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1 O VALOR, O ARBITRÁRIO E A ANALOGIA NA TEORIA SAUSSURIANA

2.1 NEOLOGIA: FENÔMENO DE CRIAÇÃO LEXICAL

Fenômeno, segundo o Dicionário Online de Português, é um substantivo masculino

que caracteriza um acontecimento passível de observação que pode ser explicado cientificamente. Tratar a neologia como fenômeno de criação lexical é reafirmar que os fatos de linguagem são fatos científicos e que a Linguística, ciência por eles responsável, está aí para tratar e desvendar os mistérios dos elementos que os compõem.

Ieda Maria Alves é professora titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do projeto “Observatório de neologismos do português brasileiro contemporâneo”, cujo objetivo é fazer a coleta e analisar dados da neologia geral e da neologia técnica/científica do português para verificar aspectos desses fenômenos. A linguista estuda a neologia, e uma de suas obras utilizadas aqui é

Neologismo: criação lexical (1994) que discorre sobre os processos de formação neológica no

português. A autora, referência nacional no campo dos estudos de morfologia, parte da teorização proposta por Louis Guilbert para apresentar sua própria classificação. Neste estudo, tomaremos como base o trabalho de Alves (1994) e salientaremos, quando julgarmos necessário, alguns pontos abordados na clássica obra de Guilbert (1975).

2.1.1 Neologia: conceito e classificação

Segundo Alves (1994), “[o] acervo lexical de todas as línguas vivas se renova. Enquanto algumas palavras deixam de ser utilizadas e tornam-se arcaicas, uma grande quantidade de unidades léxicas é criada pelos falantes de uma comunidade lingüística” (ALVES, 1994, p. 5). Sendo assim, os sistemas linguísticos existentes se encontram em constante renovação e tal feito é realizado pelo fenômeno denominado neologia. O “processo de renovação lexical” (Ibidem) implicado pela neologia possibilita a atualização do patrimônio linguístico de cada comunidade, fazendo com que falantes, através de mudanças em itens lexicais, elaborem novas formas linguísticas que podem ou não penetrar a langue e dela fazer parte. Quando aceita pela comunidade em questão, a forma neológica passa a integrar o sistema linguístico, caso contrário, sua existência é fugaz.

Reuillard (2007), ao tratar da obra de Guilbert (1975), diz que esta é “obra de referência que consagra a criatividade lexical em língua francesa”; Guilbert apresenta um dos primeiros estudos acerca do fenômeno neológico e é uma das grandes obras consultadas no que concerne esse tema. Segundo o autor, a neologia pode ser definida como “a possibilidade de criação de novas unidades lexicais, em virtude das regras de produção incluídas no sistema lexical53” (GUILBERT, 1975, p. 31, tradução nossa). Refletindo acerca do conceito de analogia proposto por Saussure (2012), percebemos certa semelhança ao pensar que a nova forma da langue é constituída com base nas regras de produção já existentes naquele sistema (a analogia, como vimos no capítulo anterior e no início deste, supõe um modelo e sua imitação). Alves (1994) nos diz que “[o] neologismo pode ser formado por mecanismos oriundos da própria língua, os processos autóctones, ou por itens léxicos provenientes de outros sistemas lingüísticos” (ALVES, 1994, p. 5). Assim, são diversos os processos que se encontram envolvidos nas criações neológicas e é sobre eles que falaremos agora.

Guilbert (1975) propõe uma classificação dos neologismos da seguinte maneira: neologia denominativa, neologia estilística e neologia de língua. Reuillard (2007) diz que a neologia denominativa “tange à necessidade de nomear um objeto, um novo conceito e visa à exata adequação do nome ao objeto ou conceito, buscando evitar qualquer ambigüidade na designação” (Ibidem, p. 36). Logo, pelas palavras do próprio Guilbert (1975) é por isso que

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No original: “La néologie lexicale se définit par la possibilité de création de nouvelles unités lexicales, en vertu des règles de production incluses dans le système lexical” (GUILBERT, 1975, p. 31).

ela “tende a uma certa descrição da coisa designada54” (Ibidem, p. 40, tradução nossa), uma

vez que seja inspirada “pela preocupação de eficácia55” (Ibidem, tradução nossa). Pensando

na nossa língua podemos citar o exemplo da palavra “corrimão”, termo usado não só para nomear o objeto como também para descrevê-lo, ou melhor, descrever a sua função (conforme vimos acima, a descrição da coisa designada é atitude bastante comum em se tratando da neologia denominativa).

O segundo tipo de neologia, a estilística, está relacionada à “(...) originalidade profunda do indivíduo falante, à sua faculdade de criação verbal, à sua liberdade de

expressão, fora dos modelos recebidos ou contra os modelos recebidos56” (GUILBERT,

1975, p. 41, tradução e destaques nossos). Esse é o tipo de neologia que aparece principalmente nas obras literárias, pois é “própria dos escritores57” (Ibidem, tradução nossa). Um exemplo de escritor que utiliza de forma muito criativa o recurso da neologia é Lewis Carroll. Em Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá temos, no diálogo entre a menina e o personagem Humpty Dumpty, o aparecimento da expressão unbirthday, traduzida para o português (tanto na edição da editora Zahar quanto na adaptação cinematográfica da Disney) como desaniversário, termo que trata de todos os dias que não são o dia do aniversário do indivíduo. Além desse exemplo, segundo Reuillard (2007), também encontramos esse artifício nas obras de James Joyce, João Cabral de Melo e Neto, Guimarães Rosa entre outros.

O terceiro e último tipo de neologia proposto por Guilbert, a neologia de língua, nada mais é que “as formações verbais que não se distinguem das palavras comuns do léxico e não chamam a atenção quando ‘usadas’ pela primeira vez” (REUILLARD, 2007, p. 37) uma vez que obedecem as regras de formação de palavras do sistema linguístico em questão. O autor fala do exemplo apresentado por Saussure de “indécorable” (no francês), pois tal formação não se distingue de outras tantas formações da língua francesa, visto que conta com um prefixo (in), uma base (décorer) e um sufixo (able), ou seja, está de acordo com o sistema lexical em questão. Outro exemplo que podemos pensar para a neologia de língua é o verbo “coisar”, o ato de fazer algo/alguma coisa que o falante não consegue definir no momento que

54 No original: “C’est pourquoi celle-ci tend à une certaine description de la chose désignée (...)” (GUILBERT,

1975, p. 40).

55 No original: “elle s’inspire, non de considérations esthétiques dans son principe, mais du souci d’efficacité”

(GUILBERT, 1975, p. 40).

56 No original: “(...) à l’originalité profonde de l’individu parlant, à sa faculté de création verbale, à sa liberté

d’expression, en dehors des modèles reçus ou contre les modèles reçus” (GUILBERT, 1975, p. 41).

enuncia. Essa formação verbal em nada se distingue de tantas outras do português brasileiro, isto é, segue o padrão radical (cois-) + vogal temática (-a-) + desinência (-r). Segundo Guilbert (1975), considerando o processo vinculado a esse tipo de formação neológica podemos dizer que “[o] que define o neologismo é menos a sua realização efetiva (...) do que sua virtualidade. Esta se define pelas regras morfossintáticas que regem a combinação de elementos ou morfemas lexicais e geram unidades novas de léxico58” (Ibidem, p. 44, tradução nossa). Assim, o reconhecimento da forma neológica, muitas vezes, é feito por estudiosos (linguistas/morfologistas) e não pelo falante comum que, ao se deparar com signos que seguem as regras morfossintáticas para formação de palavras de seu idioma, não é capaz de distingui-los das formações já existentes em sua língua.

Alves (1999) refere-se aos neologismos dividindo-os em dois grandes grupos para depois tratar dos processos classificatórios de ambos. São eles os neologismos e os neologismos terminológicos (Ibidem, p. 162). Os neologismos são as formações cotidianas, ao passo que os neologismos terminológicos estão relacionados à língua técnica, “às línguas de especialidade” (Ibidem, p. 159). De acordo com a autora, “[o]s neologismos são criados espontaneamente na língua. Possuem, não raro, um caráter lúdico, como muitas vezes observamos na publicidade e na literatura” (Ibidem, p. 160). Por isso “podem as unidades neológicas manifestar uma duração efêmera, revelada, freqüentemente, entre os neologismos giriáticos, os neologismos literários, os da publicidade e mesmo entre os divulgados pelo jornalismo” (Ibidem, p. 161). Já os neologismos terminológicos “resultam de uma criação motivada, pois respondem a uma necessidade, ditada pelo desenvolvimento das ciências e das técnicas” (Ibidem). Por possuírem esse caráter de motivação, tais neologismos acabam obedecendo “a algumas normas, como a conformidade às regras de formação morfológica da língua e a possibilidade de derivação de novos elementos. Neologismos terminológicos revelam, assim, um caráter relativamente estável na língua” (Ibidem).

Ainda de acordo com Alves (1999), apesar de as duas categorias de neologismos apresentarem diferenças entre si, elas também apresentam muitos pontos em comum e uma destas similaridades se encontra nos “processos que determinam a criação de neologismos e neologismos terminológicos” (Ibidem) que, segundo a autora, são os mesmos, como derivação, composição e etc.

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No original: “Ce qui définit alors le néologisme c’est moins as réalisation effective, (...) que as virtualité. Celle-ci se définit par les règles morpho-syntaxiques qui régissent la combinaison d’éléments ou morphèmes lexicaux et génèrent des unités nouvelles de lexique” (GUILBERT, 1975, p. 44).

No estudo realizado em 1994, Alves apresenta os neologismos divididos em categorias distintas das duas que retrata posteriormente, em seu trabalho de 1999. Nesse texto, Alves descreve “os processos de formação neológica no português brasileiro” (Ibidem, p. 8). Além disso, a autora salienta que

[s]endo a língua um patrimônio de toda uma comunidade lingüística, a todos os membros dessa sociedade é facultado o direito de criatividade léxica. No entanto, é através dos meios de comunicação em massa e de obras literárias que os neologismos recém-criados têm oportunidade de serem conhecidos e, eventualmente, de serem difundidos. (ALVES, 1994, p. 6)

Isto é, os meios de comunicação em massa (e aqui não podemos deixar de pensar na internet) e a literatura contribuem fortemente para a consolidação das novas formas lexicais de um sistema. Através da divulgação operada por esses dois meios, os membros da comunidade linguística podem, em conjunto (ou seja, na condição de falantes de dado idioma), determinar quais formas permanecerão no acervo lexical e quais não permanecerão. A decisão sobre quais formas entram ou não na langue, conforme já vimos no capítulo anterior, cabe à comunidade e não apenas a um pequeno grupo ou até mesmo um só falante. É a massa que determina a mudança.

Dado que tenhamos visto, em linhas gerais, como a neologia aparece nos textos que utilizamos como referência em nossa investigação, verificaremos (de uma forma um pouco mais detalhada), a seguir, os processos de formação neológica apresentados por Alves (1994), a fim de compreendermos como se dá o nascimento de um neologismo em português brasileiro.