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1. O DIREITO À SAÚDE E O DEBATE DA SAÚDE NA FRONTEIRA

1.4. NECESSIDADES DE SAÚDE COMO PRESSUPOSTO DA INTEGRALIDADE

A definição de necessidades de saúde envolve os princípios da integralidade e de eqüidade em suas diferentes dimensões, dado que o risco de uma pessoa estar saudável ou morrer reflete as desigualdades sociais ou individuais experimentadas pelas pessoas e determinantes desse estado.

Nas colocações anteriores, observou-se que a definição de necessidades de saúde sinaliza as desigualdades sociais e individuais experimentadas pelas pessoas, uma vez que, essas desigualdades, determinam os riscos de uma pessoa apresentar um estado saudável ou adoecer. Tais apontamentos descrevem por si as desigualdades em saúde vividas na sociedade brasileira, que afastam o país dos mínimos essenciais de concepção de modernidade enfatizada pelo neoliberalismo.

Assim, verifica-se que, romper com as disparidades e atender as necessidades de saúde, requer a construção de um sistema de saúde pública integral e equânime. Logo, é necessário pensar a integralidade para além daquela definida constitucionalmente, que reza “a

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integralidade da Assistência, entendida como um conjunto articulado e continuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema” (CARVALHO e SANTOS, 1995, p.76).

Diante do exposto, verifica-se que, para romper com as disparidades e atender as necessidades de saúde de uma população, é necessária a adoção da prática da integralidade como uma “bandeira de luta”, conforme pontua Mattos (2004), bem como adotar a eqüidade como uma possibilidade de superação das desigualdades.

Constata-se que a integralidade é um conceito introduzido na Constituição de 1988 (Art.198), enquanto uma tentativa de associar os universos micro e macro da saúde como se observa a seguir:

[...].numa primeira aproximação, a integralidade, é uma das diretrizes básicas do Sistema Único de Saúde, instituído pela Constituição de 1988. De fato, o texto constitucional não utiliza a expressão integralidade; ele fala em “atendimento integral”, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais (Brasil, 1988, art.198). Mas o termo integralidade tem sido utilizado corretamente para designar essa diretriz (MATTOS, 2004, P.31).

Juntamente com a eqüidade, universalidade e a participação da comunidade, a integralidade foi inserida no texto constitucional de 1988, como uma das conquistas do movimento sanitário brasileiro.

A partir desse marco, a saúde passou a ser apreendida como direito de todos e dever do Estado, garantida mediante a adoção de políticas sociais e econômicas voltadas para a “redução dos riscos de doenças e de outros agravos”. O acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde, de promoção, de proteção e recuperação, necessitou da implementação de um Sistema Único de Saúde, no qual as ações e serviços de saúde devem estar integrados.

O sistema único de saúde garantido a toda população brasileira deveria ser organizado a partir das seguintes diretrizes, conforme Constituição Federal: descentralização com direção única em cada esfera de governo; atendimento integral; e participação da comunidade e financiamento público.

Tais premissas não refletiam as posturas assumidas no cenário internacional da época, pois o debate mundial apontava para os países em desenvolvimento a implementação e a formulação de políticas de saúde minimizadas. Tais apontamentos respaldavam-se nas propostas de ajustes estruturais pautadas no avanço das idéias neoliberais no cenário global, que requisitavam a redução do papel do Estado tanto na economia como em algumas questões relacionadas ao social.

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Essas posturas, na segunda metade dos anos 1 980, se apresentavam no cenário da saúde a partir de propostas reducionistas da intervenção e participação do Estado nesta área, como reiterava o documento do Banco Mundial de 1987 (p.3) “a abordagem mais comum

para cuidados de saúde nos países em desenvolvimento tem sido tratá-lo como direito do cidadão e tentar prover serviços gratuitos para todos. Essas abordagens geralmente não funcionam”.

Partindo-se dos antagonismos entre as proposições, considera-se oportuno, então, apreender e refletir acerca dos sentidos que vêm sendo atribuídos à integralidade e como ela vem sendo materializada nas práticas de saúde com vistas a atender as necessidades de saúde. Tomando-se por base que a concepção de saúde inscrita no texto constitucional descreve uma definição ampliada do conceito de integralidade que ultrapassa as definições insinuadas e referenciadas pelo Banco Mundial, pautadas na economia da saúde, na competitividade, na focalização, na seletividade da ação pública e no método das ciências administrativas. Observa-se que o SUS se constituiu como um projeto de ruptura com as práticas conservadoras e tradicionais centradas na prática hegemônica da medicina, iluminado por princípios e diretrizes dentre as quais se destaca a integralidade (CARVALHEIRO, 2000). De acordo com Camargo Jr. (2001), o termo integralidade abarca um conjunto de teses argumentativas de tendências cognitivas e políticas em torno da saúde, que impossibilita reconhecê-la enquanto um conceito. Desta forma entende o autor que,

[...] é forçoso reconhecer que a integralidade é uma palavra que não pode nem ao menos ser chamada de conceito. Na melhor das hipóteses, é uma rubrica conveniente para agrupamento de um conjunto de tendências cognitivas e políticas com algumas imbricações entre si, mas não completamente articuladas. Pode identificar, a grosso modo, um conjunto de tradições que desembocam nesse agregado semântico por um lado um discurso propagado por organismos internacionais, ligados a idéias de atenção primaria e de promoção de saúde; por outro, a própria demarcação de princípios identificados em pontos esparsos da documentação oficial das propostas de programas mais recentes do Ministério da Saúde em nosso país (CAMARGO JR., 2003, p.36).

Esta imprecisão conceitual tem reunido intelectuais da área da saúde em torno da produção de conhecimento e sentidos da integralidade, no intuito de qualificar as ações e serviços oferecidos pelo SUS.

Mattos (2004), pontua que um dos primeiros sentidos da integralidade correlaciona-se à medicina integral identificada no debate do ensino médico que criticava as ações cada vez mais fragmentadas desses profissionais na relação médico/paciente. Nessa discussão questionavam-se as especialidades médicas que, além de fragmentar a prática,

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impossibilitavam a apreensão das reais necessidades de saúde de seu paciente. Dessa forma, a medicina integral se contrapôs ao conhecimento e à formação médica especializada por sua centralidade no modelo biologicista, em detrimento às questões psicológicas e sociais.

Os críticos integrantes da medicina integral se ocuparam com a construção de propostas curriculares diferenciadas, donde se apostava com novas bases de formação que alterariam as acepções relativas ao adoecimento, pela introdução da necessidade de conhecimentos relativos às sociedades e aos contextos culturais para alteração e construção de uma nova relação médico/paciente.

Gradativamente, a prática da medicina integral foi assumindo outros sentidos, tais como: a biomedicina, que, ao se estruturar e ter legitimidade social na cultura brasileira como uma profissão, busca reconhecer as doenças que produzem sofrimentos e formas de enfrentá- las, permitiu à medicina se antecipar ao sofrimento e até mesmo à doença, introduzindo novas técnicas profissionais as quais denominamos de diagnóstico precoce.

A posteriori, essa nova técnica possibilitou a adoção da medicina preventiva, que apesar de ser altamente medicalizante, permitia, com certa eficácia técnica, prevenir doenças a partir do conhecimento antecipado, incidindo, dessa forma, como regulador de aspectos da vida social através de recomendação de hábitos e comportamentos saudáveis.

Porém, a prática da medicina integral apresentava suas limitações, a partir da constatação de que as necessidades de saúde responsáveis pela busca de serviços não se reduzem somente à perspectiva de solução do sofrimento gerado por uma doença. A não apreensão e compreensão do conjunto de necessidades de saúde que um usuário apresenta, determinou o fim da expansão da medicina integral, pois esta percepção era a marca ou o sentido maior da integralidade na atenção a saúde.

A medicina integral aportava um limite por privilegiar apenas a relação médico/paciente, deixando de visualizar e enfatizar a participação de outros trabalhadores da saúde na busca dos usuários pelo sistema. Assim, pode-se afirmar que a identificação das necessidades de saúde dos cidadãos, de forma mais ampla deve ser incorporada e definida pelo conjunto de profissionais de saúde.

Com efeito, identifica-se que a integralidade não é atributo específico da medicina, pois quando o assistente social intervém em uma situação para constatar e apreender os problemas de saúde que afligem certo usuário, esse profissional aplica a integralidade, para auxiliar na realização do diagnóstico.

A integralidade, a partir desta exposição, pode ser pensada em diferentes dimensões, como reitera Cecílio (2004). Uma dimensão é a da focalizada, aquela realizada e praticada nos

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diversos serviços de saúde, fruto de esforços de diferentes equipes multiprofissionais que buscam realizar ações interdisciplinares. Observa-se que nesses espaços sócio-institucionais a integralidade se realiza pelo compromisso ético-político e competência técnica dos profissionais a partir da relação com o usuário: ouvir cuidadosamente, apreender, compreender e analisar para identificar as necessidades de saúde da população.

Pode-se identificar uma segunda dimensão dessa idéia de integralidade que é a ampliada. Segundo Cecílio (2004), esta deve ser visualizada como resultado da articulação de cada serviço com a rede complexa composta por todos os outros serviços e instituições.

Mattos (2004), propõe uma discussão calcada no pressuposto de que o termo integralidade designa atributos desejáveis na configuração de um sistema de saúde e nas próprias práticas de saúde, atributos que contrastavam com aspectos das práticas e da configuração do sistema de saúde existente. A integralidade neste contexto assume um sentido diferenciado para além da diretriz do SUS, como pontua Mattos (2004, p.38),

[...] a integralidade não é apenas uma diretriz do SUS definida constitucionalmente. Ela é uma “bandeira de luta”, parte de uma “imagem objetivo”, um enunciado de certas características do sistema de saúde, de suas instituições e de suas práticas que são consideradas por alguns (diria eu, por nós) desejáveis. Ela tenta falar de um conjunto de valores pelos quais vale lutar, pois relacionam a um ideal de uma sociedade mais justa e mais solidária”.

Mattos (2004), ao pensar a integralidade a partir desse pressuposto, aponta para a noção de que a “imagem objetivo” tem sido utilizada na área de planejamento para designar certa configuração de um sistema, ou de uma situação em que alguns atores na arena política consideram desejável. Neste sentido, essa conceituação se diferencia de uma utopia pelo fato de que os atores que a sustentam julgam tal configuração como uma possibilidade de tornar-se real num horizonte temporal definido.

Dessa forma, considera-se “imagem objetivo” a premissa, o desejo de construir algo diferente daquilo que já existe. Logo, supõe uma nova direção a ser assumida com vistas à transformação da realidade social, partindo de um pensamento crítico que recusa e se indigna com o existente e busca superá-lo. A “imagem objetivo” é movimento, contradição, inspiração, superação, proposição, reflexão e construção diferente do já existente.

A “imagem objetivo” parte de definições generalistas. Por não prever um projeto específico, ela engendra interesses distintos que, em um dado momento, aglutina-os, de acordo com as semelhanças e ideais. Neste sentido, uma “imagem objetivo” não se descreve de uma vez por todas como uma realidade social a ser construída. Deve se materializar, pois

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ela traz consigo múltiplas determinações carregadas de possibilidades de realidades futuras que poderão ser concretizadas a partir de nossas lutas.

Com base no exposto, verifica-se que a integralidade incorporada ao cenário das lutas sociais do movimento sanitário é plena de sentidos que não se expressa numa resposta unívoca. Ela engendra diferentes significados dados pelos atores sociais que buscam transformar a realidade da saúde pública brasileira.

Para tanto, afirma-se que a integralidade assume um eixo central com sentido de direcionar as novas formas de agir social na saúde. Mais do que isso, o conceito ampliado de integralidade é um eixo norteador e regulador do devir, trazendo no seu interior a idéia de que cada pessoa, com suas múltiplas determinações, singularidades e necessidades de saúde, é sempre o foco, a razão do existir de cada serviço e do Sistema Único de Saúde na sua totalidade.

Essas indicações levam a pensar na existência de uma integralidade ampliada com escuta eficiente, apreensões e análises particulares, capazes de reconhecer as situações singulares de cada busca de saúde, proporcionando um fácil reconhecimento das iniqüidades e dos determinantes sociais como necessidades de saúde que não foram e não são atendidas.

Um outro sentido da integralidade, destacado por Mattos (2004), relaciona este princípio e a formulação de políticas de saúde. Demarca o autor que a integralidade engajou e forçou um sentido na discussão e formulação de políticas no campo da saúde a partir dos anos 70, “quando não pareceu mais aceitável a existência de uma política voltada a ofertar serviços assistenciais descompromissada com as conseqüências dessa oferta sobre o perfil epidemiológico da população” (MATTOS, 2003, p.51).

Este sentido da integralidade reitera a articulação entre as ações preventivas e assistenciais, enfatizando as recomendações inscritas no texto constitucional de 1988, que destaca o atendimento integral sem prejuízo da assistência (Mattos, 2003). O eco da integralidade neste debate reside em que “as ações assistências respondem a uma percepção das necessidades de saúde dos usuários enquanto as ações preventivas se enquadram na perspectiva de modificar o quadro social de doença, podendo inclusive alterar a demanda futura” (MATTOS, 2003, p.53).

Esta reflexão demonstra que a integralidade na formulação das políticas de saúde requisita uma ação imediata e articulada na atenção das necessidades e dos determinantes sociais de saúde, seja ela justificável por parâmetros técnicos ou não. Assim, o sentido da integralidade nas políticas de saúde se “volta tanto para a garantia do direito dos portadores

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de certas doenças ás ações assistenciais quanto para o direito dos não-portadores de se beneficiarem de ações preventivas”. (MATTOS, 2003, p.55).

Nesta direção, a integralidade vai incorporar o sentido de um modo ampliado de apreensão das necessidades de saúde, à medida que este princípio evoca dos formuladores das políticas de saúde a compreensão e interpretação das necessidades da população que não podem ser realizadas através apenas de indicadores epidemiológicos, mas devem ser levadas em conta às condições de vida e de trabalho.

A construção de práticas sanitárias integrais requer a organização de um sistema de saúde que privilegie “um misto de praticas sanitárias e sociais intervindo nas múltiplas

dimensões do processo saúde/doença, em busca de resultados capazes de satisfazer tanto as necessidades individuais quanto às necessidades coletivas de saúde, tal como detectada e processada técnica e politicamente” (GIOVANELLA, et all, 2002, p.45).

Assim, a integralidade, enquanto diretriz e eixo estruturante para a organização de um Sistema de Saúde, coloca-se como um princípio a partir do qual é possível apreender a dinamicidade e a peculiaridade dos processos sociais e de saúde na fronteira. Trata-se, portanto, de se qualificar e configurar a universalidade pela integralidade no sentido de garantir, como universais, respostas integrais às necessidades de saúde de cada um ( Fórum Social Mundial, 2005).

Neste sentido, a integralidade deve remeter-se,

[...] a integralidade da atenção por referência a uma concepção afirmativa da saúde, entendida como um processo de produção social influenciado por fatores de diversas naturezas e que se expressa num nível de qualidade ou vida. [...] a saúde deixa de ser resultado de uma intervenção especializada e isolada sobre alguns fatores e passa a ser um produto social resultante de fatos econômicos, políticos, ideológicos e cognitivos. Define-se, então, como campo de conhecimento que exige a interdisciplinaridade e como campo de praticas que exige a intersetorialidade. (GIOVANELLA, et all, 2002, p.44-45).

A integralidade se caracteriza, assim, como uma diretriz que permite a ampliação das práticas sanitárias, por apreender as demandas de forma contextualizada e historicamente situadas, capazes de abarcar a complexidade de relações sociais, presentes na dinâmica societária enquanto resultante de um ordenamento social provocado pelo aprofundamento do capitalismo. Mais do que isso, a integralidade permite a apreensão da “demanda que é

construída cotidianamente, fruto de um inter-relacionamento entre as normas e práticas que orientam os diferentes atores envolvidos, que formulam e programam políticas de saúde, seja de uma localidade, de um estado ou país”( PINHEIRO, et all 2005, p.12).

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