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Além do Chile, outros países da América Latina viraram para o neoliberalismo antes do Brasil. Na Bolívia, com o objetivo de interromper a hiperinflação, chegou em 1985 com a

eleição de Jeffreu Sachs; depois, vieram México (1988), Argentina (1989), Venezuela (1989) e Peru (1990) (ANDERSON, 1995). O “atraso” do Brasil é explicado por Filgueiras (2006) pela dificuldade de conciliar os interesses das diferentes “frações do capital” relacionadas ao Modelo de Substituição de Importações e pela forte atividade política dos trabalhadores na década de 1980 – período em que a CUT, MST e PT foram criados. Na visão do autor, essa mobilização dos trabalhadores contribuiu para que as diferenças entre as frações do capital fossem diluídas, se unindo em torno de um projeto neoliberal.

Compreendendo o neoliberalismo como um sistema de acumulação27, Saad-Filho e Morais (2018) dividem a história recente brasileira em dois momentos: no primeiro, prevaleceu a industrialização por substituição de importações (ISI)28 (1930-1980); no segundo, iniciado no final da década de 1980, o neoliberalismo foi o sistema que predominou. Segundo os autores, a crise brasileira do sistema da ISI acompanhou a crise do keynesianismo e a derrota dos EUA no Vietnã, com a inflação mundial, os choques de petróleo, a instabilidade política e a “crise do dólar” causando restrições na balança de pagamentos da maioria das economias em desenvolvimento.

Segundo os autores, as dificuldades internacionais e a escolha do governo estatizar a dívida externa privada geraram um aumento dos gastos estatais com o serviço da dívida, levando à necessidade de imprimir dinheiro para pagar as despesas correntes, ao mesmo tempo em que teve que cortar gastos sociais e com investimento, enfraquecendo as empresas públicas (o que contribuiu para justificar suas privatizações no futuro). Nesse contexto, o baixo crescimento e a piora dos serviços públicos manchou a imagem do governo militar em relação à competência econômica (SAAD-FILHO; MORAIS, 2018). A partir do início dos anos 1970, a inflação começou a subir, atingindo 200% em 1983, após a crise da dívida externa; e, no início de 1986, chegou a cerca de 400% (SAAD-FILHO; MORAIS, 2018). Vários planos de estabilização foram implementados no período, mas todos fracassaram.

Filgueiras (2006), partindo da análise de Bianchi (2004), argumenta que nos anos 1980, o fracasso dos Planos Cruzado (1986), Bresser (1987) e Verão (1989) e as disputas na Assembleia Constituinte (1986-1988) foram o pano de fundo para o desenvolvimento e

27 Para Saad-Filho e Morais (2018, p. 5), o sistema de acumulação é a fase, a forma, o modo de existência etc. do

capitalismo em uma dada conjuntura, sendo determinado pelas relações de classe e pelas estruturas institucionais e processos através dos quais essas relações se reproduzem. Os autores apontam que há constrangimentos que limitam a acumulação em cada sistema de acumulação e que esses constrangimentos não são estáticos, mas dependem do contexto.

28 O ISI funciona a partir da produção de bens manufaturados que antes eram importados e de serviços auxiliares

com o objetivo de aliviar a restrição da balança de pagamentos, possibilitando a criação de empregos e novas tecnologias. Além disso, o ISI no Brasil estava associado ao desenvolvimentismo nacionalista (SAAD-FILHO; MORAIS, 2018, p. 16-17).

fortalecimento das ideias neoliberais no empresariado brasileiro, e desembocaram na percepção de que a crise tinha um caráter estrutural que não poderia ser resolvido através do Modelo de Substituição de Importações ou do projeto neodesenvolvimentista.

Nessa chave de compreensão a partir dos sistemas de acumulação, Saad-Filho e Morais (2018) argumentam que entre 1974 e 1988, houve no Brasil uma transição para a democracia marcada por uma lógica socialmente inclusiva que buscava a expansão da cidadania e o estabelecimento de um Estado de bem-estar social nos moldes escandinavos – com a dificuldade adicional de ser uma economia periférica. Já a transição para o neoliberalismo, entre 1988 e 1999, foi baseada na lógica da exclusão que buscava a financeirização, piorava as condições de vida e de trabalho, e concentrava renda.

Sobre a transição democrática, Miguel (2019) lembra que, diferente do que ocorreu em outros países, no Brasil a ditadura militar não entrou em colapso, e os militares conseguiram negociar a transição, que durou mais de dez anos. Segundo o autor, o principal motivo da abertura econômica foi a dificuldade de lidar com os custos da dominação, já que após o “milagre econômico”, a situação da classe média piorou, o que provocou um aumento da oposição ao regime. Cabe enfatizar também que as políticas implementadas após o golpe militar favoreceram a concentração de renda (SOUZA, 2018), e que, como argumenta Miguel (2019), no período militar os trabalhadores nunca tiveram nenhuma vantagem, e voltaram a se mobilizar, contribuindo para a crise do regime. Apesar de a oposição que se formou demandar tanto democracia quanto menor concentração de renda, a questão econômica perdeu força quando os civis retornaram ao poder (MIGUEL, 2019).

O que ocorreu foi uma transição “lenta, gradual e segura”, controlada pelos militares, e a eleição do primeiro presidente civil desde o Golpe foi realizada pelo Colégio Eleitoral, e não de forma direta, como demandado pela oposição de esquerda e pela população (SAMPAIO, 2009). A chapa vencedora tinha Tancredo Neves (PMDB) e José Sarney (ex-Arena) como vice, e com o falecimento de Tancredo, Sarney assumiu a presidência entre março de 1985 e março de 1990. Em 1º de fevereiro de 1987 instalou-se a Assembleia Nacional Constituinte, e em 5 de outubro de 1988, a Constituição Federal foi promulgada.

Menicucci e Lotta (2018) argumentam que, apesar de o país já possuir políticas sociais nos anos 1980, e sistemas nacionais de saúde e educação que tinham grande cobertura, a Constituição foi um marco porque colocou as políticas sociais no rol dos direitos e possibilitou transformações na atuação social do Estado, aumentando o acesso a bens e serviços públicos com base em uma ideia de solidariedade. A “concepção de seguridade social, que expressa a ideia de uma rede de proteção aos riscos sociais inerentes ao ciclo de vida, à trajetória laboral

e à insuficiência de renda” (MENICUCCI; LOTTA, 2018, p. 75) seria a principal mudança em relação às políticas sociais na CF.

No momento atual brasileiro, no qual direitos garantidos pela Constituição estão sendo retirados, é difícil apresentar uma visão crítica à CF, já que as perspectivas de mudança atuais parecem caminhar somente em direção a retrocessos. Porém, há visões distintas, mais ou menos críticas, sobre os avanços contidos na Carta Magna. Resultado de disputas entre diferentes grupos da sociedade, o maior consenso é que a Constituição é ambígua. Filgueiras (2006), por exemplo, argumenta que apesar do fortalecimento do neoliberalismo naquele contexto, a Constituição de 1988 demonstrou a repulsa da população brasileira a essa racionalidade.

Apesar das dificuldades em implementar as previsões da CF em relação às políticas sociais, a legislação acordada foi em direção à proteção social das pessoas, algo, ao menos na teoria, semelhante ao que ocorreu nos países que experimentaram o Estado de bem-estar social. Analisando as políticas sociais desde a Constituição de 1988, Menicucci e Lotta (2018) dizem que poderíamos chamar essas três décadas, “com afunilamento conceitual, de Estado de bem- estar social brasileiro”. Chamar os avanços sociais no Brasil de “Estado de bem-estar social” é complexo porque, como defendido por Miguel (2019, p. 41), o Brasil não teve nada próximo ao Estado de bem-estar social, o que seria um indicativo do quanto “a tolerância dos grupos dirigentes brasileiros à igualdade é muito reduzida”.

Saad-Filho e Morais (2018) argumentam que apesar de garantir a cidadania a trabalhadores e aos pobres, a Constituição não incluiu uma redistribuição substantiva do poder econômico, ou seja, a ampliação da seguridade social e do gasto público foi feita mais para substituir do que para alcançar a democracia econômica. Para os autores, a CF não acabou com a essência excludente do Estado brasileiro, mas abriu o caminho para que fosse construída uma sociedade mais igualitária. Nos anos 1990, dizem os autores, ela foi o motivo pelo qual os gastos sociais cresceram rapidamente no país – algo diferente do que ocorreu na maior parte dos países. No entanto, o momento após a aprovação da CF foi o de transição para o neoliberalismo ao redor do mundo, o que causou ambiguidades e dificuldades para acomodar esses dois movimentos que apontavam caminhos opostos.

O primeiro presidente eleito por voto direto após a ditadura foi Fernando Collor de Mello (PRN), que, para combater a inflação, lançou um forte programa de estabilização, chamado de Plano Brasil Novo, que congelou, além de salários e preços, todas as aplicações financeiras com valor superior a 50 mil cruzados por 18 meses. O governo também realizou cortes nos gastos públicos, fechou secretarias e ministérios, demitiu servidores públicos,

liberalizou radicalmente o comércio exterior, realizou privatizações etc. Em resumo, acabou com a base do sistema de substituição de importações. (SAAD-FILHO; MORAIS, 2018).

Em 1992, em meio a dificuldades financeiras, à alta inflação, e denúncias de corrupção, abriu-se uma CPI para investigar o presidente, e, em setembro, a Câmara aprovou o pedido de impeachment e Collor foi afastado. Em dezembro, ele renunciou, mas o Senado acabou condenando-o. O vice Itamar Franco assumiu o governo e, após demitir três ministros da Fazenda em sete meses, Fernando Henrique Cardoso (FHC) se tornou ministro e comandou a implantação do Plano Real, entre 1993 e 1994.

Segundo Saad-Filho e Morais (2018), as principais características do Plano Real foram: liberalização das importações; sobrevalorização da moeda; liberalização dos fluxos internacionais de capital; liberalização financeira doméstica; altas taxas de juros; reformas fiscais para eliminar os déficits do setor público; e desindexação. Para os autores, no curto prazo, o plano conseguiu diminuir a inflação, aumentar a demanda, aumentar o PIB rapidamente e diminuir o desemprego, e contribuiu para que Fernando Henrique Cardoso (PSDB) vencesse as eleições para a presidência em 1994. Porém, o Plano continha problemas cíclicos que impediam sua sustentabilidade.

O importante aqui é destacar que o Plano Real se inseriu numa lógica ou racionalidade neoliberal. Sampaio (2009), por exemplo, discute o fato de que os próprios textos dos economistas que formularam o Plano Real demonstram sua crença de que a estabilização e o crescimento dependiam da reformulação do papel do Estado na economia.

O governo de FHC foi marcado por medidas neoliberais, seguindo o que estava ocorrendo nos outros países da região e no mundo. Harvey (2016) explica, por exemplo, que mesmo nos Estados Unidos e Inglaterra, onde venceram as eleições candidatos de partidos de oposição às plataformas mais ligadas ao neoliberalismo, a direção seguida foi no sentido de continuar o que o autor chama de neoliberalização. Sendo assim, tanto Bill Clinton quanto Tony Blair deram origem à “terceira via”, que nada mais foi do que uma continuidade dessa neoliberalização.

No Brasil, o governo FHC pode ser considerado um dos representantes da “terceira via”29. Uma das medidas do governo em direção ao neoliberalismo foi a Reforma Gerencial do

Estado, em 1995, idealizada pelo economista Luiz Carlos Bresser Pereira, que comandava o

29 Em 1999, matéria da Folha de São Paulo noticiou que FHC iria representar o Brasil em uma reunião com mais

cinco governantes da “Terceira via”. Segundo o jornalista, o que os seis governantes tinham em comum era: “origem política de esquerda, prática de governo de centro-direita, preocupação em encontrar formulações teóricas que conciliem essa contradição” (SILVA, 1999).

Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE). Em texto escrito pouco depois do início da reforma, Bresser-Pereira (1997) argumenta que se entre os anos 1930 e 1960, o Estado foi um importante ator no desenvolvimento dos países, a partir de 1970 ele entrou em crise, sendo o culpado pelo baixo crescimento, pela alta inflação e pelo aumento do desemprego. Não é difícil perceber que a narrativa do então ministro colocava a culpa de muitos problemas econômicos e sociais no Estado. No texto, ele também admite que a tentativa de países em realizar reformas orientadas para o mercado, fruto de uma onda neoconservadora e neoliberal que buscava um Estado mínimo, não deram certo, mas indicaram a necessidade de reconstrução do Estado. Quatro problemas são apontados como centrais para essa reforma do Estado: “a delimitação do tamanho do Estado”; “a redefinição do papel regulador do Estado”; “a recuperação da governança ou capacidade financeira e administrativa de implementar as decisões políticas tomadas pelo governo”; e “o aumento da governabilidade ou capacidade política do governo de intermediar interesses, garantir legitimidade, e governar” (BRESSER- PEREIRA, 1997, p. 7).

Brown (2015) argumenta que a governança não era parte do imaginário neoliberal construído por seus fundadores, como Hayek e Milton Friedman, porém acabou convergindo com o neoliberalismo e se transformando na forma administrativa através da qual essa racionalidade criou seu ambiente, estruturando constrangimentos e incentivos, e conduzindo os sujeitos. A ideia tem início na Grã-Bretanha, com a criação do New Public Management nos anos 1980, com o objetivo de usar os métodos de gestão do setor privado no setor público, utilizando mecanismos de incentivo, empreendedorismo, terceirização e competição. Dessa forma, diz Brown (2015), a “boa governança” significava não só o uso de diferentes métricas, mas uma nova relação entre o Estado, o mercado e os cidadãos.

Relembrando a discussão realizada na seção sobre a racionalidade neoliberal e o papel do Estado, cabe destacar que, ao tratar de neoliberais como Hayek, Friedman, Buchanan etc., Bresser-Pereira (1997) os chama de “notáveis economistas neoclássicos”, mas argumenta que, diferente do que eles desejavam, a coordenação do sistema econômico no capitalismo contemporâneo deve ser realizada não só pelo mercado, mas também pelo Estado.

Segundo Brown (2015), a questão da governança é tão importante porque ela não só acabou com a lógica do Estado de bem-estar social, mas significou a sua completa inversão, já que isola os indivíduos, transforma-os em pequenas unidades de trabalho responsáveis por si mesmos, e acaba com a ideia de provisão coletiva para a sobrevivência. Nesse sentido, a Reforma Gerencial brasileira de 1995 também pode ser vista dessa forma. Enquanto a Constituição de 1988 criou regras em direção a uma responsabilidade coletiva pelas pessoas, a

Reforma de 1995 compreende os cidadãos como clientes que pagaram pelos serviços públicos através de seus impostos e têm o direito de receber serviços públicos porque pagaram por eles.

O Plano Diretor da Reforma afirma que o defeito da administração pública burocrática é “a incapacidade de voltar-se para o serviço aos cidadãos vistos como clientes” (BRASIL, 1995, p. 15) e explica que a Administração Pública Gerencial, por outro lado, “vê o cidadão como contribuinte de impostos e como cliente dos seus serviços” (BRASIL, 1995, p. 17). Sendo assim, é possível dizer que essa Reforma, realizada apenas alguns anos após a promulgação da CF, distorce o princípio inovador presente na Constituição da “universalidade não contributiva” – termo utilizado por Menicucci e Lotta (2018).

Entre 1995 e 1996, diversas mudanças na Constituição contribuíram para levar o país em direção ao neoliberalismo, como: o fim da distinção entre empresas brasileiras e estrangeiras; a permissão a companhias estrangeiras para explorar o subsolo; o fim do monopólio da navegação de cabotagem; fim do monopólio estatal das telecomunicações; e mudanças em relação ao monopólio estatal para exploração de petróleo e à possibilidade de atuação de instituições financeiras no sistema de seguridade social (SAMPAIO, 2009).

No final dos anos 1990, a economia não estava indo bem. O Plano Real era baseado no sistema de controle inflacionário com base no câmbio fixo, o que a partir de certo momento se tornou insustentável em função de gigantescos déficits comerciais e uma sucessão de crises internacionais que provocaram a fuga de capitais, levando a um esgotamento das reservas cambiais do Brasil, gerando a Crise do Real. FHC segurou o câmbio fixo até ser reeleito em 1998, instituindo o câmbio flutuante no início de 1999. Com o fim do câmbio fixo, criou-se um novo sistema de estabilidade de preços, o sistema de metas de inflação.

Segundo Saad-Filho e Morais (2018), a nova política completou a transição para o neoliberalismo no Brasil e incluía: foco na inflação, independência do Banco Central, fluxos de capital livres com a moeda flutuante, e uma política fiscal e monetária contracionistas. Esse conjunto de medidas ficou conhecido como “tripé macroeconômico”, sendo baseado em três pilares: câmbio flutuante, superávit primário e estabilidade de preços.

A transição brasileira ao neoliberalismo no governo FHC foi selada pouco tempo depois, em 2000, com a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101 de 2000). Impondo limites aos gastos públicos nos níveis municipal, estadual e federal, é possível dizer que a lei se insere na ideia apresentada anteriormente por Foucault (2008) sobre aplicar o Estado de direito na ordem econômica, limitando decisões e restringindo a atuação dos governantes.

Nesse período entre o fim da ditadura, a democratização e o desenvolvimento do neoliberalismo no país, os dados não são muito favoráveis. Entre 1981 e 2003, a renda per capita aumentou 2,7% por ano; o Brasil passou de oitava economia do mundo em 1980 para a 14ª em 2000; e o número de trabalhadores com carteira assinada diminuiu 15% nos anos 1990 (SAAD-FILHO; MORAIS, 2018).

Em 2002, Luiz Inácio Lula da Silva venceu as eleições presidenciais após ter sido derrotado nos três pleitos anteriores, iniciando em 2003 o primeiro governo de um partido de esquerda após a ditadura militar. Para Saad-Filho e Morais (2018), Lula foi eleito por uma “aliança de perdedores” que seria uma coalizão de grupos que tinham em comum uma experiência de perdas com o neoliberalismo, que inclui desde trabalhadores sindicalizados ou informais30, a empresários da burguesia interna prejudicados pelo baixo crescimento e mais simpáticos a políticas que poderiam impulsionar o mercado interno e gerar maior coesão social, e oligarcas de direita de regiões mais pobres do país. Segundo os autores, para consolidar essa aliança, Lula empurrou o PT para uma coalizão com o Partido Liberal (PL) – caracterizado pelos autores como um partido apoiador do neoliberalismo, arma política das igrejas evangélicas31 e, posteriormente, local de políticos oportunistas que desejavam estar no poder

sem precisar estar no PT . Nas eleições de 2002, José Alencar (PL) foi o nome escolhido por Lula para ser o vice na chapa presidencial, ajudando a atrair o apoio do capital doméstico, de doações, e a neutralizar as restrições da direita religiosa em relação ao PT (SAAD-FILHO; MORAIS, 2018).

Na campanha de 2002, um dos episódios indicativos de uma maior acomodação do PT ao neoliberalismo é a “Carta ao povo brasileiro”, escrita por Lula, onde ele se compromete a controlar a inflação e a preservar o superávit primário, afirma a importância do equilíbrio fiscal e insiste que o caminho para a melhora do país é o crescimento econômico (SILVA, 2002). As caracterizações discutidas anteriormente por Foucault (2008) e Brown (2015), de que no neoliberalismo o que se busca é o controle da inflação e o crescimento econômico, se encontram com o compromisso feito por Lula nesse documento divulgado em junho de 2002, num momento em que o país enfrentava uma grave crise cambial ainda em decorrência das fragilidades geradas pelo Plano Real acrescidas por uma conjuntura externa complexa pós-crise

30 Segundo Saad-Filho e Morais (2018), os trabalhadores informais tendiam a apoiar a direita, mas nas eleições de

2002 muitos apoiaram Lula por sua oposição ao neoliberalismo, por promessas de programas sociais e de transferência de renda, e pelo acordo do PT com várias igrejas evangélicas.

31 O próximo capítulo discutirá conservadorismo e tratará da influência religiosa, mas cabe destacar que o PL foi

o partido original de importantes lideranças evangélicas, como Magno Malta e Marcelo Crivella, que foram eleitos senadores em 2002.

argentina em 200132. Segundo Saad-Filho e Morais (2018), a carta não foi suficiente para a aliança neoliberal, que demandou garantias institucionais incluindo compromisso com a independência do Banco Central e com um novo acordo com o FMI, firmado em setembro de 2002. Esses fatos selaram a continuidade do neoliberalismo sob o governo de Lula.

Entre as medidas do primeiro mandato de Lula estão: aumento da meta de superávit primário, aumento dos juros pelo Banco Central – presidido pelo banqueiro Henrique Meirelles, reforma da previdência etc. Ao mesmo tempo, Saad-Filho e Morais (2018) ressaltam as mudanças ocorridas na administração federal, com um presidente que antes era metalúrgico e com a indicação de trabalhadores para ministérios e outros cargos relevantes, além da criação e ampliação dos programas federais de assistência social.

Já o segundo mandato de Lula (2007-2010) é caracterizado por um neoliberalismo desenvolvimentista – marcado por políticas econômicas neodesenvolvimentistas impostas ao tripé macroeconômico, em um contexto de cenário externo positivo (SAAD-FILHO; MORAIS, 2018). Os autores argumentam que houve uma transformação na base de apoio de Lula para o segundo mandato, que seria uma “aliança dos vencedores” formada por beneficiários do primeiro mandato, incluindo: a burguesia interna, jovens, trabalhadores de baixa renda, mulheres pobres que se beneficiaram com o Bolsa Família, e beneficiários de outros programas sociais e de transferências.

Uma das mudanças no segundo mandato foi em relação a cargos relevantes da área econômica, que passaram a ser ocupados por economistas heterodoxos e diplomatas nacionalistas, contribuindo para a formação de um neoliberalismo desenvolvimentista, nas palavras de Saad-Filho e Morais (2018). Esse neoliberalismo seria uma variante do sistema de acumulação neoliberal e, em um contexto internacional vantajoso, trouxe a criação de empregos