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2. Pascoaes em seu tempo, saudade de quê?

2.1 Neopaganismos finisseculares

Narrei-me à sombra e não achei sentido. Hoje sei-me o Deserto onde Deus teve Outrora a sua capital de olvido...

Fernando Pessoa Ó espelho inútil, meus olhos pagãos! Aridez de sucessivos desertos...

Camilo Pessanha A luz entrega o mundo, a sombra recebe- o, comunga-o.

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Um pensador do mundo-(neo)pagão-a-vir foi António Mora58, ocupando os

bastidores da produção pessoana, em seu tempo de criação e publicação dos heterônimos, em revistas e antologias. Figura de bastidor, como dissemos, mas não por isso figura menos estruturadora do drama heteronímico59, Mora nos define, conceitualmente, as principais posturas ético-estéticas dos três heterônimos, Reis, Campos e Caeiro; e nos mostra como o trio fundamentalmente é uma reação de cunho (neo)pagão à mundividência cristã e anticristã, subjetivista e metafísica, que desembocou, nos tempos de Pessoa, numa consciência de ‘degenerescência’ civilizacional.

A ela, os heterônimos responderiam existindo num outro tipo de lógica, só possível, evidentemente, por serem compostos por poemas e intersecções poéticas, já que uma das principais conquistas da heteronímia como drama poético vem do fato de, entre os autores fictícios, haver inúmeros diálogos e leituras críticas um do outro. Esse desdobramento, de autores inventados que se leem, chega ao leitor de um modo pungente, já que eles próprios, fazendo-se leitores de si mesmos, acabam por nos conferir, a nós, leitores em segundo grau, um lugar também neste drama, ficcionalizando-nos e forjando uma espécie de ‘mundo literário total’. A rede de enredos que a heteronímia tece, começa com esse desdobramento dos heterônimos em leitores de si mesmos. É no diálogo encenado, no qual entramos como leitores inventados, mais do que ‘leitores reais’, que a voz de Caeiro, por exemplo, se transforma na utopia de um ‘ser-Caeiro’, mais propriamente poema-Caeiro, descolada – quase ao máximo – de uma imagem autoral centralizada em Pessoa, embora esta imagem persista enquanto fantasma regente desta ópera.

António Mora, também discípulo de Caeiro como seu ‘continuador filosófico’, funciona como uma espécie de subtexto teórico aos heterônimos, numa quase- existência, já que pouco se pôs na cena dialógica como os outros três, trabalhando mais como suporte filosófico deles. Segundo Parreira da Silva (PESSOA, 2013), Mora parece aparecer pela primeira vez num texto de 1913, “Maneiras de bem sonhar nos metafísicos”, texto que faz referência à narrativa (prevista em 1907 – 1910) em que

58 Figura de fundo, que pouco, portanto, aparece na produção que Pessoa virá a publicar ‘em vida’, mas

que deixara muitos papeis e projetos de obras, incluindo a chamada O Regresso dos Deuses, agora publicada pela editora Assírio & Alvim, com introdução e organização de Manuela Parreira da Silva (2013)

59 A organizadora Manuela P. da Silva, lê Mora como “provavelmente, entre os múltiplos autores fictícios

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Mora então se apresentaria, “Na Casa de Saúde de Cascais”, embora travestido de Dr. Gama Nobre.

Teresa Rita Lopes acentuará o nascimento de Mora anterior aos heterônimos, “no interior dessa Casa, como o louco-iluminado com a missão de diagnosticar e tratar o ‘morbo mental’ do homem moderno, com um nome que, ao princípio, foi um qualquer porque o que contava era a personagem em si” (LOPES, 1990, p. 198). Embora grande parte dos documentos de Mora, – este médico da cultura internado num sanatório – não estar datada, a crítica especializada sustenta a hipótese de que Mora tenha sido frequente a todo o tempo da escrita pessoana60.

No “Regresso dos Deuses”, Mora estudará o paganismo em relação ao cristianismo, procurando mostrar como a passagem civilizatória de um para outro não aponta uma ‘evolução’, mas sim uma doença. Luis Filipe B. Teixeira, no Dicionário Fernando Pessoa assim o diz – chamando nossa atenção para as obras de John Mackinnon Robertson61, estudioso do cristianismo e de religiões antigas e autor contemporâneo a Pessoa, cujo nome abundava em sua biblioteca (23 livros), além de um dos primeiros a defender uma não historicidade de Jesus, que seria uma transformação do judaico ‘Joshua’, deidade solar.

Lendo a passagem do paganismo ao cristianismo como um movimento do pensamento concreto ao pensamento abstrato, que segue em constante processo de amplificação destas abstrações, Mora postula uma evolução às avessas, cuja única saída, saída sanatorial, é internar-se numa ética-estética objetivista tal qual a vivida pelos gregos: “My hypothesis that all progress is based on a degeneration: Seria a transição do concreto para o abstracto por uma perda gradual da noção clara e sadia do concreto?” (PESSOA, 2013, p. 40). E numa extensa explicação, apresenta sua leitura do atual contexto, em que “uma nova era pagã se tornou possível” (idem, p. 34),

60 No espólio de Pessoa foram encontrados muitos documentos relativos a Mora, entre eles, o principal

projeto de obra: Obras Atlânticas a publicar: Athena – Cadernos de reconstrução pagã (cujo diretor seria o próprio Mora), dividido em 4 cadernos: o 1º incluiria a) “Regresso dos Deuses: Introdução à obra de Alberto Caeiro”; b) “Prolegómenos a uma reformação do Paganismo (Teoria Geral do Paganismo Novo); c) “Os Fundamentos do Paganismo (Contratese à ‘C. da R. Pura’ de Kant e tentativa de reconstruir o objetivismo pagão’”; o 2º contendo “Introdução ao Estudo da Metafísica”; o 3º sem documentos; e o 4º caderno com um “Ensaio sobre a Disciplina”; a “Dissertação sobre o Artificialismo” e um opúsculo sobre uma “Dissertação a favor da Alemanha e do seu procedimento na Guerra Presente; e por fim, “Orpheu”.

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Segundo José Barreto: “figura de proa do movimento racionalista e secularista britânico, foi um dos autores mais lidos e respeitados por Pessoa. (...). Entre as obras de Robertson lidas por Pessoa, [destaca-se] ‘Christianity and Mythology’ (1900), uma ‘Short History of Christianity’ (1902) e ainda ‘Pagan Christs’ (1903) – três obras que Pessoa indicou como fontes dos ‘Prolegomena’ de António Mora. (...) Terá sido [por meio destas obras] que Pessoa adquiriu muito dos seus conhecimentos sobre mitologia e simbologia religiosa, cultos pagãos da Antiguidade ou seitas gnósticas dos primeiros séculos do Cristianismo” (BARRETO in MARTINS, 2010, p. 737).

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já que, com o desenvolvimento da arqueologia e da antropologia no século XIX, um novo olhar se fez à história das religiões e religiões comparadas:

Antes, procurava-se fazer aluir a metafísica do Cristianismo, ou a moral do Cristianismo, por uma crítica direta delas; hoje, essa metafísica e essa moral são aluídas, insensivelmente, indiretamente, por outro processo: a verificação de que há muitas outras metafísicas religiosas, às quais as do Cristianismo não sobreleva em sentido nenhum racional, muitas outras éticas que a do Cristianismo não supera em ternura, em beleza ou em efeito. Antes, o homem europeu ou cria ou descria, porque, confrontado somente com o Cristianismo, ou cria nele ou em parte dele ou em nada. Hoje, o homem europeu, conhecedor de cinco ou seis sistemas religiosos, pode descrer do Cristianismo para crer em qualquer dos outros sistemas; ou, não crendo em nenhum, tem todavia uma visão mais larga da importância da religião entre a humanidade, uma mais larga tolerância daqueles mesmos abusos e crueldades que quase consideravam próprios do Cristianismo (...). Esta emergência de diversos sistemas religiosos teve um resultado particular: o erguer o paganismo dos gregos e dos romanos à superfície; e ele passou de um fenômeno morto do passado a um fenômeno religioso a ser considerado, na ordem lógica, em paralelo com o Cristianismo. Pode dizer-se que o paganismo deixou de ser anterior ao Cristianismo, tomando lugar ao lado dele e de todas as mais religiões estudadas, num panteão sem hierarquias. Desde esse momento passou a ser possível um repensamento do paganismo (PESSOA, 2013, p. 35)

Ou, como diria Octavio Paz, “a partir dos românticos, o Ocidente se reconhece numa tradição diferente da romana, e essa tradição não é uma, mas múltipla” (PAZ, 2013, p. 70). E assim Mora ‘define’ o que entende por paganismo, negando o seu senso comum de ‘materialismo’ e invertendo-lhe a noção, também comum, de que se trata de uma postura religiosa alegre e ensolarada. É interessantíssimo notar como, definindo o paganismo, Mora nos apresenta os três pontos capitais do triângulo, em nossa leitura, da ética mais geral de Pessoa: a resignação, apresentada na poética do Fado ou do Destino, céu com que se dignar a existir; o poder, orientando as pesquisas pessoanas sobre a noção de ‘gênio’ e ‘influência’ e fortemente/diabolicamente se fazendo sedutor e/ou provocador; e, o último ponto, o drama do controle, disposto tanto na relação que esta poética mantém – em jogo irônico – com o leitor, quanto na própria malha escrita que insiste em não ser(mos) capaz(es) de definir e diferenciar a experiência do real e seu anverso, a ilusão. O paganismo, portanto, segundo Mora:

170 (...) nem é materialista nem é estreito: é simplesmente o conceito do universo que estabelece, acima de tudo, a existência de um Destino implacável e abstrato, a que homens e deuses estão igualmente sujeitos; abaixo desse destino, a raça dos deuses e a dos homens, distintas em grau mas não em qualidade, ambas compostas por seres imperfeitos, ambas eivadas de injustiça e de capricho. O paganismo é isto, e disto derivam todas as fórmulas pagãs: a vulgar, que faz sacrifícios aos deuses e tenta propiciá-los, pois que, não sendo melhores que nós, são todavia mais poderosos; a chamada epicurista, que, considerando que os deuses não curam de nós e o Destino é inumano e indivino, acha que a vida não merece outra consideração que não um humilde estudo de como a poderemos passar com menos dor – pelo prazer intenso e breve, ou pelo longo equilíbrio dos prazeres -; e a chamada estoica, que acha que ao homem compete, como homem, submeter-se ao Destino e aos Deuses; como deus virtual, ter o orgulho intelectual de conhecer a necessidade dessa submissão. Pode alegar-se que o fundo do paganismo é triste; e deveras o é. Mas o pagão é um objetivo: vê as coisas e aceita-as, nem julga que serve de alguma coisa o criar ilusões para se julgar feliz se não fossem os mistérios (restritos na sua recepção). Foi o Cristianismo que trouxe à civilização ocidental a necessidade de substituir o universo. Não seremos injustos se dissermos que o Cristianismo foi na civilização europeia a primeira forma conhecida do ópio ou da cocaína (PESSOA, 2013, p. 34-35).

Triste, anti-humanista, objetiva, resignada: tal é a proposta moreana que poderia ‘curar’ um tanto de uma sentimentalidade agônica, doentia, vinda a lume com a metafísica cristã e exacerbada pelo ‘mal do romantismo’, que, nas palavras de Bernardo Soares, acontece com a confusão entre o que “nos é preciso e o que desejamos (...). O que é doença é desejar com igual intensidade o que é preciso e o que é desejável, sofrer por não ser perfeito como se sofresse por não ter pão (PESSOA, 2010, p. 83). E arremata: “O mal romântico é este: querer a lua como se houvesse maneira de a obter. O pagão desconhecia (...) este sentido doente das coisas e de si mesmo. Desejava também o impossível; mas não o queria” (idem, ibidem).

Aderente intenso a estas manifestações da consciência crítica finissecular em transe para o Modernismo, Pessoa, em muitos momentos seus, dialogará com Pascoaes, cuja resposta à decadência – embora bem menos diversa que a de Pessoa – será dançada à roda de alguns pilares recorrentes, tendo como eixo a resposta maior que, em Pascoaes, será a Saudade. Ambos elaborarão, sobre um pensamento de fundo comum, o lastro de suas poéticas, ancoradas numa noção, particular em cada um, de renovo do paganismo ou neopaganismo. Se em Pessoa a concretização

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do projeto (neo)pagão se dará na heteronímia, em Pascoaes ela resultará naquilo que alguns chamam de ‘panteísmo transcendental’, que, muito depois de ter sido ‘escola literária’ no ‘Saudosismo’, será o que sempre fora, este longo e arfante romance da saudade.

Haquira Osakabe descreve o ambiente finissecular, em seu sentido moral decadente e sua tentativa de superação ética pela estética, em conformidade com o que dissera João Barrento acerca da ambivalência entre melancolia e impulso criativo, em momentos de crise cultural:

Quando se fala em decadentismo e quando, pela primeira vez, foi feita a alusão a essa tendência finissecular, tinha-se pouca ideia das verdadeiras implicações desse termo. A glamourização da palavra acabou por atenuar o impacto da substancial transformação pela qual o século estaria passando, ocultando em boa parte o estado de profunda depressão que iria sofrer a Europa. E essa depressão resultava não tanto do declínio de um tipo particular de sociedade, mas da dissolução da tradição ética que o mundo ocidental teria erigido para si. Nesse sentido, o decadentismo foi muito mais do que uma assumida deposição de armas: foi a manifestação de um estado de espírito em que o homem sente-se mortalmente atingido no seu próprio cerne. O que ‘salvou’ a humanidade do mergulho completo em sua própria dissolução foi que o decadentismo vislumbrou para o homem e para a época uma saída estratégica, com a superação da ética pela estética, através do cultivo de um universo paralelo ao universo cotidiano, atitude que permitiria reorganizar e assimilar o que de excrescente parecesse àquele mesmo cotidiano. Assim acredito que o universo decadentista deva ser visto como uma imensa reinvenção das sobras do dia-a-dia, como se de um lado ficasse a matéria deteriorada e, de outro, o fluxo de uma sublime depuração (OSAKABE, 2002, pp. 30-31).

Publicado em 2002, o estudo de Haquira Osakabe, Fernando Pessoa, resposta à decadência concentrou-se, justamente, na leitura da heteronímia pessoana enquanto uma das respostas neopagãs ao seu contexto. A outra resposta seria a via ocultista, cujo caminho alquímico iria dar na imagem do ‘deus menino’, tão fulcral a Pessoa como a Pascoaes, embora de modo diferente.

Uma das lacunas que convém apontar, desde já, no estudo de Osakabe é a mais completa ausência do nome de Teixeira de Pascoaes. Nem uma menção sequer. Ora, num estudo sobre Pessoa, que ressalta especificamente o seu reacender pagão como resposta à decadência, não nos parece possível ignorar a importância de Pascoaes neste debate, que, antes de Pessoa, com seu Jesus e Pã, de 1903, já trazia

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à cena portuguesa os afloramentos europeus de revitalização de estéticas pagãs; ele, para quem, na obra, a figura da criança divina, eterna promessa de redenção perdida, se faz central à compreensão funda da saudade... ele ficou de fora. Osakabe elege Antero como antecessor maior de Pessoa na elaboração da crise com a decadência, passando por outros nomes já de praxe associados ao modernismo pessoano (Cesário, Pessanha, Brandão), mas ignora por completo a importância de Pascoaes62. Mais estranho tal postura nos parece quando nos confrontamos com passagens explícitas em que o próprio Pessoa vincula, ‘pelo avesso’, Pascoaes e Caeiro, revelando aí uma direta influência e fazendo de Pascoaes uma espécie de ‘mestre por reação’ de Caeiro, o mestre dos heterônimos. Citemos dois excertos em que esta relação é colocada. Pessoa diz:

62 Citamos aqui algumas passagens da obra de Osakabe em que seria oportuno, à sua crítica, que

comentasse a relação de Pessoa com Pascoaes: 1. Quando sustenta um Caeiro pagão como contraposição ao Ocidente cristão decadente, por exemplo: “Pessoa tentou em boa parte de sua obra ensaística, datável de 1914 a 1918, aproximadamente, justificar para a sua criação heteronímica uma motivação finissecular (...). A solução que Pessoa entreveria para esse declínio estaria no que ele mesmo denominou o surgimento de uma nova sensibilidade pagã, da qual Alberto Caeiro seria a grande e feliz expressão” (OSAKABE, 2002, p. 19). Ou ainda: “A invocação de nomes como Walter Pater, Oscar Wilde, de modo mais evidente, e de Nietzsche, de modo mais indireto, aponta para o fato de que Pessoa sabia perfeitamente com quem dialogava e contra que se contrapunha no momento em que, como ortônimo ou como António Mora, dispunha-se à organização de um ideário anticristista que desse à obra de seus heterônimos justificativas, aparentemente além do estético” (idem, p. 77); 2. Quando fala de Campos como engenheiro saudoso, comparando-o a Proust e Bergson, neste trecho: “Campos (...) é imperfeito e escancaradamente o mais angustiado dos heterônimos. (...) o moderno engenheiro poeta afina-se neste ponto não só com a afirmação saudosista de seu país, mas sobretudo com um dos grandes cruzamentos temáticos que aquela época conheceu, sobretudo através das obras de Bergson, de um lado, e de Proust, de outro” (idem, p. 132); 3. Quando lê na ‘criança divina’ pessoana um regresso à natureza, como por exemplo neste trecho: “Pessoa se apegaria à Criança Divina como um modo de negação radical da degenerescência do mundo que o século XIX lhe havia ensinado. Só o sonho de uma criança essencialmente divina poderia vir em socorro da natureza excessivamente adulta e cansada do homem” (idem, p. 152); 4. Quando elogia o paganismo de Mora como um ‘paganismo heterodoxo’, esquecendo-se da heterodoxia religiosa que também marcou o paganismo cristão de Pascoaes, por exemplo no trecho: “A insistência do Ortônimo numa via subjetiva do paganismo teria desse modo não tanto uma função erradicadora do cristianismo, mas ‘disciplinadora’ das ‘emoções criadas pelo cristianismo’. O Paganismo Superior, obra a ser publicada pelo ortônimo, deveria conter as ideias básicas de um paganismo heterodoxo, de que o manuscrito de 1917 parece ser a peça mais consistente” (idem, p. 167); 5. E, finalmente, quando Osakabe lê em Pessoa uma espécie de ‘salvação negativa’ que, sem qualquer dúvida, encontraria um bom interlocutor em Pascoaes, já que sabemos que a ‘saudade’ carrega em si muito mais a volúpia negativa da queda do que o gozo abstrato das resoluções definitivas. Vejamos, por exemplo, um trecho de Osakabe sobre o assunto: “É que [o próprio Osakabe, em 1ª pessoa], vivendo em pleno fim de um outro século, em que se obscureceram as luzes de tantos sonhos, talvez o que mais me fascine no grande poeta seja a sua obcecada procura por uma via de salvação para aqueles que insistem em sobreviver, isto mesmo considerando o já sobejamente decantado Pessoa-demolidor. Que me entendam: nenhum dos pretensos projetos salvíficos que se revelam pela poesia pessoana pode inscrever-se numa perspectiva simplesmente constituidora. Basta se entender a radicalidade destituidora de um Caeiro ou a insuportável via sacrificial de sua alquimia para se entender que para Pessoa nenhuma salvação é pacífica” (idem, pp. 22-23).

173 Os pouquíssimos poetas com quem Caeiro pode ser comparado, ou por simplesmente fazer ou poder fazer que nos lembremos deles, ou por se poder conceber que haja sido influenciado por eles, quer pensemos nisso seriamente ou não, são Whitman, Francis James e Teixeira de Pascoaes.

Assemelha-se mais a Whitman. Assemelha-se a Francis James em alguns pontos secundários. Lembra-nos fortemente Pascoaes, porque sendo a sua atitude para com a Natureza, essencialmente metafísica, naturalística e pode-se mesmo chamar uma atitude absorta, como é a de Pascoaes, contudo é tudo isso inversamente ao que Pascoaes é do mesmo modo. [excerto 1]

Tanto Caeiro como Pascoaes encaram a Natureza de um modo

diretamente metafísico e místico, ambos encaram a Natureza como o

que há de mais importante, excluindo, ou quase excluindo, o Homem e a Civilização, e ambos, finalmente, integram tudo o que cantam nesse seu sentimento naturalista. Esta base abstrata têm de comum: mas no resto são, não diferentes, mas absolutamente opostos. Talvez Caiero proceda de Pascoaes; mas procede por oposição, por reação. Pascoaes virado do avesso, sem o tirar do lugar onde está, dá isto – Alberto Caeiro. (PESSOA, 2004, p. 128).

Em Uma Admiração Pastoril pelo Diabo (Pessoa e Pascoaes), António M. Feijó trouxe, recentemente, um dos contributos críticos mais interessantes à leitura dos poetas citados no título, não apenas reiterando a vinculação poética de ambos, num jogo de ‘influências’ e intertextualidades tensas que estão no cerne de suas obras; como também, com alegre coragem, assumindo, logo no início, a sua posição como leitor de Pessoa, na contramão da crítica que se edificou sobre pressupostos de ver, na obra pessoana, apenas impessoalidade e fragmentação: “defendo a autoridade plena de Pessoa” (FEIJÓ, 2015, p. 7). Em relação a Pascoaes, sua maior atenção está em evidenciar o “sistema” daquela obra, sistema que Feijó entende ser “gnóstico”, tão preciso quanto os seriam os de Shelley ou Blake.

Num de seus ensaios sobre Caeiro (no qual Pessoa concentrará parte importante de suas questões envolvendo consciência e natureza), Feijó argumenta como aquele, Caeiro, se faz em relação-reação a Wordsworth, num intuito de melhor “corrigi-lo” e fazendo desta ‘correção’ a base de seu paganismo:

Wordsworth figura o excesso que afeta a poesia morderna, ao conferir a uma pedra eloquência, até mesmo capacidade de enunciar sermões. Esta persuasão homilética da natureza revela-se na leitura, durante muito tempo canônica, dos seus poemas como consolação (...). Avessa a esse excesso, a posição de Caeiro é descrita por Pessoa num

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