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CAPÍTULO II – A EDUCAÇÃO ESPECIAL NO BRASIL CONTEMPORÂNEO:

2.1 Neoliberalismo, políticas educacionais e educação inclusiva

Conforme citado no capítulo anterior, a escola se constituiu ao longo da história como um local privilegiado de reafirmação da identificação coletiva com o Estado e suas decisões. Nesse sentido, a massificação do acesso escolar pela instauração da escola pública, laica e obrigatória foi fruto da necessidade dos Estados Nações em criar uma identidade nacional que unificasse as subjetividades individuais (AFONSO, 2001). Entretanto, com a ascensão do Estado moderno e de uma política globalizada, junto ao maior contato entre

diferentes culturas e identidades, levou à necessidade de reformulação das políticas educacionais, uma vez que as práticas pedagógicas não podiam continuar indiferentes à heterogeneidade cultural que vinha ganhando força (AFONSO, 2001).

Verger (2019), ao discutir as teorias que envolvem as políticas educacionais globais destaca como a globalização surge atrelada a uma série de reformas educacionais pautadas nos ideais neoliberais que as orientam para o mercado através, principalmente de mecanismos avaliativos formulados por Organizações Internacionais (OIs), entidades que:

Devem ser vistas ambas como fóruns de cooperação e luta entre os países membros e os atores de políticas autônomas em si mesmos. Os estados mais poderosos geralmente tentam instrumentalizar as OIs para alinhar essas organizações com seus próprios interesses econômicos e geopolíticos. Entretanto, as OIs não estão exclusivamente a serviço dos Estados membros nem simplesmente são a extensão de interesses nacionais particulares (VERGER, 2019b, p. 15).

Nesse sentido, essas organizações acabam impactando direta ou indiretamente sobre as políticas públicas, principalmente nos países periféricos. Percebe-se, portanto, que elas ocupam uma posição de poder central na dinâmica mundial, principalmente devido sua capacidade de tecnificar a realidade, estabelecendo critérios de classificação, conceitos e normas sociais e, dentro desta lógica, os indicadores educacionais se constituíram como uma ferramenta utilizada pelos governos para mostrar que estão no caminho para a constituição de um Estado moderno (VERGER, 2019).

A retrospectiva histórica trazida no capítulo anterior explicita bem a influência e o protagonismo exercido por essas organizações18, que através de fóruns e conferências internacionais tiveram papel ativo na disseminação do ideal de uma sociedade inclusiva e, por consequência, na implementação da educação especial pela perspectiva da educação inclusiva na agenda global. Isso não quer dizer, porém, que a pressão desempenhada pelo movimento das pessoas com deficiência tenha sido em vão e que as conquistas, tanto no âmbito da educação quanto da sociedade como um todo, tenham sido fruto da boa vontade das classes dominantes.

Verger (2019) e Afonso (2001) destacam que as OIs não são os únicos agentes que exercem influência sobre as políticas educacionais globais dado que a globalização não é um processo único ou unidirecional. Podendo ser entendida através da perspectiva hegemônica. em que atua (do nível global para o local) de modo a atender aos objetivos do capitalismo transnacional ou, também, pela perspectiva contra hegemônica, ou seja:

18 Organização das Nações Unidas, Organização Mundial de Saúde, Banco Mundial e demais agências

A expressão de movimentos sociais de resistência, quer as experiências e iniciativas concretas de mudança social, muitas vezes iniciados localmente e ampliados globalmente, em ambos os casos tendo como fundamento perspectivas (econômicas, culturais, éticas e políticas) que se constituem como propostas alternativas sobre a organização do mundo, sobre os direitos dos seres humanos e sobre a preservação da vida na Terra (AFONSO, 2001, p. 23-24).

Nessa perspectiva Bezerra e Araújo (2013) destacam a importância de se manter uma visão crítica sobre o papel dessas organizações na difusão dos ideais defendidos pelos movimentos sociais, uma vez que seu auxílio está inserido em um contexto específico da economia global onde, a partir de fins dos anos 1980, a educação passa a ter um papel central na difusão dos valores capitalistas. Nesse período também ganha força o discurso que a coloca como central na diminuição das desigualdades sociais (BEZERRA; ARAUJO, 2013). Para os autores, a inclusão surge em meio à ascensão do neoliberalismo não só como resposta às demandas populares, mas principalmente, para a manutenção do status quo.

Apesar de não ser o foco deste trabalho discutir a ação do projeto neoliberal sobre a política de educação especial no Brasil, é inviável compreender sua evolução sem ao menos mencionar como estas são impactadas pelo capitalismo transnacional. No âmbito desse estudo, entende-se por neoliberalismo o modelo econômico que defende a intervenção estatal na economia apenas com o intuito de garantir a reprodução das relações de produção. O projeto neoliberal tem como principais diretrizes a privatização, a desregulamentação do mercado e a liberação do investimento externo direto (MATOS, 2008). O capital transnacional, por sua vez, é associado às grandes corporações internacionais que promovem a financeirização de diferentes setores. No campo da educação, um exemplo desta ação está nos grupos privados internacionais que vem ganhando cada vez mais força no país (PINO et al., 2018).

O ideal inclusivista dentro de uma sociedade neoliberal diz respeito a uma temática mais ampla que a das pessoas com deficiência. A inclusão surge, na verdade, como “uma forma produtiva e econômica de cuidado com a população e, especificamente com cada indivíduo que a compõe” (LOPES; RECH, 2013, p. 211). Nesse sentido, as autoras demonstram como as políticas sociais estabelecidas nos governos FHC e Lula (1995-2010) foram um reflexo da política capitalista que busca igualar, ao menos formalmente, indivíduos que estão em posições sociais diferentes. Nesse processo, as políticas sociais desenvolvidas por ambos os governos tiveram em comum o caráter compensatório19, principalmente condicionando benefícios de programas de transferência de renda à frequência escolar de

19 Políticas compensatórias são aquelas tem por fim assegurar as condições mínimas de subsistência aqueles

crianças e adolescentes, o que propiciou, por exemplo, a diminuição dos índices de evasão, repetência e analfabetismo no país (LOPES; RECH, 2013).

Deve-se recordar que a implementação da educação especial no país embasou-se em acordos internacionais até 2014. Uma mudança de paradigma pode ser notada a partir do PNE (2014-202420). Em sua meta 4 é estabelecido o compromisso de:

Universalizar para a população de 4 (quatro) a 17 (dezessete) anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, o acesso à educação básica e ao atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino, com a garantia de sistema educacional inclusivo, de salas de recursos multifuncionais, classes, escolas ou serviços especializados, públicos ou conveniados (BRASIL, 2014).

Porém, ao retomar o termo preferencialmente, a redação dada ao PNE atual marca uma importante inflexão, aumentando o risco de retrocessos do ponto de vista da educação inclusiva.

Se, nos anos 1990, a difusão dos ideais inclusivistas foi norteada pela possibilidade de reduzir os gastos estatais com instituições especializadas, hoje, a ideia é justamente economizar, terceirizando o atendimento desses alunos. A terceirização ganha força a partir de 2016, quando se intensifica a aprovação de medidas que diminuem e desvinculam recursos antes destinados à área educacional. Consequentemente, houve o descumprimento das metas do PNE e crescente difusão do discurso de privatização e terceirização da educação básica como solução para a incompetência estatal (SILVA; MACHADO; SILVA, 2019).

Quanto às mudanças propostas pelo governo de Michel Temer, Grabois et al. (2018) discorrem contra a reforma sugerida, enfatizando justamente o modo como o governo se apropriou do discurso da educação inclusiva para mudar a política através de um processo supostamente democrático, que contou apenas com a participação de instituições favoráveis a classes e escolas especiais. Da análise do projeto, fica claro o objetivo de retomar a educação especial como modalidade substitutiva ao ensino regular, ao invés de transversal como colocado na PNEEPEI (GRABOIS et al., 2018).

No último ano, com o início do mandato de Jair Bolsonaro na presidência da República, os retrocessos em relação não só à PNEEPEI, mas também a outros âmbitos da

20 Disponível em: http://pne.mec.gov.br/18-planos-subnacionais-de-educacao/543-plano-nacional-de-educacao-

política social brasileira têm sido ampliados21. No âmbito da educação inclusiva destacou-se a extinção da SECADI (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão) em 02 de janeiro de 2019, medida com impactos diretos sobre políticas de educação no campo, Educação de Jovens e Adultos, educação especial, dentre outras que visam “assegurar o direito à educação com qualidade e equidade, tendo políticas públicas educacionais voltadas para a inclusão social” (TAFFAREL; CARVALHO, 2019, p. 85). Em abril foi divulgada a dissolução de inúmeros conselhos de participação social pelo Decreto 9.759/1922, dentre eles o CONADE. Entretanto, segundo divulgado pela página da Câmara dos Deputados em 07 de maio de 2019, o conselho seria reestruturado a fim de atender às medidas impostas pelo Decreto23, garantindo assim sua permanência. O que se nota nas duas medidas citadas é a dissolução de ambientes de inclusão e de diálogo com a sociedade.

Deve-se frisar que a PNEEPEI se encontra em revisão desde 2018 e, ao que tudo indica, será publicada em 202024. O novo texto defende a flexibilização da educação especial, ou seja, que esta não precisa ocorrer necessariamente na escola regular, podendo ocorrer em classes e escolas especiais. Do discutido até o momento sobre a perspectiva inclusiva, fica claro o quanto essa proposta surge na contramão do defendido, ignorando o desenvolvimento da criança com NEE, ainda que a justificativa seja justamente essa. O que está em jogo com a retomada dos discursos segregacionistas é a política de privatizações e sufocamento de políticas sociais (TAFFAREL; CARVALHO, 2019). É, em meio a esse cenário, que instituições tradicionalmente voltadas à educação especial têm se articulado e se alinhado a interesses neoliberais para retomarem seu espaço pré-PNEEPEI (SILVA; MACHADO; SILVA, 2019).

Apesar dos projetos voltados à inclusão social vigentes, os valores neoliberais que permeiam o ensino traduzem parte das tensões observadas nas escolas ao enaltecerem a competitividade e o individualismo. Na visão neoliberal, a escola deve ter como norte os ideais exclusivamente meritocráticos, que, quando não colocados em perspectiva, reproduzem e legitimam hierarquias sociais, sem levar em conta as condições socioeconômicas às quais os estudantes estão submetidos e suas especificidades. No que diz respeito propriamente à educação especial, Dainêz (2009) argumenta como essa lógica se mostra prejudicial ao

21 Durante o primeiro ano de governo foram inúmeros os ataques à educação, ciência, tecnologia, Direitos

Humanos e artes realizadas pelo governo, e, por mais que essas ações se insiram no contexto do neoliberalismo e sua ação sobre as políticas sociais, sua análise foge do escopo deste texto.

22 Acesso em: 22 jan. 2020.

23 Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/556897-conselho-nacional-de-direitos-da-pessoa-com-

deficiencia-permanece-garante-secretaria/. Acesso em: 22 jan. 2020.

24 Disponível em: https://www.bol.uol.com.br/noticias/2019/12/01/governo-deve-publicar-nova-politica-de-

alunado com deficiência, que de antemão “não é olhado pelas suas possibilidades, e sim é visto pelos seus limites subjacentes ao déficit orgânico” (DAINÊZ, 2009, p. 35), lógica que se opõe ao modelo social, posto que reforça a deficiência como um problema individual. Quanto ao aprendizado, a perspectiva imposta pelo “Estado avaliador” (AFONSO, 2001), que preza mais pelos indicadores e resultados do que pelos processos educativos, intensifica os processos de homogeneização, comprometendo os ideais propostos pela educação inclusiva.

Contextualizar as políticas de inclusão permite um melhor entendimento das tensões e desafios enfrentados para a realização de uma educação inclusiva, uma vez que a própria estrutura econômica e social se opõe a essas práticas práticas através de barreiras atitudinais e estruturais.

2.2 A relação entre infraestrutura escolar, qualificação docente e desempenho dos