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Necessidades Sociais e Mínimos Sociais

Na história da sociedade de classes (desde o modo de produção escravista, passando pelo feudal e chegando ao capitalista) sempre houve a necessidade de provisão dos parâmetros mínimos de subsistência, como forma emergencial de minimizar os efeitos da pobreza extrema, garantindo a força de trabalho necessária à produtividade. “Tratava-se, portanto, os mínimos sociais, de provisão social residual, arbitrária e elitista, que se constituía e processava a margem da ética, do conhecimento científico e dos direitos vinculados à justiça distributiva” (PEREIRA, 2011, p. 16-17).

Somente no século XX é que os mínimos de subsistência passaram a ter uma vinculação com os princípios da sociedade moderna (liberdade, justiça e equidade), desvencilhando-se de sua conotação de sobrevivência biológica/natural e, enfim, adquirindo o status de direito a ser garantido por políticas formuladas e praticadas na esfera pública.

Disso resultou uma concepção de proteção social que, a par de requerer uma base de sustentação empírica indispensável à elaboração de diagnósticos, explanações teóricas e predições confiáveis, pauta-se simultaneamente por valores e paradigmas democrático-cívicos. (PEREIRA, 2011, p. 17-18).

As necessidades sociais somente se concretizam em políticas quando são problematizadas, quando são capazes de perturbar uma ordem estabelecida. Assim, a ação cidadã (assumida, por classes, organizações, grupos ou indivíduos) faz com que uma necessidade social assuma relevância tal que passa a ser incorporada na agenda de prioridades públicas e que, com a legislação pertinente, acaba se transformando num direito, embora nem sempre vivenciado em sua plenitude. Em cada conquista, em termos de política de satisfação de necessidades, está implícita uma questão social posta numa arena de conflitos de interesses.

Pressupondo que os mínimos sociais correspondem às necessidades fundamentais a serem satisfeitas por políticas sociais, para que possamos falar em qualidade de vida, certamente estamos evidenciando um cenário bastante complexo, a partir do qual são necessárias maiores reflexões e aprofundamentos. Um dos primeiros pontos a serem explicitados, refere-se ao fato de que “a sociedade é aqui considerada como um todo orgânico, e não como a soma aritmética dos indivíduos que a compõem, e, por isso, as necessidades humanas, sendo sociais, não têm identificação com preferências dos membros dessa sociedade” (PEREIRA, 2011, p. 33).

García-Viniegras (2008, p. 23) fala da dimensão objetiva da existência em uma sociedade, que ultrapassa as questões de preferências pessoais: “hay que explorar qué necesita el ser humano para vivir, con qué recursos realmente cuenta para poder satisfacer sus necesidades, como es su realidad y en qué medida el medio social le permite satisfacerlas”. A autora faz o alerta, uma vez que percebe as múltiplas conotações de necessidades sociais as quais podem assumir versões tão genéricas e amplas ou tão restritas e subjetivas, que impossibilitam sua vinculação com políticas e garantias de direitos sociais.

Pereira (2011) também refere à questão da inespecificidade das interpretações sobre necessidades sociais e a confusão das mesmas com outras noções. Isso acarretaria, não somente a deliberação de formas de satisfação confusas e voluntaristas, como a não concretização de direitos.

Frequentemente, necessidades sociais são consideradas como: falta ou privação de algo (tangível ou intangível); preferência por determinado bem ou serviço em relação a outro ou a outros; desejo, de que psicologicamente se sente carente de alguma coisa;

compulsão por determinado tipo de consumo, movida pela dependência ou pelo uso repetitivo ou viciado desse consumo; demanda como procura por satisfação econômica, social ou psicológica de alguma carência. Há ainda quem confunda necessidade com motivação, expectativa ou esperança de obter algo de que se julga merecedor, por direito ou promessa. (PEREIRA, 2011, p. 39-40).

Essas interpretações acabam por fortalecer muito o discurso neoliberal de ataque às providências tomadas pelo Estado, no sentido de propor políticas que garantam os direitos sociais, muitas vezes, conquistados a partir de movimentos democráticos que protagonizaram muitas lutas. Necessidades humanas transformadas em direitos sociais não podem ser negadas, pois são comuns a todos numa sociedade. Entretanto, a satisfação dessas necessidades ou o exercício desses direitos não se dão de maneira uniforme, como já referido.

De acordo com a autora, mesmo que não haja uniformidade na satisfação de necessidades humanas básicas é possível reconhecer alguns requisitos essenciais à existência, chamados pela mesma de “satisfatores universais”. Esses “satisfatores” se tornam “essenciais à proteção da saúde física e da autonomia e à capacitação dos seres humanos para participar o máximo possível das suas formas de vida e cultura” (PEREIRA, 2011, p. 75).

Definir necessidade social é extremamente difícil, em função dos múltiplos fatores e interpretações advindas desse conceito.

No processo de desenvolvimento humano, as necessidades se desenvolvem, mudam, surgem novas necessidades, algumas inclusive negativas para a vida. Ainda no mesmo processo, como implicação das desigualdades sociais, introduzem-se desigualdades na satisfação das mesmas necessidades. (STOTZ, 1991, p. 72).

Porém, quando necessidade social está associada à qualidade de vida, também García-Viniegras (2008) diz que é possível recorrer a indicadores quantitativos e qualitativos, numa tentativa de aproximação de sua compreensão. “La cantidad de vida se expresa fácilmente en indicadores tales como esperanza de vida en anos y las tasas de mortalidad, pero la calidad requiere otro tipo de indicadores y, como es lógico, cierto patrón de referencia” (GARCÍA-VINIEGRAS, 2008, p. 15).

As necessidades de saúde, ainda que estejam sob a determinação social e histórica (assumindo um caráter normativo), possuem sua dimensão individual, naquilo que o indivíduo sente e expressa. Então, reforçamos a tese de que necessidade social de saúde deve ser compreendida na relação dialética entre o individual e o social.

1. A necessidade normativa: é a que define o técnico, o profissional, o administrador, em relação a uma determinada norma desejável ou ótima. Aquele ou aqueles que não respondem a esta norma são considerados em estado de necessidade [...].

2. A necessidade sentida: refere-se à percepção que as pessoas têm sobre seus problemas de saúde ou o que desejam como serviços de saúde.

3. A necessidade expressa: equivale à demanda de cuidados e de serviços, a necessidade sentida que finaliza (objetiva) em processo de busca de serviços. Com efeito, alguns indivíduos não recorrem aos serviços ainda que sintam uma necessidade; outros não percebem que tem a necessidade embora a tenham; finalmente, alguns expressam esta necessidade, porém não necessariamente veem esta demanda satisfeita ou pelo menos da forma que eles esperavam. (STOTZ, 1991, p. 60-61).