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Nem Estado nem mercado: o terceiro setor e as ONGs atuando na educação

Apesar do vasto caminho percorrido pelas organizações sociais, abordaremos este conceito a partir dos anos de 1990, quando o aparato jurídico dá as bases para o fomento das parcerias público-privadas. O Terceiro Setor pressupõe a existência de um primeiro e um segundo.

Particularmente no Brasil, durante e após o contexto ditatorial, a sociedade civil põe- se como locus privilegiado das lutas sociais e de classes pela hegemonia. A articulação das lutas num projeto de classes tende a dificultar a busca da hegemonia burguesa na sociedade civil. Por outro lado, (mediante a setorização de esferas da sociedade) e a mistificação de uma sociedade civil (definida como “terceiro setor”), “popular”, homogênea e sem contradições de classes (que em conjunto buscaria o “bem comum”) e em oposição ao Estado (tido como “primeiro setor”, supostamente burocrático, ineficiente) e ao mercado (“segundo setor”, orientado pela procura do lucro), contribui para facilitar a hegemonia do capital na sociedade (MONTAÑO, 2010, p. 15-16, grifo nosso).

É importante atentarmos também para o fato de que existe uma série de interpretações sobre o significado do termo sociedade civil. Desde os jusnaturalistas aos liberais, várias são as interpretações. Para Gohn (2008, p. 62),

Temos desde aqueles que utilizam o termo como processo de privatização, implicando a expansão do mercado e a limitação do Estado, até liberais da corrente humanista, que atribuem como espaço da sociedade civil o processo de aprofundamento da participação comunitária em projetos públicos, aumentando a performance do governo e sua aceitação pública. Outros advogam como sinônimo de civilidade. Recentemente observa-se, no ocidente, o crescimento da interpretação da sociedade civil como aperfeiçoamento dos processos deliberativos como democráticos, para criar mais espaço público.

A sociedade civil a que nos referimos neste trabalho, porém, parte da concepção de sociedade civil em Gramsci,

Gramsci afirmou que as modernas formações econômico-sociais ocidentais são resultados do dinâmico entrelaçamento de duas esferas societárias, a sociedade civil e a sociedade política. Pela nova acepção que conferiu ao termo “sociedade civil”, esta era para ele o conjunto de aparatos, estruturas e processos sociais que buscam dar direção intelectual e moral à sociedade, o que determina a hegemonia cultural e política de uma das classes sobre o conjunto da sociedade; e a sociedade política uma extensão de sedimentação ideológica promovida pela sociedade civil, que se expressa por meio dos aparelhos e atividades coercitivas do Estado, visando adequar as massas à ideologia e à economia dominantes. (MARTINS; GRUPPO, 2010, p.106)

As ONGs, nos últimos dez anos, vêm ganhando visibilidade pública, crescendo em quantidade enquanto organização do Terceiro Setor (público não-estatal). São as chamadas “organizações da sociedade civil sem fins lucrativos”, como é o caso do IAS.

Nas organizações sem fins lucrativos (OSFL) são caracterizados diversos tipos organizacionais. Algumas fundações, braços assistenciais de empresas (fundações Rockefeller, Roberto Marinho, Bradesco, Bill Gates), não podem esconder seu claro interesse econômico por meio da isenção de impostos, ou da melhora de imagem de seus produtos (aumentando a venda ou o preço) ou até na função propagandística que estas atividades exercem (ver a Parmalat, as fundações Ronald Mac Donald, Albino Souza Cruz, Telefônica, Odebrecht, Bradesco, entre outras). Têm, portanto, claro fim lucrativo, ainda que indireto. Por seu turno, para o caso das ONGs, pesquisas mostram como grande parte dos recursos repassados do Estado para algumas organizações (por meio das “parcerias”) – ou seja, parte da mais-valia recolhida pelo Estado em forma de impostos, e supostamente dirigida a atividades assistenciais –, não chega a seus destinatários finais, ficando para custear os gastos operacionais destas organizações. Nisto podemos até considerar o “salário” de altos funcionários de muitas organizações; aquelas chamadas popularmente de “pilantrópicas”: alguém bem relacionado monta uma ONG, e daí consegue financiamento, a maior parte do qual se destina a seu salário como gerente ou diretor – aí claramente há uma finalidade “lucrativa” (MONTAÑO, 2010, p. 58).

Por esta ressalva feita por Montaño, não podemos generalizar a atuação e importância destas organizações, porém, “Por seu turno, a ‘generalização’ de que é acusada essa perspectiva de abordagem do ‘terceiro setor’ põe limitações – na medida em que não diferencia a filantropia da ‘pilantropia’” (MONTAÑO, 2010, p. 18). A proposta nos parece ser de legitimar novas formas privadas por meio de velhas formas de benemerência.

Etimologicamente, a filantropia – palavra originária do grego na qual philos quer dizer amor e antrophos, homem – significa amor do homem pelo ser humano, amor pela humanidade. Apesar de sua raiz humanitária, a filantropia foi se consolidando, desde os primórdios do liberalismo, como um sistema de dominação. Segundo Procacci (1993), a filantropia sugere uma ideia de comunidade baseada numa sensibilidade moral; a moral é a chave para resolver o encontro entre miséria e ordem. Sem negar a importância do interesse individual para o sistema econômico, a filantropia elabora, pragmaticamente, uma referência ao interesse coletivo, de natureza essencialmente moral, que é o de reduzir a miséria e o perigo social que ela representa. Entre a noção econômica de interesse individual e a jurídica do direito, a filantropia desenvolve práticas que promovem a síntese entre interesse individual e interesse geral, a filantropia não interfere nos interesses econômicos e não se opõe ao Estado; ao contrário, protege o Estado de uma dívida em relação aos seus pobres. A filantropia deve contornar os riscos decorrentes do mercado auto-regulável e os de uma visão jurídica das relações sociais. Onde a intervenção jurídica criaria novos direitos, a filantropia ao contrário, mantém sobre tutela os pobres, de modo a confirmar suas necessidades em vez de afirmar o direito de sair dessa situação (BEGHIN, 2005, p. 45-46).

Para Lautier, citada por Beghin (2005, p. 48), “a história da filantropia está intimamente associada à do clientelismo”. Para Beghin (2005), alguns setores empresarias, portanto, como no caso dos institutos, fundações e empresas (GIFE), Fundação Abrinq e etc..., negam e buscam distanciamento das práticas clientelistas, considerando-as como práticas arcaicas. “Trata-se de uma tentativa de ruptura com a imagem tradicionalmente associada aos empresários brasileiros que os estigmatiza como um segmento atrasado e destituído de qualquer visão pública” (DINIZ, 1993 apud BEGHIN, 2005, p. 53).

Atualmente uma nova filantropia ganha espaço, estabelecendo que a sociedade como um todo é responsável pela pobreza, na medida que a mesma é um entrave para a modernização. E neste aspecto a própria sociedade deve encontrar a solução. “A neofilantropia empresarial faz referência a exigências morais de uma nova sociabilidade ou contratualidade baseada na moral da responsabilidade e da ética” (BEGHIN, 2005, p. 54). O discurso responsabiliza toda a sociedade e propõe uma nova forma de gerenciamento da questão social, envolvendo Estado e sociedade, só que em um novo Estado.

Esse novo Estado – reformado e gerencial – deve intervir nos campos econômico e social, desde que assegure o bom funcionamento do mercado. Complementarmente a essa ação do Estado, apregoa-se que as organizações da sociedade devem contribuir para amenizar os efeitos das múltiplas carências que o jogo do mercado capitalista não sabe evitar (BEGHIN, 2005, p. 55).

A luta do empresariado contra a pobreza é em sua maioria direcionado para o setor educacional, pois os investimentos no ensino fundamental e na alfabetização operam muito mais pelos seus efeitos indiretos. Para Beghin (2005), a ajuda por meio do ensino busca alcançar resultados mensuráveis que disciplinem os comportamentos dos beneficiados e, por

conseguinte, distante do fortalecimento da cidadania; além de reforçar junto à sociedade sua imagem institucional, melhorando seus negócios a partir do marketing social.

O discurso da reforma do Estado que desqualifica-se o público como burocrático e eleva-se à condição de administração ideal, a administração gerencial privada. Em outras palavras, tudo que é público é igual à incompetência porque competente é o privado com sua lógica mercadológica mundializada.

A boa gestão é aquela que define objetivos com clareza, recruta os melhores elementos através de concursos e processos seletivos públicos, treina permanentemente os funcionários, desenvolve sistemas de motivação não apenas de caráter material mas também de caráter psicossocial, da autonomia aos executores e, afinal, cobra os resultados. Nada disso existe na administração pública federal (BRASIL,1995, p. 65).

No plano administrativo, ocorre a defesa da administração pública gerencial burocrática. Da gestão gerencial, o documento reformista destaca que esta se inspira na administração da empresa. Esse modelo de gerência trouxe para o público, características inerentes à sociedade de mercado: competição, concorrência, descentralização e redução de níveis de hierarquia. A partir dessa lógica, o cidadão passa a ser o cliente preferencial dos serviços públicos e, portanto, exige-se dessa administração constante capacitação, avaliação e recompensa para o desempenho de seus atores, mérito para a administração, a carreira, a avaliação de desempenho e o treinamento sistemático.

Em nome de uma administração mais eficiente, o Estado abre espaço para parcerias com o setor privado, ao que no texto convencionou-se chamar de ferramenta de gestão. Nesse processo, por meio de programas executados “sem fins lucrativos”, os parceiros vão ganhando mais espaço de interlocução com os diversos setores da sociedade e garantindo a disseminação das ideologias neoliberais em um dos principais espaços de formação da sociedade.

3 A PARCERIA PÚBLICO-PRIVADO COMO NOVA FERRAMENTA DA GESTÃO EDUCACIONAL

O capítulo que se segue tem por objetivo refletir sobre as implicações das parcerias público-privado para a gestão escolar nas duas últimas décadas no âmbito da gestão pública. Iniciaremos a reflexão acerca da gestão democrática e suas bases legais a partir da década de 1980, quando se inicia um movimento em prol de uma educação democrática e participativa no Brasil e os possíveis meios de sua efetivação na escola, como: os conselhos escolares, eleição para diretores e autonomia escolar.

Posteriormente, na década de 1990, o distanciamento entre a legalidade e o que pode ser construído pelos atores escolares diante das mudanças que se apresentam nas novas formas de gerir o Estado, principalmente no contexto que se insere esta nova ferramenta de gestão – a parceria público-privado – a partir da redefinição das políticas educacionais. Advindas de um projeto neoliberal e da Terceira Via para o Brasil, tais mudanças são orientadas pela mesma premissa de diagnóstico de crise centrada no Estado, desencadeando crescentes privatizações e a participação cada vez maior da sociedade civil atuando como protagonistas na educação.

Desta forma, o Estado faz o seu papel de coadjuvante, se afastando de suas responsabilidades e abrindo espaços para a introdução de mecanismos de gestão da iniciativa privada, muitas vezes por meio de retóricas visivelmente impregnadas nos discursos políticos/ideológicos de democratização da escola pública, em que a gestão escolar segue as orientações privatistas, subordinando-se aos seus interesses.