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Política de Atenção à Saúde da População Brasileira

3 SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE E FORMAÇÃO DE

3.1 Política de Atenção à Saúde da População Brasileira

O Sistema Único de Saúde (SUS) é como o nome refere o sistema de saúde oficialmente reconhecido no território brasileiro, tendo formalmente sido estabelecido na Carta Constitucional de 1988. A sua incorporação na Constituição foi configurada mediante proposições que vinham sendo debatidas pelo movimento da Reforma Sanitária, principalmente no que se refere às mudanças necessárias ao papel do Estado. Houve uma reescrita do arcabouço jurídico-institucional da saúde pública no Brasil, remetendo a diretrizes válidas para toda a nação.

O SUS “é composto pelo conjunto organizado e articulado de serviços e ações de saúde integrantes das organizações públicas das esferas municipal, estadual e federal, além dos serviços privados como elementares” (AGUIAR, 2011, p. 46).

Embora a existência formal do SUS tenha como marco a Constituição Federal, a sua formalização foi amplamente debatida durante a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, momento em que a sociedade brasileira já se encontrava ansiosa por mudanças. Os princípios que fundamentaram essa institucionalização tiveram origem, como já comentamos, nos movimentos sociais das décadas de 1960, 1970 e inícios dos anos de 1980, em prol de uma reforma sanitária.

A 8ª CNS representou o evento político-sanitário mais importante da segunda metade do século XX, onde foram lançadas as bases doutrinárias de um sistema público de saúde para o Brasil. Essa conferência colocou em pauta três aspectos necessários à reforma sanitária: um conceito amplo de saúde que extrapola a visão meramente biologicista; a saúde como direito de cidadania e obrigação do Estado; e a instituição de um sistema único pautado pelos princípios da universalidade, da integralidade, da equidade, da descentralização e da participação da comunidade. (AGUIAR, 2011, p.

46).

Trazendo grandes princípios doutrinários, o Sistema Único de Saúde coloca a universalidade, a equidade e a integralidade da atenção como pauta de organização dos serviços prestados à população. Já os princípios organizativos contemplam a descentralização, a regionalização e a hierarquização do sistema, bem como a participação popular e o controle social.

A universalidade, a equidade e a integralidade dependem efetivamente de uma rede devidamente articulada de serviços e recursos, envolvendo todos os níveis de complexidade do sistema. Todo o cidadão brasileiro, por esses princípios, teria acesso a um conjunto de ações relacionadas entre si (preventivas e curativas), de baixa, média e alta complexidade, ou seja, a esse cidadão que procura a rede é oferecida a assistência e o acompanhamento de seu tratamento, através do processo de referência e contra referência no SUS.

Entretanto, para que possa prover as ações derivadas de seus princípios, o sistema precisa da conjugação dos recursos de todas as esferas: União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

Nesse sentido, a formalização de repasses financeiros fundo a fundo, convênios e acordos entre as esferas governamentais por meio de pactuação entre gestores é fundamental. O objetivo maior seria o de oferecer um serviço final de qualidade a todos os entes da federação.

Na Figura 04 temos as esferas governamentais e suas respectivas entidades gestoras.

Entretanto, cabe referir que a hierarquização somente funciona quando a logística da rede de atendimento está presente.

Figura 04 – SUS: Esferas governamentais

Fonte: PINTO, 2013, s. p.

Para fins das discussões empreendidas nessa tese, cabe salientar o princípio da regionalização, que mais tarde será aprofundado. A regionalização é vista como uma alternativa de descentralizar as ações de saúde, a partir da construção de redes de atenção que devem permitir acesso aos diferentes níveis de assistência, com resolutividade e qualidade.

A essas redes, propõe-se o termo “Regiões de Saúde”, definidas como recortes territoriais inseridos em um espaço geográfico contínuo, identificadas pelos gestores municipais e estaduais a partir de identidades culturais, econômicas e sociais, de redes de comunicação e infraestrutura de transportes compartilhados do território. (LIMA;

LOBO; ACIOLI, 2011, p. 104).

Na configuração das redes estão envolvidas as pactuações de responsabilidade dos gestores municipais (atenção básica, ações de vigilância em saúde...) e estaduais, responsáveis, quando necessário, pela complementação da atenção de média complexidade, por meio da constituição de macrorregiões.

A regionalização é uma importante diretriz do Sistema Único de Saúde devendo orientar a descentralização de ações, recursos e serviços, por meio dos processos de negociação e pactuação entre os gestores. Nos Planos Estaduais de Saúde é possível verificar essa diretriz e suas especificidades.

Na sequência, segue uma representação (Figura 05) de uma rede regionalizada de atenção, onde na microrregião é necessário que se alcance a suficiência na atenção básica e na média complexidade. Já na macrorregião deve haver a preocupação com a atenção de alta complexidade, além das necessidades da vigilância em saúde.

GESTOR

Ministério da Saúde Comissão Tripartite Conselho Nacional

Secretarias

Figura 05 – SUS: Regionalização

Fonte: Adaptado de PINTO, 2013, s. p.

O sistema de saúde do Brasil não pode ser analisado de forma descontextualizada, pois ele é fruto de transformações sofridas nas dimensões político-econômicas dos diferentes momentos históricos. Assim, é possível identificar na política de saúde do nosso país a estreita relação com a ótica capitalista nacional que, por sua vez, também sofre influência da lógica capitalista internacional.

A saúde pública não se constituía em prioridade dentro da política do estado brasileiro, recebendo maior atenção apenas nos momentos de epidemias ou endemias que refletiam na área econômica ou social e ameaçavam o modelo capitalista adotado; a assistência à saúde desenvolveu-se a partir da evolução da previdência social, com ênfase na medicina curativa e lucrativa a partir da contratação de serviços privados; o sistema de saúde estatal consolidou a dicotomia entre ações preventivas e de caráter coletivo e as ações curativas de caráter individual, sendo a primeira de responsabilidade do Ministério da Saúde e das Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde e a segunda assumida pela Previdência Social e pela medicina liberal. (AGUIAR, 2011, p. 17).

Sendo fruto de uma estrutura econômica, política e social capitalista e tendo como princípios a equidade e a universalidade (que possuem uma racionalidade diferente da lógica de mercado), é possível identificar no SUS uma série de contradições. De acordo com Sen e

Kliksberg (2010), o setor saúde tem essa capacidade de lidar com uma racionalidade contrária à racionalidade de mercado.

A criação do SUS é um legado das crenças democráticas e socialistas que surgiram durante a redemocratização do Brasil, no final da década de 1980, com o apoio dos partidos políticos progressistas e dos movimentos sociais e intelectuais de esquerda, inspirados nas experiências universalistas dos sistemas nacionais de saúde. (OCKÉ-REIS, 2012, p. 22).

Entretanto, apesar das importantes motivações éticas condicionantes da criação do SUS, por que ele não ainda não atingiu a universalidade na sua cobertura? Alguns autores, como Costa e Carbone (2009, p. 05), mencionam que para muitos o SUS é considerado utopia e que a Constituição Federal de 1988 foi totalmente ousada, assim como a Lei 8080/90, quando estabeleceu os princípios do sistema. De fato, nem a universalidade, nem a equidade e nem a integralidade foram alcançadas no sistema de saúde brasileiro, que teve sua inspiração, dentre outros, no modelo europeu de bem-estar.

Estudiosos da área procuram explicações para as incoerências e contradições do sistema e identificam um forte componente relacionado à existência de “dois” sistemas de saúde paralelos: um público e um privado.

Apesar de a Constituição do Brasil designar que a assistência à saúde é direito social e que os recursos cevem ser alocados com base na necessidade de utilização e não pela capacidade de pagamento, parte dos cidadãos pode ser coberta por planos privados de saúde e, ao mesmo tempo, utilizar os serviços do SUS, resultando na dupla cobertura para aqueles que podem pagar ou podem ser financiados pelos empregadores:

trabalhadores de média e alta rendas, executivos e funcionários públicos. (OCKÉ-REIS, 2012, p. 23).

Percebemos, claramente, a existência de simultaneidade entre a introdução do SUS no Brasil e o processo de privatização do seguro social, antes atendido pelo Instituto Nacional de Assistência e Previdência Social (Inamps). Houve um aumento muito significativo de consumidores de planos privados de assistência o que, em última instância torna maior a presença das desigualdades sociais, reproduzidas na duplicidade do que deveria ser um sistema único; fica absolutamente clara a existência de iniquidade de acesso a serviços de saúde pelos brasileiros.

Conclui-se então que ocorreu a privatização do seguro social, o que somado ao crescimento endógeno do mercado de planos, interditou o projeto estratégico do SUS, o projeto da reforma sanitária (OCKÉ-REIS, 2012, p. 25).

Para Lampert (2002, p. 12-13):

A medicina de modelo hospitalocêntrico foi incentivada e subsidiada pelo Estado, mais precisamente pela cultura "INAMPS” [...]. O especialismo e a mercantilização da medicina, em oposição ao primado da visão integral e à humanização nas relações médico-pacientes, são temas cravados na história das origens da profissão médica no Brasil.

Considerando as iniquidades de acesso um entrave à universalidade, outra situação que merece ser mencionada se refere aos custos imensos que são abrangidos quase que na totalidade pelo sistema público, quando relacionamos os atendimentos a pacientes crônicos e dependentes de hemodiálise, situações de transplantes, cirurgias cardíacas, tratamentos de câncer, entre outros.

Esse fato explica a ampla prestação pública de serviços caros e sofisticados para os consumidores do sistema privado [...]. Ademais, os pacientes de alto risco e com doença crônica “expulsos” dos planos de saúde são atendidos pelo SUS, sem que haja qualquer transferência financeira significativa ao sistema público – apesar do mecanismo do ressarcimento. (OCKÉ-REIS, 2012, p. 26).

O SUS encontra problemas, ainda, quanto à gestão do sistema e quanto ao financiamento da demanda sempre crescente e o alto custo das ações de saúde. O fato de estar numa realidade econômica, política e social capitalista faz do Brasil um país com uma pirâmide populacional com enormes discrepâncias.

Mais abertamente, existem problemas como: alta prevalência de doenças crônicas entre grupos de mais baixa renda e pobres deixados à espera nas salas de emergência de hospitais; gastos altos e regressivos com medicamentos (desembolso direto); baixo nível de investimentos; falta de médicos em regiões mais carentes e mesmo nos estabelecimentos públicos das grandes cidades brasileiras, uma vez que os médicos são mais bem remunerados em estabelecimentos privados etc. Sem mencionar os problemas sociais que afetam diretamente o sistema, tais como pobreza, injustiça, violência, acidentes de trânsito [...], condições sanitárias precárias. (OCKÉ-REIS, 2012, p. 26).

Ainda com relação às ações da Política de Atenção à Saúde é possível verificar a grande ênfase colocada na formação de profissionais conhecedores do SUS e habilitados para atender suas demandas como uma grande estratégia de diminuição dos problemas relacionados à universalização (mais profissionais atendendo e em municípios que hoje não contam com os mesmos) e a demanda por serviços de saúde que podem ser financiados nas parcerias com instituições formadoras e prestadoras de serviços do setor privado.

É notável a estreita relação entre a implantação do SUS no Brasil e a ordenação para a formação de recursos humanos para a saúde. A Lei 8080/90, que regulamenta o SUS, em seu artigo 6º define os seus campos de atuação explicitando o papel norteador do mesmo na definição de políticas e diretrizes para os profissionais da saúde. Também, refere os serviços do SUS como lócus dessa formação, bem como possibilidade de incremento ao desenvolvimento científico e tecnológico do setor saúde.

A repercussão da implantação do SUS nas transformações da formação médica é o que abordaremos a seguir.

3.2 História da Formação Médica no Brasil

Ao estudar a história da formação médica no Brasil descobrimos sua íntima conexão com o processo de construção e de mudanças no sistema de saúde do país. Da mesma forma, a organização do sistema de saúde reflete as concepções, as crenças, as prioridades e as influências econômicas e culturais sofridas pelo povo brasileiro. Entretanto, também a contextualização histórica da medicina no mundo ocidental favorece a compreensão do que somos hoje e das contradições com as quais convivemos na área da saúde. A historicidade é, sem dúvida, uma importante categoria de análise dos fenômenos sociais e permite uma reflexão mais profunda, além da contextualização de discursos, conceitos e ações.

Em 1632, Rembrandt retratou uma aula de anatomia, onde um professor e seus alunos estão diante de um cadáver, para a dissecção de um braço em estudo. O famoso quadro se chama

“Lição de Anatomia do Dr. Tulp” e revela o paradigma científico ingressando na formação médica (Figura 06).

Figura 06 – “Lição de Anatomia do Dr. Tulp” (Rembrandt)

Fonte: História Viva, 2014.

Na história de compreensão médica, que nos trouxe à formatação atual do Sistema Único de Saúde, as origens e transformações da chamada Medicina Social foi um fator determinante.

“Entre os anos de 1830 a 1850, a concepção de Medicina Social tornou-se hegemônica em alguns