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CAPÍTULO 1 CONSIDERAÇÕES SOBRE AS IDEIAS RACIAIS NO BRASIL:

1.4 O negro e a legislação

A escrita deste subcapítulo tem como objetivo analisar como o negro foi concebido na legislação que trata da educação no império e república. Antes da análise da legislação propriamente dita, coloca-se a premissa básica de que a efetivação dos direitos da infância é o caminho a ser percorrido rumo à construção de uma sociedade justa, em que, independente do sistema econômico vigente, a desigualdade possa ser minimizada.

Com referências na realidade, pode-se observar que uma criança, ainda que não seja de família abastada, mas que tem os seus direitos e necessidades básicas respeitados transforma-se naturalmente em um adulto saudável física e emocionalmente, de modo a interagir de forma positiva no meio social em que vive, contribuindo para a melhoria do mesmo.

Os códigos e leis são uma construção social, pois revelam os anseios e conquistas de uma sociedade em determinado momento histórico, sendo, inclusive, revistos e modificados de acordo com as necessidades de cada grupo social e tempo histórico. Assim, ao tomar-se a legislação como ponto de partida desta pesquisa, busca-se compreender como a questão racial foi concebida pela sociedade brasileira desde os decretos imperiais até legislações mais recentes, como a LDB 9394/96 (BRASIL, 1996) e a Lei 10.639/2003 (BRASIL, 2003).

Não se trata de mencionar todas as constituições, mas sim, de apresentar pontos em que as leis, de modo geral, tratam a questão racial, mais especificamente a legislação educacional. Sendo assim, serão abordados a constituição e os decretos imperiais, as Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961, 1971 e 1996, o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), o Parecer 03/2004, a Resolução 01/2004 do Conselho Nacional de Educação e a Declaração dos Direitos da Criança (1959), carta promulgada em âmbito internacional, mas que inspira e subsidia a atual legislação de proteção à criança.

A primeira carta magna do Brasil, outorgada em 1824, foi elaborada durante o período de vigência do Império e da escravidão, portanto, apresentava um conteúdo declaradamente racista, o que nesse período histórico não se constituía crime ou ato antiético. Essa legislação proibia as populações africanas e afro-brasileiras de frequentar a escola. Dagoberto José Fonseca (2009, p. 62) nos esclarece que a Constituição do Brasil Império declarava o ensino obrigatório para todos os brasileiros excetuando-se os portadores de doenças contagiosas, os não-vacinados e os escravizados.

Era inimaginável pensar o negro como frequente de um nascente e inexpressivo sistema escolar, à medida que o negro era concebido como uma coisa destituída de vontade e com objetivos bem definidos. Objetivos estes que não previam a necessidade de instrução. Entretanto, não se pode enxergar na legislação um cunho racista, porque se compreende o racismo como uma relação desigual entre pessoas que estão em pé de igualdade legal, o que não é o caso dos escravizados brasileiros, que legalmente eram desiguais aos brancos, o que se mostra por meio dos Decretos 1331/1854 e 7031-A/1878 (OLIVEIRA; GUIMARÃES, 2009, p. 37):

O Decreto 1331/1854 estabelecia que as escolas públicas de todo o País não poderiam admitir escravos, e a previsão de instrução para adultos negros dependia da disponibilidade de professores.

O Decreto 7031-A/1878 estabelecia que os negros só podiam estudar no período noturno.

Já havia, no campo social e econômico, elementos que afastavam o negro dos bancos escolares, juntemos a isso, o fato de que a legislação que se apresentava, criava mecanismos legais para evitar o ingresso da população negra no ambiente escolar. Se o acesso já era algo restrito, não se pensava em condições de manutenção e bem-estar do aluno negro na instituição.

As consequências dessa exclusão do ambiente escolar são visíveis na atualidade posto que, conforme dados comparativos apresentados por Henriques (2001), em Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, realizada de 1997 a 2002, a média de anos de estudo da população branca do país é de 8,4 anos, enquanto a população de ascendência africana apresenta média de 6,7 anos de escolaridade. Entre alunos brancos, de 17 a 24 anos, que chegam ao Ensino Médio, os percentuais dos que conseguem permanecer e dar prosseguimento aos estudos é de 20%, ao passo que entre alunos negros, não chega a 5%.

É preciso retornar a atenção ao fim do século XIX e princípio do século XX para verificar que o advento da república não trouxe grandes novidades aos negros no que se refere ao acesso à instrução, permanência na escola e meios de eliminar o racismo, entendido como uma construção social ao longo dos séculos de colonização, pois, segundo Bento (1999, p. 20):

As pessoas nascem seres humanos, com determinadas diferenças que resultam de histórias diversas em lugares diferentes do planeta e tornam-se, por força da experiência de viver em sociedade, negros, brancos ou amarelos, ou seja, quem define o significado de ser negro, branco ou amarelo é a sociedade.

Ciente dessas assertivas entende-se que a eliminação do racismo é um processo paulatino que requer um projeto consistente, elaborado a partir de estudos da realidade presente e sua trajetória para chegarmos às intervenções necessárias.

Expulsos da senzala por um processo de abolição em que não houve a preocupação com a inclusão ou mesmo adaptação dos ex-escravizados à nova condição, crianças negras e/ou pobres permaneceram, ao lado de seus responsáveis, no trabalho da lavoura ou em outra atividade que auxiliasse no sustento dos familiares. A escola não fazia parte de seu cotidiano ou aspirações. Quando tinham acesso, ainda que a legislação permitisse, eram expulsos pelo preconceito.

Verifica-se que a inserção do negro no ambiente escolar, sua permanência e eliminação do racismo para que se estabelecesse um clima amigável entre os alunos das diversas etnias, não se configurava em interesse para as autoridades que tratavam da educação em princípios do século XX.

Entretanto, a primeira metade desse século foi marcada por duas grandes guerras de nível mundial, em que foram cometidas diversas atrocidades contra os povos envolvidos. De certa forma, isso contribuiu para que autoridades de todo o planeta pensassem em questões referentes aos direitos humanos e mecanismos de proteção social. Diante desse quadro, a Organização das Nações Unidas (ONU) promulga, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, como ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações (ONU, 1948, online).

No que se refere à criança, essa proteção começa a ser esboçada de maneira específica, com a promulgação da Declaração dos Direitos da Criança, em 20 de novembro de 1959. Essa declaração norteia-se por uma universalidade de direitos da infância, estruturada sob dez princípios que prevêem: proteção da criança no que se refere à recreação e assistência médica adequadas; distinção ou discriminação; garantia de nome e nacionalidade; alimentação; prioridade na recepção de proteção e socorro; crescer junto à família em ambiente propício ao seu desenvolvimento; proteção contra formas de negligência, crueldade e exploração e, por fim, proteção contra atos que possam suscitar discriminação racial, religiosa ou de qualquer outra natureza. Tais premissas se apresentam no 1º princípio desta carta de direitos:

A criança gozará de todos os direitos enunciados nesta Declaração. Todas as crianças, absolutamente sem qualquer exceção, serão credoras destes direitos, sem distinção ou discriminação por motivo de raça, religião, opinião política ou de qualquer natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição, quer sua ou de sua família.

Entretanto, é no princípio 10 que essa questão é colocada de maneira contundente:

A criança gozará de proteção contra atos que possam suscitar discriminação racial, religiosa ou de qualquer outra natureza. Criar-se-á num ambiente de compreensão, de tolerância, de amizade entre os povos, de paz e de fraternidade universal e em plena consciência de que seu esforço e aptidão devem ser postos a serviço de seus semelhantes

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No Brasil, a preocupação com a eliminação do racismo começa a aparecer timidamente na primeira LDB (BRASIL, 1961, online), promulgada em 20 de dezembro de 1961:

Título I

Dos fins da Educação

Art. 1º A educação nacional, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por fim [...] a condenação a qualquer tratamento desigual por motivo de convicção filosófica, política ou religiosa, bem como quaisquer preconceitos de classe ou raça.

A esse pensamento, não se dá continuidade, à medida que a LDB n. 5692, promulgada em 11 de agosto de 1971 e que substitui a LDB 4024/1961, em um momento histórico em que o país estava sob uma ditadura militar, não faz referências a questões relativas à diversidade racial e muito menos ao racismo enquanto mal social a ser eliminado.

O fim da ditadura militar, com a realização de eleições indiretas para presidente da república em 1985, trouxe à tona uma série de discussões sobre problemas sociais apresentados pelo país. Destas discussões, resultaram a Constituição Federal promulgada em 1988 e um processo de criação de conselhos e estatutos para os diversos segmentos sociais, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – promulgado em 1990, como legislação maior de proteção à infância e adolescência.

No E.C.A., o direito à proteção contra preconceito e discriminação racial é esboçado em seu artigo V (BRASIL, 2008, p. 37): “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, sendo punido na forma da lei qualquer atentado por ação ou omissão de seus direitos fundamentais.”

Contudo, o ensino da história e cultura afrodescendente, um dos principais elementos esclarecedores e que contribuem para a paulatina eliminação do racismo, passa a ser postulado legalmente a partir da promulgação da LDB 9394/96 (BRASIL, 2001a, p.17), no artigo 26, que se refere ao currículo escolar: “O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente as matrizes indígena, africana e européia.”

Na década de 2000, essa legislação se complementa pela Lei 10.639/2003 (BRASIL, 2003, online), um dos primeiros atos de Luís Inácio Lula da Silva como Presidente da República, que altera o artigo 26 da LDB, dando nova redação e especificidades:

Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. § 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.

§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.

[...]Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’.

Depois de promulgada a lei, esta foi apreciada pelo Conselho Federal de Educação, que segundo Oliveira e Guimarães (2009, p.14), seguindo os procedimentos regimentais, constituiu um relator e votou em plenário o chamado Parecer 03/2004, expedido em 10 de março de 2004, regulamentando a alteração à LDB provocada pela Lei 10.639/2003. Aprovado o Parecer 03/2004, o Conselho Nacional de Educação criou a Resolução nº. 1, de 17 de junho de 2004 (BRASIL, 2005, p. 23), que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana.

Com a promulgação da Lei 10.639/2003 e a instituição de suas diretrizes curriculares, firma-se um ciclo de conquistas sociais dos direitos dos negros que se constituíram em lei. Ou seja, a educação das relações étnico-raciais não se trata de uma proposta curricular, mas de algo que, como lei, é obrigatório e apresenta as diretrizes a serem seguidas na sua inserção no currículo escolar, facilitando o trabalho de professores e gestores. Se é lei e há um referencial pedagógico, quais as dificuldades para se cumprir?

Verifica-se que avaliar a aplicabilidade de uma legislação é imperativo, uma vez que, como já se citou, a lei é uma construção social, todavia, não expressa a vontade primeira de todos os elementos da sociedade. No caso da questão racial, nem todos compreendem a real necessidade de haver uma lei de proteção contra a discriminação e esta se operacionalizar em forma de conteúdos pedagógicos. Para isso, todos devem ser esclarecidos.

Na maioria das vezes, os conteúdos são ministrados de maneira absolutamente tradicional, quando o educador reproduz o que aprendeu em sua formação básica, apresentando o negro apenas como ex-escravizado. Falta ao professor o preparo para proporcionar ao aluno a construção de conhecimentos sobre a cultura afro-descendente, como estabelece a Lei 10.639/2003 e, principalmente, para discutir questões que surgem em sala de aula em decorrência do preconceito racial.

Mais recentemente, com o objetivo de promover a igualdade de oportunidades na vida econômica, política, social e cultural dos povos afrodescendentes e os demais grupos étnicos que integram a sociedade, é promulgado em 2010 o Estatuto da Igualdade Racial – Lei 12. 228, de 20 de julho de 2010 (BRASIL, 2010, online). Esse documento, fruto de lutas políticas em prol da igualdade racial, é diferente das legislações anteriormente citadas, por não referir-se apenas a uma categoria como a criança e o adolescente ou as relações sociais que se dão em determinado ambiente institucional, como a escola. Esse estatuto busca a proteção de um grupo racial de maneira abrangente, visualizando-o em toda a sua participação na sua vida social e privada.

Sobre a legislação, é preciso compreender que existe uma lei que pune o racismo, considerando-o crime inafiançável, conforme detalhes da legislação citada a seguir (BRASIL, online):

Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Art. 2º (Vetado).

Art. 3º Impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da Administração Direta ou Indireta, bem como das concessionárias de serviços públicos.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, por motivo de discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, obstar a promoção funcional. (Incluído pela Lei nº 12.288, de 2010)

Pena: reclusão de dois a cinco anos.

Art. 4º Negar ou obstar emprego em empresa privada.

§ 1o Incorre na mesma pena quem, por motivo de discriminação de raça ou de cor ou práticas resultantes do preconceito de descendência ou origem nacional ou étnica: (Incluído pela Lei nº 12.288, de 2010)

I - deixar de conceder os equipamentos necessários ao empregado em igualdade de condições com os demais trabalhadores; (Incluído pela Lei nº 12.288, de 2010)

II - impedir a ascensão funcional do empregado ou obstar outra forma de benefício profissional; (Incluído pela Lei nº 12.288, de 2010)

III - proporcionar ao empregado tratamento diferenciado no ambiente de trabalho, especialmente quanto ao salário. (Incluído pela Lei nº 12.288, de 2010)

§ 2o Ficará sujeito às penas de multa e de prestação de serviços à

comunidade, incluindo atividades de promoção da igualdade racial, quem, em anúncios ou qualquer outra forma de recrutamento de trabalhadores, exigir aspectos de aparência próprios de raça ou etnia para emprego cujas atividades não justifiquem essas exigências.

Pena: reclusão de dois a cinco anos.

No tocante à lei, compreende-se que representa um avanço, uma vez que mostra que o Poder Público assume a existência de uma questão racial e toca em pontos em que negros são prejudicados. Todavia, acredita-se que ela não contribui para esse trabalho uma vez que não apresenta um caráter educativo e elucidativo, apenas pune aqueles que praticaram o crime e que distantes dos olhares da lei, continuarão a tratar o negro com demérito perante os outros grupos raciais. Quando se propõe um projeto educativo para as relações étnicas e raciais, pretende-se uma ação de caráter preventivo, de modo a esclarecer as gerações futuras para a promoção de um tratamento equânime entre os vários grupos raciais e étnicos.