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Diferentemente dos outros temas trabalhados nessa tese, o debate sobre a “ideologia de gênero” não se desenvolveu a partir da proposição de um projeto de lei discutido em uma Comissão Especial. Como será possível observar no próximo tópico, a ofensiva contra gênero na Câmara dos Deputados se articulou com a discussão sobre o Escola sem Partido, mas não se restringe a esse projeto, sendo mais ampla e alcançando temáticas que vão além da educação.

Como dito anteriormente, a ofensiva contra a “ideologia de gênero” não é uma exclusividade do Brasil, mas faz parte de uma ação transnacional, arquitetada pela Igreja Católica e colocada em prática com a contribuição de igrejas evangélicas contra leis, políticas públicas, acordos etc. que empreguem os termos “gênero”, “orientação sexual” e outros correlatos, e que tem início ainda nos anos 1990, após as Conferências da ONU. Sendo que no Brasil começa a ganhar força com a votação do Plano Nacional de Educação em 2014, como apresentado no capítulo anterior.

Como 2014 era ano de eleições presidenciais e para o Congresso, nos meses após a aprovação do PNE, o assunto não foi mencionado em discursos ou documentos. A partir de 2015, é possível observar a proposição de documentos sobre o assunto. Teixeira (2019) analisa PLs, requerimentos e Projetos de Decreto Legislativo relacionados à “ideologia de gênero” e mostra que 2015 foi o ano mais relevante em termos quantitativos.

A busca por projetos de lei entre 2007 e 2018 relacionados à “ideologia de gênero” no site da Câmara dos Deputados retorna 11 PLs62, indicados no quadro abaixo.

Quadro 1 - Projetos de Lei relacionados à “ideologia de gênero”

Projeto Parlamentar Resumo

PL 1859/2015

Alan Rick (PRB/AC) e outros*

Proíbe “adoção de formas tendentes à aplicação de ideologia de gênero ou orientação sexual na educação”. PL 3236/2015 Marco Feliciano

(PSC/SP)

Inclui Parágrafo no PNE visando excluir a promoção da ideologia de gênero por qualquer meio ou forma. PL 2731/2015 Eros Biondini

(PTB/MG)

Altera o PNE para proibir o “uso da ideologia de gênero na educação nacional”.

PL 3235/2015 Marco Feliciano (PSC/SP)

Prevê detenção de seis meses a dois anos e multa para autoridade que veicular em atos, programas, planos expressões relacionadas à gênero e orientação sexual.

PL 5774/2016

Professor

Victório Galli (PSC/MT)

Constitui como contravenção a pessoa que usar o banheiro público diferente de seu sexo masculino ou feminino.

PL 5686/2016

Professor

Victório Galli (PSC/MT)

Constitui como contravenção a pessoa que usar o banheiro público diferente de seu gênero masculino ou feminino.

PL 5487/2016

Professor

Victório Galli (PSC/MT)

Proíbe orientação e distribuição de livros sobre orientação e diversidade sexual pelo MEC.

PL 10577/2018 Cabo Daciolo (PATRI/RJ)

Altera o PNE para proibir qualquer ato relacionado à ideologia de gênero em instituições públicas de ensino nos três níveis da federação.

PL 9948/2018

Vinicius Carvalho (PRB/SP)

“Os programas (...) que contenham questionamentos acerca das distinções biológicas existentes entre sexos, bem como o conceito tradicional e legal de família constantes na ideologia de gênero, deverão possuir classificação indicativa do Ministério da Justiça”. PL 10659/2018

Delegado Waldir (PSL/GO)

Altera a LBD para vedar a doutrinação política, moral, religiosa ou ideologia de gênero nas escolas.

62 Digitou-se “ideologia de gênero” no campo “assunto”, e marcada a seleção “projeto de lei”, no endereço:

https://www.camara.leg.br/busca-portal/proposicoes/pesquisa-simplificada. Foram excluídos os projetos de lei propostos fora do período pesquisado na tese. Acesso em: 14 out. 2019.

PL 9689/2018 Jô Moraes (PCdoB/MG)

Altera a LDB para incluir inciso objetivando promover a igualdade entre homens e mulheres como princípio do ensino e como diretriz do PNE.

Fonte: Elaboração própria com informações da Câmara dos Deputados63.

* Os outros parlamentares que assinaram o PL estão mencionados na Nota de Rodapé nº 59.

Sobre os PLs apresentados, apenas o da deputada Jô Moraes (PCdoB/BA) não está relacionado a alguma proibição relativa à “ideologia de gênero”. Provavelmente ele retornou na busca porque há um texto citado cujo título é “Ideologia de Gênero: uma falácia construída sobre os planos de educação brasileiros”, mas a deputada não usa essa expressão no projeto, apesar de mencionar em diferentes momentos a palavra gênero e a expressão “desigualdades de gênero”.

Em relação aos outros projetos de lei, cabe destacar que todos foram propostos a partir de 2015 e por parlamentares homens. Alguns deles estão apensados ao PL 7180/2014, relacionado ao Escola sem Partido, cuja tramitação será discutida no próximo tópico. Um dos projetos que está tramitando e não foi apensado é o PL 3235/2015, proposto pelo deputado Marco Feliciano (PSC/SP), que busca instituir detenção de até dois anos e multa para autoridade que veicular determinados temas e expressões ou fomentar a “ideologia de gênero” (BRASIL, 2015d). Desde a legislatura passada, o PL tramita na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, mas ainda não teve a manifestação de nenhuma relatora – todas as anteriores eram do PT, e nessa legislatura ele está sob a relatoria da deputada Tábata Amaral (PDT/SP).

Cabe destacar que em outubro de 2016, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, através do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher, emitiu uma moção de repúdio ao PL 3235/2015, argumentando que o projeto era inconstitucional e defendendo que o termo gênero está previsto no Direito Internacional e é adotado na legislação brasileira, como na Lei Maria da Penha (SÃO PAULO, 2016). O documento também afirma que a igualdade material prevista na Constituição Federal ainda não foi alcançada e só será quando as desigualdades de gênero forem desconstruídas, e se possa discutir e esclarecer que “o sexo com o qual nascemos não pode definir, como se uma sentença fosse, se teremos mais ou menos direitos em nosso país” (SÃO PAULO, 2016).

Na justificação do PL, o deputado Marco Feliciano (PSC/SP) cita o livro Problema de Gênero, de Judith Butler, e a Conferência da ONU em Pequim, para explicar como o conceito

63 Disponível em: https://www.camara.leg.br/busca-

portal?contextoBusca=BuscaProposicoes&pagina=1&order=relevancia&abaEspecifica=true&q=%22ideologia% 20de%20g%C3%AAnero%22&tipos=PL. Acesso em: 14 out. 2019.

de gênero surgiu, mas argumenta que foi apenas em 2006, com o início dos trabalhos para a elaboração dos Princípios de Yogyakarta que as expressões “orientação sexual” e “identidade de gênero” foram definidas. Após essa contextualização sobre gênero, o deputado cita José Eduardo de Oliveira, apresentando-o como professor e especialista em Teologia Moral. O professor é padre – informação não mencionada no PL, e a fala atribuída a ele na justificação é de uma entrevista dada à ZENIT, agência de notícias internacional que pretende mostrar “o mundo visto de Roma”, tratando de temas ligados à Igreja Católica. O que o padre José Eduardo de Oliveira diz nessa entrevista é que a “ideologia de gênero” provoca o esvaziamento do conceito de homem e mulher, e que:

O grande objetivo por trás de todo este absurdo – que, de tão absurdo, é absurdamente difícil de ser explicado – é a pulverização da família com a finalidade do estabelecimento de um caos no qual a pessoa se torne um indivíduo solto, facilmente manipulável. A ideologia de gênero é uma teoria que supõe uma visão totalitarista do mundo. (OLIVEIRA, 2014).

Depois de apresentar a definição de “ideologia de gênero”, o deputado se detém a discutir como se deu a votação sobre o Plano Nacional de Educação, e afirma que após a aprovação da retirada dos termos “gênero” e “orientação sexual”, o Fórum Nacional de Educação publicou o Documento Final da Conferência Nacional de Educação de 2014 que fomenta a “ideologia de gênero”. Dessa forma, o objetivo público do PL era: “reagir de forma mais contundente para coibir a proliferação da ideologia de gênero” (BRASIL, 2015d, p. 8).

Outro projeto de lei relacionado à “ideologia de gênero” e que merece ser mencionado por sua mobilização da família é o PL 1859/2015, proposto por 15 deputados/as64, sendo uma mulher, e apensado ao projeto que trata do Escola sem Partido. O PL 1859/2015 menciona a palavra “família” em mais de 90 ocasiões e visa alterar a LDB para proibir a “adoção de formas tendentes à aplicação de ideologia de gênero ou orientação sexual na educação” (BRASIL, 2015e, p. 1). Há na justificação uma contextualização bastante similar à que consta na justificação do PL discutido anteriormente, de Marco Feliciano, mas mais completa, já que este PL possui 14 páginas só de justificativas.

Na justificação, os deputados citam a mesma entrevista mencionada por Marco Feliciano no PL 3235 do padre José Eduardo Oliveira, para depois afirmar que a “luta contra a

64 Os autores do PL 1.859/2015 são: Alan Rick (PRB/AC); Antonio Carlos Mendes Thame (PSDB/SP); Antonio

Imbassahy (PSDB/BA); Bonifácio de Andrada (PSDB/MG); Celso Russomanno (PRB/SP); Eduardo Cury (PSDB/SP); Eros Biondini (PTB/MG); Evandro Gussi (PV/SP); Givaldo Carimbão (PROS/AL); Izalci (PSDB/DF); João Campos (PSDB/GO); Leonardo Picciani (PMDB/RJ); Luiz Carlos Hauly (PSDB/PR); Rosangela Gomes (PRB/RJ); Stefano Aguiar (PSB/MG).

discriminação de gênero desvirtua o foco pela luta a favor da mulher” (BRASIL, 2015e, p. 12). O PL termina argumentando que é por essa razão que os parlamentares retiraram a palavra “gênero” do PNE e que, devido à “grande pressão” para promover a “ideologia de gênero” no sistema de educação, eles propunham esse projeto de lei. Eles também citam o documento produzido pelo Fórum Nacional de Educação, criticando-o.

Após a aprovação do PNE, em junho de 2014, ocorreu em novembro daquele ano a 2ª Conferência Nacional de Educação (CONAE), que é organizada pelo Fórum Nacional de Educação, criado na 1ª Conferência (2010). Com a participação de 4 mil pessoas, o tema da Conferência de 2014 era “O Plano Nacional de Educação (PNE) na Articulação do Sistema Nacional de Educação: Participação Popular, Cooperação Federativa e Regime de Colaboração”. Um dos eixos do documento final do CONAE é intitulado: “Educação e Diversidade: Justiça Social, Inclusão e Direitos Humanos”, e é caracterizado como “o eixo central da educação e objeto da política educacional”, se relacionando “à efetivação da educação pública democrática, popular, laica e com qualidade social, banindo o proselitismo, o racismo, o machismo, o sexismo, a homofobia, a lesbofobia e a transfobia nas instituições educativas de todos os níveis, etapas e modalidades” (BRASIL, 2014e, p. 29). Além disso, o relatório menciona a palavra “gênero” mais de 40 vezes, e “orientação sexual” 17 vezes.

Nos discursos e PLs, deputados afirmam que o CONAE não tinha esse direito, já que o documento serviria para a elaboração dos planos municipais e estaduais de educação, e o Congresso já havia decidido que o PNE não traria referência a gênero ou orientação sexual. Outros PLs de 2015 também citaram esse relatório: PL 2731/2015 e PL 3236/2015. Além dos discursos e projetos de lei, deputados apresentaram dois requerimentos de informação e oito requerimentos objetivando convocar integrantes do governo e da sociedade civil para se pronunciarem sobre a implementação da “ideologia de gênero” na educação e “solicitando audiências públicas com a participação de atores e atrizes para que esclarecessem os supostos perigos daquela agenda política para a coesão social, para a instituição familiar e sexualização precoce de crianças e adolescentes” (TEIXEIRA, 2019, p. 112).

Outros dois projetos de lei relacionados à “ideologia de gênero” merecem ser mencionados com mais detalhes porque trazem a interferência do Estado como central para suas argumentações. O PL 10577/2018, proposto pelo deputado Cabo Daciolo (Patriota/RJ) em julho de 2018, busca “proibir a disseminação da ideologia de gênero nas escolas” (BRASIL, 2018i, p. 1). Primeiro o que chama atenção no projeto é o fato de que o início da justificativa começa com uma citação bíblica, o que não foi muito comum nos projetos de lei analisados, que em geral não continham argumentos abertamente religiosos. A citação diz que Deus criou

o homem e a mulher e lhes disse para serem férteis e se multiplicarem. É uma citação claramente relacionada com a reprodução, e logo depois dela o deputado afirma que a “ideologia de gênero é um dos grandes engodos para perverter a família natural e com isso permitir ao Estado um papel que não lhe cabe: impor a sua filosofia autoritária sobre a população” (BRASIL, 2018i, p. 2).

O outro projeto relacionado à intervenção do Estado é o PL 10659/2018, proposto pelo deputado Delegado Waldir (PSL/GO). O objetivo é alterar a LDB “para proibir a doutrinação política, moral, religiosa ou ideologia de gênero nas escolas” (BRASIL, 2018j, p. 1). O deputado argumenta que:

Não se pode aceitar a pretendida institucionalização da defesa da agenda da ideologia de gênero em detrimento dos valores éticos e sociais da família. A partir do momento em que o Estado escolhe defender valores de certos grupos e desprezar o modo de vida da maioria das famílias brasileiras, há desequilíbrio no processo natural da evolução das ideais em nossa sociedade. (...)

Não se trata de considerar uma ideologia melhor do que outra, mas de impedir a interferência do Estado na questão. A neutralidade é ainda mais necessária na idade escolar, durante a qual as crianças são entregues a escolas públicas ou particulares, cujo conteúdo didático é determinado pela lei. (BRASIL, 2018j, p. 3).

Além da proposição de projetos de lei que não avançaram muito ou foram apensados ao PL relativo ao Escola sem Partido, outra ação protagonizada por deputados ligados à ofensiva contra gênero se refere à Medida Provisória (MP) 696/2015 (BRASIL, 2015f). A MP estava relacionada à organização da Presidência da República e dos Ministérios, e incluía entre as atribuições do Ministério de Direitos Humanos, Políticas para as Mulheres e Igualdade Racial: “planejamento de gênero que contribua na ação do Governo federal e das demais esferas de governo para a promoção da igualdade entre mulheres e homens”. Deputados contrários à “ideologia de gênero” discursaram defendendo a retirada do termo “gênero”, e no texto final o termo realmente foi suprimido. A supressão da expressão ocorreu em fevereiro de 2016, meses antes do afastamento da presidenta Dilma Rousseff.