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Capítulo IV O umshado Siphiwe

4. Negotiation (lobola) e umembheso

No fim da tarde da quinta-feira, antes do final de semana para o qual estava marcado o

umshado, fomos à casa de Sibongile (a makoti) em Sebokeng (uma township nos

arredores de Johanesburgo, a quase uma hora de carro de Thokosa). Na verdade, esta não era a sua casa e sim a de sua mãe e avós maternos. A própria Sibongile vivia em Thokosa com uma tia.

A comitiva saiu de Thokosa em quatro carros: o de Siphiwe (o groom) e de seus irmãos - Nkosana e Mdudizi -, mais uma caminhonete de alguém que eu não conhecia. Além do groom, seus irmãos motoristas e sua irmã - Nokuthula -, fomos Mateo e eu, bem como parte da família materna do groom: Fikile (eZ), Bonkosi (B), Danisile (eBD), Nomusa (Z) e suas duas filhas, além de outros.

Ao chegarmos na casa da família de Sibongile, saímos dos carros. As pessoas se organizaram umas atrás das outras e começaram a cantar que iriam entrar na casa bem

devagar, que Buthelezi as tinha mandado. Para minha absoluta surpresa e também de

outros, uma ovelha foi retirada do porta-malas do carro de Mduduzi e todo o movimento da dança, que ritmava os nossos passos em direção ao portão da casa, foi tonificado pela presença do animal, preso entre as pernas de um dos rapazes que avançava lentamente com ela.

A família de Sibongile - ou melhor, as mulheres da família - nos receberam também cantando. Todos cantavam músicas diferentes ao mesmo tempo: elas do lado de dentro do terreno e nós do lado de fora. Sibongile, a makoti, não estava entre as mulheres que nos recepcionavam. Por outro lado, Siphiwe, o groom, nos acompanhava. Depois de cruzarmos o portão - com a ovelha e as sacolas de roupas -, fomos recebidos na sala pelos avós matemos de Sibongile. Sentamos em cadeiras, arrumadas em torno de um centro vazio - onde outrora havia uma mesa -, junto aos avós de Sibongile. Naquela sala quadrada de uma casa na township criava-se um espaço arredondado, apropriado para o encontro e o reconhecimento mútuo entre as diferentes famílias e seus

respectivos amadlozi. Algumas pessoas do nosso grupo saíram do recinto - e, entre elas, o groom. A família de Sibongile ficou dentro da casa, espreitando do corredor o que ocorria na sala. A ovelha ficara amarrada no terreno, debaixo de uma chuva fina.

Em momento algum eu tinha ideia do que iríamos fazer em Sebokeng - aliás, ir a Sebokeng fora algo bastante casual, já que não havia tantos carros e, muitas vezes, a minha participação na confecção ou composição de algum evento dependia da sorte - ou da “oportunidade”, como dizem os Kubheka - de estar no lugar certo e na hora certa para ser colhida pelo “acaso”106. Além disso, quando eu perguntava para alguma pessoa mais jovem o que faríamos, era comum responderem laconicamente, como se elas mesmas não soubessem exatamente do que se tratava.

Quando chegamos a Sebokeng, me disseram que aquele era o momento da negotiation. Muitas vezes as pessoas (jovens ou mais velhas) evitam usar palavras em isiZulu para denominar o que fazem, optando por falar em inglês. Com isso, elas demonstram a ignorância dos outros (ou seja, dos brancos), incapazes de compreender o que elas realmente estão falando ou fazendo - e, ao mesmo tempo, protegem-se do julgo alheio que as exotiza. Mesmo a intimidade conquistada com as pessoas com quem trabalhei não evitava totalmente esse crivo linguístico, como se, além da barreira da língua, agravada também pela cor, existisse um outro mundo sem ruídos. Muitas vezes,

amadlozi era ancestors, makoti era bride, umsebenzi era function, lobola era damage ou agreements - e, neste caso específico, falava-se em negotiation.

Fikile (eZ) inaugurou a negotiation. Depois, foi a vez de Nokhutula (yD) falar e entregar 2.500 Rands (625 Reais), seguida por Bonkosi (B), que falou e também entregou uma certa quantia. O avô de Sibongile foi quem recebeu o dinheiro e falou. Os Kubheka me diziam que estava tudo correto, não havia problema da parte da família de

Sibongile em receber o dinheiro.

Depois da rápida negotiation, as roupas costuradas por Thabile e Fikile protagonizaram a cena. As mulheres da família de Sibongile - entre elas, sua mãe e sua avó - receberam

106 Falo aqui em oportunidade, termo usado por Mangaliso para se referir ao tempo como uma categoria que não é dada a priori. Essa ideia será melhor trabalhada no capítulo seguinte, mas sugere, de antemão, que o tempo não independe da ocasião, da oportunidade.

cada uma um shweshwe [vestido sotho confeccionado com o tecido Three Cats] e um

itshali [xale feito com tecido liso, felpudo e macio]. Os homens também receberam

roupas: calça, paletó e chapéu107.

Cada pessoa era chamada para receber a sua roupa e a colocava sobre o corpo, como se a estivesse vestindo. Um tio ausente foi representado por uma mulher que, sob o riso de todos, recebeu as roupas desproporcionais e inadequadas ao seu corpo. Por fim, Sibongile recebeu a sua roupa e, ao contrário dos demais, foi vestir-se no quarto com a ajuda de outras mulheres. Voltou trajando o seu shweshwe e o itshali de padrão quadriculado [xale próprio da makoti\. Sentou-se no centro da sala, onde foi recebida ao som do ukukikiza. A partir daquele momento, seu olhar voltou-se para baixo, para o

phansi [chão], ou para os abaphansi \amadlozi que vivem no chão] - um modo de agir

característico de quem deve observar o tabu de comportamento hlonipha.

Após a entrega dos presentes, fomos embora - já era tarde da noite quando deixamos Sebokeng. Para nossa infelicidade, quando Nkosana passou por um buraco no meio da chuva, o pneu do carro estourou. Os estepes, tanto o do seu carro quanto os dos outros, eram grandes demais e não podiam substituir o pneu furado. As mulheres pularam para outro carro e os homens ficaram no meio do nada, em um lugar sombrio nos arredores de Johanesburgo, entre Sebokeng e Thokosa, à espera do resgate que viria somente quando nós chegássemos na casa de Thabile. Ao menos não estávamos mais com a ovelha no porta-malas, deixada como um dos “presentes” em Sebokeng.

Naquela tarde, tínhamos ido a Sebokeng para fazer a negotiation, ou seja, finalizar o pagamento do lobola - que já havia sido quase totalmente pago, restando apenas uma pequena parcela. Esta parcela parecia figurar como um pagamento “simbólico”, no sentido de seu efeito ser menos econômico e mais de constituir os pagadores do lobola - representados naquele momento por vários Kubheka (os tios matemos de Siphiwe) e alguns Buthelezi (como a irmã de Siphiwe que entregou a maior soma de dinheiro) - e

107 Granjo (2005) descreve os “presentes” que acompanham a entrega do dinheiro do lobolo de seu amigo Jaime, que são semelhantes aos aqui elencados e que, neste caso, compõe o umembheso:

“Só as roupas constituíam uma lista comprida. A do pai inclui camisa, gravata, sapatos e fato, a que ele preferiu o tecido respectivo e os honorários do alfaiate. A mãe tem direito a capulana, blusa, lenço, chinelos e um pano longo, de atar bebês às costas, onde durante a cerimônia deverá colocar a garrafa de vinho branco. A roupa da noiva fica ao critério da sua nova família, mas manda a dignidade desta que inclua vestido, roupa interior, sapato, anel, pulseira, brincos e fio de ouro.” (ibdi., p. 26).

os doadores da makoti - a mãe e os avós de Sibongile bem como colocá-los em relação.

As roupas compunham o umembheso - “presentes” que o noivo dá à família da noiva. Notadamente, a sua entrega foi muito mais elaborada ritualmente que a negotiation do

lobola, e ocorreu integralmente naquele momento. As roupas confeccionadas por

Thabile e Fikile eram “presentes” que informavam sobre a vestimenta que a família de Sibongile deveria usar quando fosse à casa onde a makoti passaria a morar, ou seja, a casa de Thabile. Especialmente sobre a sua makoti, Thabile dizia que era com aquele

shweshwe que ela deveria ir a sua casa, era daquela maneira que ela deveria se vestir,

acrescentando ainda que ela não deveria usar calça.