is now-necessary. [Transfer of Necessity Principle]; (6) So it is now-necessary that T. [3,4,5]; (7) If it is now-necessary that T, then you cannot do otherwise than answer the telephone tomorrow at 9 am. [Definition of “necessary”]; (8) Therefore, you cannot do otherwise than answer the telephone tomorrow at 9 am. [6, 7]; (9) If you cannot do otherwise when you do an act, you do not act freely. [Principle of Alternate Possibilities]; (10) Therefore, when you answer the telephone tomorrow at 9 am, you will not do it freely. [8, 9]. ZAGZEBSKI, Linda, Zagzebski, Linda. Foreknowledge and Free Will, 2011.

74 Tradução livre de: (…) if God knows now what I shall do tomorrow, then it seems that either

preocupe-se com tal problema e suas complicações, cabe ressaltar que a questão ainda trata da bivalência de proposições. Dado que o acontecimento de um evento seja x e não acontecimento do mesmo evento seja ~x, será necessariamente verdadeiro que ou x é verdadeiro e ~x é falso ou x é falso e ~x é verdadeiro. Dessa forma, ou algo se verifica na realidade ou não se verifica na realidade, sendo assim ou necessário ou falso.

Aplicando tal conclusão ao conhecimento divino, Boécio aceita que Deus ou conhece tudo que é, foi e será ou ele não conhece tudo que é, foi e será. Enquanto o conteúdo da questão implica uma complexidade maior que sua estrutura, sua forma ainda a considera apenas em termos de leis do pensamento75. É o caso que apenas um lado da conjunção pode ser verdadeiro, pois trata-se de uma coisa e da negação dessa mesma coisa. Uma vez que Boécio aceite um dos lados como verdadeiros, tal verdade passa a ter o peso de necessidade, pois ele considera que uma verdade só é verdade se for verificada na realidade e, se pode ser verificada, é porque as coisas são assim e não podem ser de outra forma. Desse modo, uma vez que aceite o conhecimento divino como a única conclusão logicamente possível, tudo que lhe resta é justifica-la.

Dado que Aristóteles argumenta que uma vez que se afirme que, se algo será verdadeiramente, é necessário que seja, ao aceitar o conhecimento divino do futuro, Boécio aceita que há um ser capaz de tornar o futuro necessário apenas por conhecê-lo. Aristóteles argumenta que não é possível afirmar ou negar qualquer coisa sobre eventos futuros e, apesar de sua discordância, não há uma refutação quanto a isso por parte de Boécio. O homem, de fato, não pode afirmar ou negar qualquer coisa verdadeiramente sobre o futuro, pois o homem não tem acesso ao conhecimento necessário para atribuir o valor de verdade correto a uma proposição sobre eventos futuros.

Digo, por exemplo, que necessariamente, acontecerá uma batalha naval amanhã ou não acontecerá; em verdade, nem acontecerá

God's knowledge today into a false belief. MARENBON, John. Anicius Manlius Severinus

Boethius, 2013.

75 Por leis do pensamento entende-se as três verdades lógicas encontradas em Aristóteles, a

saber, 1. O princípio da bivalência (toda proposição é ou verdadeira ou falsa); 2. Princípio da não-contradição (é impossível para a mesma coisa ser e não ser simultaneamente) e 3. Princípio do terceiro excluído (dado P e ~P, é necessário afirmar ou P ou ~P, sendo que P é ou verdadeiro ou falso e ~P é ou verdadeiro u falso).

necessariamente a batalha naval amanhã, nem necessariamente não acontecerá. Todavia, acontecerá ou não acontecerá necessariamente. (ARISTÓTELES, 2013, 21)

Através da interpretação De Boécio, o que Aristóteles propõe passa a ser dividido de acordo com os Modos de Cognição76. Enquanto o homem tem acesso

apenas ao conhecimento que lhe permite concluir que acontecerá ou não acontecerá necessariamente, Deus é capaz de conhecer que algo acontecerá necessariamente ou não acontecerá necessariamente77.