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CAPÍTULO 3: AFRODESCENDENTES VOZES DE UMA JOVEM MINORIA

3.2. O negro como signo ideológico

afrodescendentes

Uma vez admitida a consonância entre linguagem, ideologia e sociedade, decorrente da natureza político-ideológica tanto do signo quanto da interação semiótica, o empreendimento acima descrito torna-se viável, à medida que nos permitimos designar a cor negra como signo ideológico, pois, tal qual o signo ideológico descrito por Bakhtin (1988), a categoria ora referida, tem favorecido tanto a produção de um conjunto significativo de ações e reações, quanto a emergência de novos signos.

No intuito de delinear nosso horizonte discursivo, partiremos de duas considerações fundamentais dos estudos de Bakhtin: a relação de coexistência entre sistema semiótico e ideologia, e a natureza do signo ideológico, pois, compreendemos que:

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A palavra é o signo ideológico por excelência; ela registra as menores variações das relações sociais, mas isso não vale somente para os sistemas ideológicos constituídos, já que a “ideologia do cotidiano”, que exprime a vida corrente, é o cadinho onde se formam e se renovam as ideologias constituídas. (BAKHTIN, 1988, p.16)

E que,

Os signos também são objetos naturais, específicos, e, como vimos, todo produto natural, tecnológico ou de consumo pode tornar-se signo e adquirir, assim, um sentido que ultrapasse suas próprias particularidades. (BAKHTIN, 1988, p. 32)

Para tanto utilizaremos a noção bakhtiniana de signo, mas especificamente de signo ideológico e algumas considerações a respeito da identidade, organizadas no capítulo anterior.

A utilização da identidade como categoria de apoio as nossas análises será feita a partir das discussões a respeito da formação das identidades negras no Ocidente (HALL, 1998; MOURA, 1988; IANNI, 1996; MUNANGA, 2003), observando-se o modo como essas identidades foram negociadas no contexto social brasileiro e como esse contexto tem atuado junto aos sujeitos participantes desta investigação, no momento de organizarem e/ou afirmarem suas identidades etnorraciais.

Importante lembrar que tal discussão terá importância significativa nas argumentações que definem a cor negra como signo ideológico, uma vez que, semelhantemente ao referido signo, as identidades também estão “sujeitas ao jogo da história, da política, da representação e da diferença” (HALL, 1998, p. 66), na medida em que se organizam dialogicamente a uma memória comparativa, estabelecida a partir de um sistema de valores, de um passado, de uma historia, conforme veremos a seguir nas considerações bakhtiniana a respeito do signo perpassado pela ideologia.

A designação da narrativa como espaço organizacional da presente análise decorreu da percepção da experiência narrativa como algo que, se estabelece num quadro de convenções e estereótipos, culturalmente delineados, capazes de definir e solidificar imagens de pessoas e eventos, que reforçam preconceitos sociais de raça, gênero e etnicidade. A outra razão decorre da importância da comunicação verbal para o espaço investigativo aqui sugerido, uma vez que a comunicação verbal, inseparável das outras

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formas de comunicação, implica conflitos, relações de dominação e de resistência, adaptação ou resistência a hierarquia, utilização da língua pela classe dominante para reforçar seu poder, etc. (YAGUELLO, 1988, p. 14).

Feitas essas considerações iniciais, passaremos a expor o conjunto teórico argumentativo que será utilizado tanto para delinear a natureza ideológica do signo como para pontuar o papel dessa categoria no processo de reprodução, apreensão ou mesmo distorção da realidade histórico-social.

Sendo o signo objeto essencial da comunicação humana, a condição de existência dessa categoria é determinada pela sua capacidade de agir, como objeto comum de significação, entre os membros de determinada comunidade linguística Logo, o fator determinante da definição sígnica é a capacidade de fazer emergir, entre os membros de determinada comunidade, associações e oposições idênticas e/ou muito próximas com outros signos. De forma resumida –- o que determina o signo como tal é a capacidade de significar, de remeter a outros signos, numa cadeia infinita de significações socio- historicamente constituída. Na concepção de Bakhtin (1988), “essa cadeia de criatividade e de compreensão ideológica, deslocando-se de signo em signo para um novo signo é única e continua” (p. 34).

Fundamentada nessa relação dialética entre signo – sociedade e história, a noção de signo ideológico foi organizada pelo circulo de Bakhtin através da afirmação de uma indissolubilidade entre signo e situação social. Na visão de Bakhtin “Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia” (1988, p. 31).

Esse é o ponto de especial interesse para o desenvolvimento desta seção, uma vez que nossa preocupação, no espaço destas linhas, será conceber a figura do negro como signo ideológico, com base na cadeia de signos que essa categoria tende a fazer emergir. Posto isto, consideramos pertinente explicitar a perspectiva a partir da qual estabelecemos a relação entre as duas categorias ora referidas.

A discussão sobre o dialogismo torna-se interessante para as nossas considerações na medida em que focaliza questão da autoconsciência, isto é, a forma como o sujeito organiza a sua relação consigo mesmo, e nos permite apreender a relação que esse

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mesmo sujeito estabelece com o “nós” e o “eles” – os outros da relação linguística – que participam incessantemente da construção subjetiva e representam os diferentes acordes históricos, linguísticos e sociais que ecoam na enunciação. Essa relação dialógica entre o “eu” e o “outro” na constituição subjetiva é focalizada por Brait (1997), em seus estudos sobre as considerações de Bakhtin a respeito da filosofia da linguagem:

Segundo Bakhtin, a minha aparência é sempre construída a partir da representação que o outro produz de mim: a autoconsciência do meu ser no mundo só se dá através da compreensão ativa e valorativa do outro que me enxerga enquanto corpo exterior que se destaca do seu entorno (BRAIT, 1997, p. 118)

O primeiro excerto trazido para análise nesta seção coloca-se em correlação entre a fala dos sujeitos da presente dissertação e as concepções de Bakhtin acima delineadas. Focalizaremos através desses recortes diferentes contextos na vida dos adolescentes em questão a fim de problematizar as questões acima referidas, atendo-nos mais detidamente nas falas que focalizam diretamente o contexto escolar.

Observando-se a fala apresentada no [E-6]:

A - Eu tava no.../ meu pai tava no restaurante / e a gente tava indo almoçar /o meu pai não... tipo.../ era...assim ...sabe?/ um salgadinho assim/ meu pai não tinha troco /ele pegou e (?) /ele.../ “pra facilitar, eu vou lá trocar” / o cara não deixou sair e falou assim / que ele não ia ter condições de pagar/ porque ele era negro (em tom quase inaudível) / e daí... (?)

E - O homem verbalizou isso: “Você não vai ter condições de pagar porque é negro”?

A - Ele falou (voz embargada) / É ele falou! (tom quase inaudível)

é possível pontuar que cor da pele pode ser apreendida como um signo da ideologia, na medida em que lançamos mão, para fins de análise, daquilo que Bakhtin define como a capacidade criativa do signo ideológico, passível de se manifestar através da criação de ações e reações, a exemplo da fala em destaque onde a adolescente entrevistada descreve as reações das colegas de classe à sua participação na vida social do ambiente escolar: “então, você vê o olhar das pessoas / ai depois você vê como ela trata você”. [E-3]. Dentro dessa discussão, outro aspecto que se deixa entrever nas falas das entrevistadas é aquele referente

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à compreensão do signo ideológico como categoria constituída de uma natureza eminentemente associativa. Exemplos categoricamente delineados nas experiências narradas por outros adolescentes relativamente às associações entre a cor negra e os conceitos pejorativos a ela relacionados e/ou materializados na forma de classificação do sujeito afrodescendente: “negro o sinônimo é burro” [E-3]; “eu era pior que o ruim” [E-5]. Do ponto de vista das identidades, as falas em destaque interseccionam as considerações de Ianni (1996) a respeito da produtividade e da longevidade dos “estereótipos raciais, positivos ou negativos, aparentemente muito remotos em termos de espaço e tempo, mas que podem ressoar no presente das relações raciais” (p.16). O aspecto produtivo desses estereótipos gerados a partir do signo cromático é reafirmado por Moura (1988), em suas observações sobre o discurso intelectual de base econômica, elaborado para justificar a marginalização do segmento afrodescendente no processo de estruturação social do país, em todas as fases do seu desenvolvimento, mais particularmente nos períodos seguintes a abolição do trabalho escravo. O autor transcreve parte da opinião do economista Celso Furtado a respeito da relação entre a presença afrodescendente e o desenvolvimento econômico do país. Nas palavras do economista,

cabe tão somente lembrar que o reduzido desenvolvimento mental da população submetida a escravidão provocará a segregação parcial desta após a Abolição, retardando sua assimilação e entorpecendo o desenvolvimento econômico do país. (FURTADO, 1959 apud MOURA, 1988, p. 82)

Outro ponto que reafirma a posição dos dois autores relativamente a persistência e a produtividade do signo da cor, enquanto representação negativa, historicamente constituída, e que será descrito no excerto a seguir, diz respeito ao conjunto de características atribuídos a população afrodescendente em detrimento a “natureza positiva” do branco europeu, nos momentos decisivos de organização da mão de obra pós- abolicionista, momento em que, no discurso intelectual vigente, o negro, fonte de disseminação das doenças físicas e morais “passou a ser fonte de todos os males” (MOURA, 1988, p. 103) existentes no país.

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sujeito epidermicamente classificado como afrodescendente: “... porque acham...assim: negro o sinônimo é burro” [E-3]; e ao pontuar as características dos membros de uma das partes da sua família: “da família do meu pai é negro, entendeu? / veio tudo...eh! .../ da linhagem mais antiga.../ toda a família do meu pai é negro/ e tem muita doença/ porque antigamente tinha muita doença” [E-3], a informante nos faz entrever a natureza persistente dos estereótipos raciais, uma vez que retoma, por meio da reprodução do discurso do outro, as concepções naturalistas do século XVIII, a partir da qual criava-se

uma escala de valores entre as três raças baseando-se na relação entre traços biológicos, morais e psicológicas.

Assim, os indivíduos da raça “branca”, foram decretados coletivamente superiores aos da raça “negra” e “amarela”, em função de suas características físicas hereditárias, tais como a cor clara da pele, o formato do crânio (dolicocefalia), a forma dos lábios, do nariz, do queixo, etc. que segundo pensavam, os tornam mais bonitos, mais inteligentes, mais honestos, mais inventivos, etc. e consequentemente mais aptos para dirigir e dominar as outras raças, principalmente a negra mais escura de todas e consequentemente considerada como a mais estúpida, mais emocional, menos honesta, menos inteligente e, portanto a mais sujeita à escravidão e a todas as formas de dominação. (MUNANGA, 2003, p. 01).

Discurso que foi, mais tarde, reiterado por Nina Rodrigues que também “via o negro como biologicamente inferior transferindo para ele a causa do nosso atraso social” (MOURA, 1988, p. 18)

Dessa forma, o que se deixa entrever, a partir da utilização das categorias “etnia”, “raça” e “classe”, é que a forma como essas categorias se articulam na trama das relações sociais, assim como as tensões e as diferenciações que se estabelecem a partir delas, se “alimentam de elementos presentes e passados, continuamente incorporados, recriados, modificados, atenuados ou exacerbados” (IANNI, 1996, p. 20), possibilitando a utilização das categorias “etnia” e “raça” como importantes fatores de determinações sociais.

Passemos para uma segunda discussão em torno dos excertos no intuito de observar como o aspecto cromático epidérmico pode definir-se como signo ideológico, tanto na esfera das relações interpessoais como na posição que o sujeito assume e/ou

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constrói para si mesmo, enquanto elemento constitutivo da arena social. Para tanto analisaremos as falas presentes nos [E-4], [E-5] e [E-6], apoiando-nos nas concepções de Hall (2000) a respeito das implicações entre as identidades na Alta Modernidade e os discursos históricos que fundamentaram a formação de tais identidades, os quais, segundo ele, devem ser problematizados a partir do modo “(...) como nós temos sido representados”; e “como essas representações afetam a forma como nós podemos representar a nós próprios”. (p. 108 – 109).

As considerações presentes nas falas dos excertos em questão levam-nos a uma nova reflexão em torno do caráter produtivo do signo ideológico, no que diz respeito às estratégias de organização e utilização de vocabulários específicos dentro de um grupo (social, profissional, étnico, etc.) para referir-se a outros grupos.

Ao relacionar o conjunto de signos normalmente utilizados por pessoas não negras, nos momentos de conflitos interpessoais (abertos ou não), para (re)ferir-se aos sujeitos epidermicamente caracterizados como afrodescendentes: “neguinho do pastoreio, macaco.../ Nossa! Um monte de coisa...” [E-4]; “neguinha; Torrone” [E-6] os informantes nos direcionam para aquilo que consideramos como a questão da interface entre o estranho e o familiar, presente no processo de construção valorativa em torno dos signos. Com isso buscamos compartilhar da visão construída por Benveniste (1989), que apesar de não constituir-se sob as categorias do estranho e do familiar, da qual ousamos lançar mão na nossa análise, delineia o processo de construção valorativa a partir do que ele chama de termos gerais e termos específicos. De acordo com esse estudioso o fenômeno de ressignificação do signo pode ser descrito como:

uma apropriação por grupos ou classe do aparelho de denotação que é comum a todos. Cada classe social se apropria dos termos gerais, atribui a eles referencias específicas e os adapta assim a sua própria esfera de interesse e frequentemente os constitui com base em derivação nova... (BENEVISTE, 1989, p. 102)

A situações de conflito inter e intrapessoal comumente apresentada na falas do informante, a exemplo de: “aí eu ouvi essa ofensa que... Falaram..”./ [E-4]; ou ainda “Só porque nos somos assim de uma cor diferente, assim / é mais fácil de por apelido, né?” [E-

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4], por meio das quais delineiam-se, as posições construídas, respectivamente, para e pelo sujeito narrador da experiência nos remete as considerações de Bakhtin (1988) a respeito da relação entre ideologia e psiquismo:

o psiquismo e a ideologia estão em “relação dialética constante”. Eles têm como terreno comum o signo ideológico: O signo ideológico vive graças a sua realização no psiquismo e, reciprocamente, a realização psíquica vive do suporte ideológico (p. 16).

No espaço dessa perspectiva, tomamos a relação dialógica entre ideologia e signo ideológico, para observar como sujeito manifesta aquilo que Bakhtin denomina como “atividade mental do nós”, ou seja, a maneira como o indivíduo pensa e concebe a si mesmo e a forma como este mesmo indivíduo se posiciona enquanto sujeito, a partir de uma noção de consciência de classe, ou – utilizando uma linguagem mais atualizada – a partir de uma dada orientação social. Ah!.../ porque ...tipo.../ a nossa cor, assim.../ aí eles acham que.../ preto.../tipo.../preto só mora em favela/ essas coisas/ aí eles acham que.../ que tem o direito de.../ esses xingamentos assim/ [E-4]. A relação de conflito intrapessoal delineia-se a partir do reconhecimento, por parte do sujeito, do lugar que lhe é atribuído na cadeia ideológica e que define a sua posição enquanto sujeito social, inserido numa arena de uma ideologia que toma o aspecto cromático como elemento de referência valorativa. No dizer de Woodward (2000) “esse processo de interpelação nomeia e, ao mesmo tempo, posiciona o sujeito que é, assim, reconhecido e produzido por meio de práticas e processos simbólicos”. (p. 60 - 61).

Ao expor os motivos que supostamente explicam a atitude dos nãonegros, nomeadamente caracterizados como “eles”, o informante faz referência, ao processo de construção, por parte desse outro, do seu lugar enquanto sujeito na arena social: “Ah!.../ porque ...tipo.../ a nossa cor, assim.../, eles acham que.../” [E -4]; “e ele me xingava de neguinha [eu odiava] / de torrone / de tudo...”[E-6] e, ao mesmo tempo, ao processo de aceitação, por parte do próprio sujeito, do lugar que o discurso ideológico, insiste em lhe atribuir: “[...] somos assim de uma cor diferente” [E-4]. O conflito manifestado pelo informante, no momento de descrever as experiências negativas, construídas com base em

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seu aspecto cromático, é discutido por Woodward (2000, p.61), em suas considerações a respeito da interpelação subjetiva, quando afirma que:

ocupar uma posição de sujeito determinada como, por exemplo, a de cidadão patriótico, não é uma questão simplesmente de escolha pessoal consciente; somos, na verdade, recrutados para aquela posição ao reconhecê-lo por meio de um sistema de representação. O investimento que nela fazemos é, igualmente, um elemento central nesse processo.

O adjetivo apresentado pelo adolescente, no que diz respeito a sua própria caracterização cromática: “cor diferente” [E-6] reafirma a posição de Hall (1996), em relação a construção da identidade negra no Ocidente, quando este afirma que fomos construídos por esses regimes e categorias de conhecimento do Ocidente, como diferentes e outros. Eles tinham o poder de fazer com que víssemos a nós mesmos como “outros” (p.69). [Grifo do autor], relativamente à identidade hegemônica, marcada sob o signo da ideologização positiva dos traços ocidentais. Com isso traça-se um mapa daquilo que podemos caracterizar como normalização da identidade. De acordo Silva (2000),

normalizar significa eleger - arbitrariamente – uma identidade específica como o parâmetro em relação ao qual as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas. Normalizar significa atribuir a essa identidade todas as características positivas possíveis, em relação às quais as outras identidades só podem ser avaliadas de forma negativa. (p. 83)

A exemplo das falas em destaque: “[...] mas o meu irmão é alto/ ele é pardo / ele tem varias características de comer menos/ e a família da minha mãe tem essas características” [E-3]; “somos assim de uma cor diferente...” [E-4]; “Por causa, eu acho que... / da cor, assim / eu acho que neguinho”, assim.../ é mais tipo assim, uma piada, né? / que eles xingam...”[E-4].

Outro aspecto não menos relevante na composição das narrativas ora analisadas é a distinção feita entre aquilo que representa a identidade do sujeito participante e o que é visto como a diferença relativamente a essa mesma identidade. A demarcação desse espaço simbólico que separa a minha identidade da identidade do outro é feita a partir do uso dos pronomes que denotam tanto o sentimento de posse, de pertencimento: “a nossa cor, [E-4];

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Eh!... / não é delas / é com outras pessoas que elas aprendem” [E-6]; quanto a ideia de posição subjetiva: “eles acham; nós somos assim de uma cor diferente” [E-4]; “é com outras pessoas que elas aprendem...” [E-6].

Na visão de Silva (2000),

a identidade está sempre ligada a uma forte separação entre “nós e “eles”. Essa demarcação de fronteiras, essa separação e distinção, supõem e, ao mesmo tempo, afirmam e reafirmam relações de poder: “Nós” e “eles” não são, neste caso, simples distinções gramaticais. Os pronomes “nós” e “eles” não são, aqui, simples categorias gramaticais mas evidentes indicadores de posições de sujeito fortemente marcadas por relações de poder. (p. 82)

Dito isso, o que devemos considerar dentro dessas narrativas que expressam, a um só tempo, a escolha e a imposição de um lugar social para os sujeitos em questão, é uma oscilação constante entre a lógica da consciência individual e a ordem ideológica historicamente constituída: aspecto constitutivo da identidade, em sua dimensão sócio cultural, pontuado por Douglas (1966 apud WOODWARD, 2000), segundo a qual,

...a cultura, no sentido dos valores públicos, padronizados, de uma comunidade serve de intermediação para as experiências dos indivíduos. Ela fornece, antecipadamente, algumas categorias básicas, um padrão positivo, pelo qual as ideias e os valores são higienicamente ordenados. E, sobretudo ela tem autoridade, uma vez que cada um é induzido a concordar por causa da concordância do outro (p. 42)

Essa postura autoritária da cultura sobre o indivíduo é discutida por Silva (2000), a partir da relação entre identidade e diferença. Para ele,

a identidade e a diferença estão, pois em estreita conexão com as relações de poder. O poder de definir a identidade e de marcar a diferença não pode ser separado das relações mais amplas de poder. A identidade e a diferença não são, nunca, inocentes. (SILVA, 2000, p. 81)

Ao posicionar-se numa cadeia ideológico etnorracial, de uma sociedade que se move sob a égide de um racismo estritamente vinculado as questões sociais, os informantes

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sinalizam para o fato de que a consciência individual é constantemente perpassada pelo fenômeno socio-ideológico, orientando-nos para o fato de que “a criação ideológica – ato material e social - é introduzida a força no quadro da consciência individual. Esta por sua vez é privada de qualquer suporte da realidade” (BAKHTIN, 1988, p.34). Esse movimento de “privação da realidade” ao qual tão bem se refere o filósofo russo é incessantemente pontuado no discurso dos informantes, principalmente pela via da contradição ou das associações constantemente exibidas no processo de reafirmação da ideologia dominante, através das associações entre cor e posição social: “Branquinha tipo um patricinho.../;[...] /preto só mora em favela/” [E-4]; Ou ainda pela via das assertivas construídas com base numa ideologia racista, delineada a partir da relação entre valor socioeconômico e escala

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