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Retorno ao Marão e a dedicação à escrita das biografias (1916 – 1952)

1.2.1 Da infância à formação coimbrã (1877-1884)

1.2.1.5 Retorno ao Marão e a dedicação à escrita das biografias (1916 – 1952)

Em 191649, de volta ao seu solar no Marão e afastado de A Águia, Pascoaes inicia, digamos, um novo momento de sua obra, experimentando agora a consistência lírica da prosa. Neste ano, ano em que Portugal entra na 1ª Guerra Mundial, Pascoaes publica o relato de seu passeio de automóvel pela região da Beira: A Beira, Num Relâmpago. Registrando uma viagem de automóvel, acompanhado de amigos, feita na madrugada de 15 de agosto de 1915, de Amarante a Arganil, Pascoaes escreve, na abertura deste texto: “Viajar em auto é correr mundo, a cavalo num relâmpago” (PASCOAES, 1994a, p. 21).

48“O ‘saudosismo’ fora a expressão de uma vontade firme – e republicana! – de refletir a respeito de

Portugal, fornecendo ao país uma maneira particular de se pensar e de estar no mundo. Contrariamente a algumas interpretações mais pessimistas, o saudosismo não é portador de uma teoria da renúncia – ou, em todo o caso, esta não exclui outras possibilidades teóricas e pragmáticas - ; embora este movimento não tenha podido furtar-se aos elementos proféticos-messiânicos que, então como hoje, forneciam à sociedade portuguesa uma maneira de se esquivar ao seu próprio devir: para muitos dos ‘saudosistas’, os de ontem como os de agora, o futuro está contido e enregelado no passado. O Bailado não teoriza o ‘saudosismo’. (...) É certamente indispensável sublinhar a importância da revista tripeira, hoje muito maltratada em consequência da correção da história literária a que procedeu a ‘Presença’ coimbrã: a partir de 1927 e das grandes intervenções teórico-históricas de José Régio, desapareceram as figuras gradas do que seria a falsa modernidade portuguesa, substituídas pelas publicações e pelos autores que, pouco ouvidos até então, passam pouco a pouco a ocupar a cena cultural portuguesa. A exaltação das revistas ‘Portugal Futurista’ e ‘Orpheu’, quando não da ‘Contemporânea’, fez-se em detrimento d’ ‘A Águia’. De resto a revista não resistiria muito tempo a esta situação, tendo desaparecido em 1930, quatro anos após a proclamação da ditadura militar, e três anos após as primeiras intervenções dos jovens universitários de Coimbra, que repeliam a impossível importância do ‘saudosismo’, para lhe preferir a explosão perturbadora dos cubistas, futuristas e outros que tinham abalado as maneiras de ver, de sentir, de ler simplesmente, de um país que continuava absurdamente rural e agrícola, mau grado a fascinação provocada pelas grandes metrópoles urbanas” (MARGARIDO in PASCOAES, 1987, pp. IX – X)

49 Entre este período de mocidade e engajamento na revista do ‘saudosismo’ (1910-1916), ressalta-se:

em 1912, a publicação do Manifesto Anti-Dantas, de Almada Negreiros; Princípio, de Mário de Sá- Carneiro; El-rei Junot, de Raul Brandão e O Porto Oculto, de Sampaio Bruno. Neste ano, morre Manuel Laranjeira. Em 1914, Mario Beirão publica O último Lusíada e Miguel de Unamuno, O sentimento trágico da vida. Neste ano, Pascoaes recebe de Sá-Carneiro o Dispersão, ano em que este também publica A Confissão de Lúcio e, como sabemos, começa a 1ª Guerra Mundial. Em 1915, explode Orpheu, a revista do modernismo português; Sá-Carneiro publica Céu em fogo, morre Sampaio Bruno e ocorre, em Portugal, o golpe militar que instaura a ditadura de Pimenta de Castro. Em 1916, Portugal entra na 1ª Guerra, contra a Alemanha. Aquilino Ribeiro publica Via Sinuosa; Jaime Cortesão, O Infante de Sagres e Mário de Sá-Carneiro se suicida em Paris. Em 1917, Raul Brandão publica Húmus e o país é agora conduzido pelo ditador Sidônio Pais. Em 1918, de João Lúcio de Azevedo, A Evolução do Sebastianismo; de António Patrício, Pedro, o Cru; de Aquilino Ribeiro, Terras do Demo. Em 1919, Patrício publica D. Dinis e Isabel; Florbela Espanca, o seu Livro de Mágoas e neste ano ainda, ocorre uma insurreição monárquica no norte de Portugal, onde por breves instantes a monarquia é restaurada.

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O impacto da velocidade sobre a paisagem e a interferência daquela na produção da memória e das sensações vinculadas à escrita são os temas principais de Pascoaes, que aproveita para deixar, mais uma vez expressa, a sua crítica ao excesso de velocidade do mundo moderno, mundo cuja expressão artística, lamenta ele, é o “futurismo’’; mas, por outro lado, ambiguamente, como soi ser a voz pascoaesiana, atesta o autor seu fascínio que teve por automóveis e pela afamada ‘velocidade’ moderna. Se, por um lado, a “doida cavalgada”, numa “confusão turbilhonante”, elimina a saudável distância fantasiosa e a sua “visão vagarosa”, fundindo tudo num “todo caótico e disparatado, que é a fonte caricatural da moderna pintura futurista” (idem, ibidem), por outro lado, a entrega à velocidade “nos destrói a condição de criatura lenta, escravizada ao tempo e ao espaço, os dois limites quiméricos da Realidade, quiméricos e opressores, como todos os pesadelos” (idem, p. 22). Antes, portanto, de dar largada à vertigem descritiva do recente ‘fenômeno da velocidade’, exercício que, podemos notar, Pascoaes se entrega com uma grande dose de prazer, o autor brada ao “auto, o férreo deus da velocidade”: “Eu te abençoo, como abençoo a velha estrada do Douro, povoada de viandantes espectrais” (idem, p. 23) somando portanto, também à sensibilidade “frenética e nervosa” do encontro entre automóvel e paisagem, no corpo do sujeito, o “fantástico bailado” do invisível, dos fantasmas, reorganizados a partir da nova perspectiva, da nova visão e seu novo imaginário: a velocidade.

É importante ressaltar que os viajantes iniciam esta experiência na madrugada, alta noite, o que facilita ao sujeito que escreve a renovação do acordo noturno e espectral mantido com aquela paisagem, levando-o a, logo no início do texto, reconhecer ali, na comunhão da escuridão com uma clara estrela, o “espectro de Marânus”, e, é claro, “a Saudade” (idem, p. 25). Novamente o pacto com a visão no escuro, a visão do invisível, deste supranarrador-lírico que atravessa a obra pascoaesiana, como um todo, se reforça e refaz. E como vimos, o acender a visão do invisível é mover-se pelos corredores da memória, e por conseguinte, da infância. É assim que, numa experiência oposta ao do pastor (Marânus) que sozinho (multiplicado por seu desejo) caminha pelo Marão, Pascoaes subverte o esperado (esperava-se, talvez, um texto outro que falasse de uma experiência radicalmente outra: a paisagem atravessada pela máquina?) e nos mostra como o automóvel (metonímia da sensibilidade moderna) pode ser ‘usado’ de forma a acessar a distância, os fantasmas, a saudade. Partindo do ver no escuro, o sujeito acessa “a infância” e, sobre a

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paisagem, se sobrepõem então figuras, como a do “senhor padre Joaquim do Rio Bô” que fazem do ‘ver’ um ‘recordar’: “Recordo ainda a sua figura (...) estou a vê-lo na pequena capela de S. Roque”, diz ele (PASCOAES, 1994a, p. 30), abrindo no texto uma enumeração de lembranças projetadas pela qualidade sugestiva da visão: “É o que eu vejo, através do escuro, pelos olhos ao sol da minha lembrança. Estes lugares pertencem-me também. Foram-me doados pela saudade” (PASCOAES, 1994a, p. 30).

A passagem por marcos e lugares específicos daquela região (a capela do Rio Bô, por exemplo) abre não o ver no presente, mas o imaginar saudoso, sublinhando que a visão é um órgão, sobretudo, de acesso ao que é, para Pascoaes, o mais visível: o passado, o tempo, caixa de ressonâncias cujo acesso se dá pela perspectiva saudosa. O que se vê “é uma tristeza panorâmica a desdobrar-se em manchas lilases, (...) ausências de luz pairando em silêncios já nocturnos; enfim, a saudade que a nossa alma tem das coisas mortas, identificada com elas, criando a verdadeira paisagem” (idem, p. 82):

Mas quase todas as velhas coisas e pessoas que hoje evoco surgem-me indecisas, mortificadas de sombra, do fundo escuro do tempo, antiga tela poeirenta, onda as imagens mal transparecem, numa tinta desbotada e quebradiça. E todavia são as recordações mais saudosas, porque vivem no mais longe da perspectiva em que o meu o ser se alonga sobre o Passado.

São como nuvens que toldam esse horizonte, além do qual talvez exista Deus... A minha meditação interrompeu-a o parar do auto (...) (PASCOAES, 1994a, p. 32)

Se o sujeito incorpora o “auto”, revigorando o ritmo meditativo da visão saudosa, o “auto” também se dissocia e atua sobre o sujeito, impondo-lhe algumas quebras, reconhecendo ser outro corpo, o qual o sujeito dirige, mas que também atravessa o sujeito, dotando-o de alguma passividade e forçando-o a perceber a paisagem no andamento da máquina50. Esse corpo-a-corpo com a máquina resulta num audacioso

50 Vejamos, por exemplo, o trecho a seguir, em que o narrador incorpora a técnica da enumeração,

bastante comum em poéticas modernistas, como Whitman e Campos: “Agora, é um ribeiro que nos acompanha e desaparece; muito embora numa fuga para trás, repetindo a verde, a branca estrada; logo, um vermelhar fumegante de telhado; viandantes que nos amaldiçoam; um cão, saltando, que arremete; mala-posta que passa, num turbilhão de poeira, furado de gestos humanos; galinhas esvoaçando; aquela presa de água, entre salgueiros; um velho perfil de moinho; uma junta de bois aterrorizada; um cavaleiro abraçado ao pescoço duma égua que recua, aos corcovos, sobre a valeta; lavradores, curvados, no trabalho, férreas enxadas da pobreza reflectindo oiro, ao sol” (PASCOAES, 1994a, p. 39).

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texto, muitas vezes ignorado pela crítica ou tratado, simplesmente, como um relato de viagem. Porém, é fundamental lê-lo enquanto argumentação de defesa de sua própria poética, a saudade, por meio de um recurso textual – a escrita que se coloca em simultaneidade com o deslocamento do carro, na descrição rítmica das paisagens e sensações conforme o automóvel se relaciona com o sujeito que escreve – que é uma paixão e também um enfrentamento: Pascoaes confessou-se, sempre e simultaneamente, não só apaixonado por automóveis como totalmente avesso à estética futurista, em que a relação sujeito-máquina assume lugar central. A Beira é uma obra dupla: busca convencer-se (convencer-nos) da possibilidade da experiência da velocidade desvinculada de uma escrita futurista (como se, sim, houvesse lugar no entendimento moderno, para o encontro entre velocidade e saudade) e, ao mesmo tempo, reforçar os danos da velocidade quando tratados como suporte de uma visão maquinal, fria, mecânica do sujeito – coisas que ele leu no futurismo, e denunciou até o fim da vida, porque “o automóvel corre, indiferente à dor e à alegria. É uma divindade de ferro” (idem, p. 60).

Ao passar pelo ‘planalto de Montemuro’, por exemplo, o que ele vê é... Viriato, embora, mal chegasse a manhãzinha, a imagem se dissipasse, sucumbindo sob a “Realidade”:

O auto deslizava no encantamento da aurora, (...).

Todo o planalto era um cósmico e estranho cenário de almas, fugindo, fugindo, sem passar...(...)

No ilusionismo do crepúsculo auroreal e, mais ainda, na imaginação excitada pelo abalo nervoso da viagem, isto é, em mim e fora de mim, eu vi nitidamente Viriato (...). (...)

Mas a Visão desfez-se, quando o primeiro raio de sol correu, como flecha de oiro, sobre nós, do longínquo nascente (...). Assenhorou- se do mundo a Realidade. (...)

A paisagem indefinida pela sombra como que se nos torna inferior. O seu mistério é vago e familiar.

Mas a paisagem alumiada, contida nas suas linhas coloridas, adquire uma nitidez e densidade de presença que fica exterior aos nossos olhos. Mais afastada de nós que a outra, embora pareça mais perto, fere-nos o excesso de revelação que a escurece, afinal, porque ela é pesada, muda, inerte e fria, e insensivelmente se abandona à posse do nosso espírito ansioso. (PASCOAES, 1994a, pp. 36-37).

Paisagem, a carne do romance. Na cruz do sensível, entre a esfinge e o sol, o sujeito que viaja na máquina é capaz de tudo transformar, pela memória e imaginação

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atuantes no encontro sujeito-paisagem. A viagem, então, é limbo, sonho, ponte, interstício: é uma viagem pela linguagem, por sua permeabilidade sombria, por todo dizer que é memória, em mais um livro, ou uma página, do romance da saudade. Em alguns momentos da narrativa, o sujeito interrompe o relato de sua viagem e discorre acerca da arte, casando-os numa só escrita, num mesmo olhar disposto à paisagem. Em determinado instante, questiona sobre a relação entre arte e indústria, criticando os sonhos frios gerados, no homem, pela “moderna embriaguez industrial”:

No artista verdadeiro, a forma deriva da emoção; brota de dentro dela e com ela. Não é um vestuário imposto ao pensamento: é a pele viva! (...)

Os ruídos industriais da sua máquina, ligeiras rodas, com dentes de aço roendo, sôfregos, toros e toros de pinheiros, todo aquele meio, estrídulo e rodante, hipnotiza-o, anestesia-lhe a melindrosa sensibilidade, que é o esplendor e a chaga dos Artistas.

E assim se compreende que um homem, nascido para a Beleza, se apaixone pela indústria, essa deusa de metal. Se o gênio da Arte é uma doença, a indústria é o seu remédio.

(...)

E eu digo: vede o pessimismo do homem, cansado de sonhar e encontrando, afinal, um novo motivo de ilusão nas formas da Realidade mais tangível. Porque o homem é um ser condenado ao sonho por todo o tempo da sua vida.

A moderna embriaguez industrial resultou, por contraste, do velho romantismo. (...)

Se o romantismo foi o aspecto vaporoso e luarento da nossa Mágoa, a indústria é o seu perfil de ferro. Depois de Schiller – Bismarck. A febre de Beleza trouxe o delírio do Lucro. E tal delírio trouxe a Guerra, que é ainda a alma humana a procurar a Distração, num desespero (PASCOAES, 1994a, pp. 65-66)

O tom irônico denuncia o ‘pessimismo do homem’ que, condenado a sonhar, encontra, no mundo moderno, a ilusão disposta “nas formas da Realidade mais tangível”, ou seja, infeliz do sujeito que tem, como objeto de sonho, o “perfil de ferro” da indústria que, aponta Pascoaes (condenando duplamente o futurismo), “trouxe a Guerra”. Se o sonho é a expressão própria do humano – “o sonho é a persistência no Homem da sua origem mitológica”, escreve Pascoaes em O Bailado (1987a, p. 142) – a técnica (via máquina) estaria levando-o ao desespero, revés do sonho, o pesadelo.

Concluída a viagem, o narrador adormece e, no dia seguinte, ao acordar, submete a narrativa da viagem ao sonho que lhe foi posterior, somando ambas as experiências num único texto que, então, torna-se sonho escrito, e assim, assemelha-

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se à própria percepção da linguagem da vida, de um sonho movendo-se entre sonhos, onde tudo se transforma:

Perco-me no sonho vago e nubloso das almas viúvas do sol. Fantasmas louros levantam-se, redivivos, deste túmulo que sou. Túmulo? Cemitério onde jazem as raças, confundidas, lutando, cada uma, pelo predomínio da sua fisionomia. Luta obscura, mas fecunda, pois dela recebemos a expressão ativa e moral do nosso ser. O corpo exíguo do homem verga sob o peso da Humanidade. Somos cariátides suportando a vida e a morte.

E sofri certa humilhação, ao ver-me dominado por esse poviléu de fantasmas, no qual vivi, anônimo e sem presença, muitos séculos antes de ter nascido.

É possível que agrade ao leitor a descrição destes fenômenos misteriosos de Hereditariedade ou, melhor, da Fraternidade que liga os mortos aos vivos, de tal forma que é difícil distinguir em nós a carne – da sombra, o mesmo – dos outros. (PASCOAES, 1994a, p. 73)

Numa cadeia onírica, em que não se distingue bem o real da ilusão, somos esse bailado hereditário da ausência, em que nos tornamos irmãos pela fraternidade da sombra: o resultado de uma escura luminosidade entre o corpo e a paisagem, “obscura elegia em versos monótonos”. Se, tal qual a ‘confissão do artista’, de Baudelaire, “na grandeza do devaneio, o eu se perde depressa” (BAUDELAIRE, 2011, p. 37), a volúpia do perder-se logo se transforma em “mal-estar e um sofrimento positivo”, já que o artista, procurando extrair (que é conhecer, expressar) da natureza a forma bela, é sempre vencido: “O estudo do belo é um duelo em que o artista grita de pavor antes de ser vencido” (idem, ibidem). Sobra ao homem, segundo Pascoaes, “a consciência dum Acaso, desencantado”.

Somos a consciência dum Acaso, desencantado, que perdeu a divindade. E dessa consciência desiludida se vestem as horas aldeãs, pobres viúvas, tecendo o enredo do nosso existir – obscura elegia em versos monótonos...

Deus, que seria de ti se não fossem as aves e as flores? (PASCOAES, 1994a, p. 92)

Em 1918, Pascoaes volta à Espanha, a convite de Eugénio D’Ors, para realização, no Institut de Estudios Catalans, de uma série de conferências que, em seguida, seriam publicadas, em 1919, sob o título Os Poetas Lusíadas, obra em que Pascoaes ‘defende’ uma certa história da literatura portuguesa, através de sua vinculação com a ‘saudade’ cantada, na sequência do saudosismo. Com este trabalho,

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tenta uma vaga de professor no King’s College, em Londres, mas sua candidatura é recusada.

Em 1920 publica Elegia da solidão e a edição espanhola do livro Terra Proibida, primeira tradução da obra de Pascoaes para uma língua estrangeira. Em 1921, Pascoaes publica Cantos Indecisos e O Bailado, seu primeiro livro confessamente autobiográfico. Num texto potente, o primeiro de uma nova leva que virá (somando-se àquele Verbo Escuro de 1914), configura-se um incessante bailado noturno de figuras esmaecidas, fantasmagóricas, quase-personagens, com predominância daqueles que ocupam as páginas de Pascoaes desde o começo da sua obra, com especial atenção à Viscondessa de Tardinhade, bastante citada no Livro de Memórias. Trata-se de uma cena em prosa, que se repete ad infinitum: os passantes sobre a Ponte de São Gonçalo [figura 10], que depois se fará terreno mítico de sua Figura maior, o Pobre Tolo.

[figura 10]

Não se trata de uma narrativa, mas de uma composição rítmica daquele cenário, em que depois aportará o protagonista deste romance da saudade, o pobre tolo. Feito de uma espessura textual mista (prosa poética, fragmentos, aforismos, reflexões ensaísticas) estranha à plasticidade mais ingênua ou até clássica de alguns dos versos iniciais, O Bailado busca apresentar “a sombra do Tempo em vários vultos indecisos” (PASCOAES, 1987a, p. 65): “As horas passam na ponte: um cortejo de névoas, calcando aos pés a realidade” (idem, p. 119). No capítulo 4, intitulado “As Horas”, lemos:

144 E as horas mortas vão passando...

Passa a velha Emília, alta e magra, cheia de rugas; um ar escuro e sério envolve-lhe a fisionomia cavada em profundidades agoirentas... A bruxa de Endor, já múmia, transparece através dela...

Passa a Inês, baixinha e alegra. (...) Vai morta e vai a sorrir...

(A morte destrói tudo – tudo, menos o riso, porque o riso é a própria expressão da morte, a única expressão viva que ela tem...)

Passa a velha Lucrécia, derreada sob o peso dum cesto enorme...(...) Passa a Gravuna, que deu cabo dos dentes a roer calhaus... (...)

Lá vais, ó trágica hora morta! Ó caveira sinistra que perdeste os dentes e o riso!

O riso é sangue, brota dos dentes que mordem. Só os tigres sabem rir; os tigres e certos poetas... Ferocidade quer dizer – inspiração! Fome negra! Sede ardente!(...)

Passa a Eusébia, mais longe, indecisa... As pessoas de quem nos vamos esquecendo parece que nos voltam as costas na memória... Apenas vemos um vulto escuro mal destacado num fundo escuro... a nódoa dum retrato; o retrato de alguém que nos voltou as costas para sempre. (...)

E outras imagens vão passando... Criaturas que eu vi, há muitos anos, e me deixaram na lembrança um vago desenho indefinido... Por mais que eu deseje recordá-las, persistem na sua indecisão... (idem, p. 102)

Alfredo Margarido é quem assina o prefácio da edição de 1987, com um texto adequadamente intitulado “Bailar é construir o mistério e a mudança”. Neste texto, Margarido começa por situar O Bailado no quadro mais geral dos anos 20 em Portugal, numa atmosfera “francamente necrofílica (...) provocada pela imensa lista de mortos da 1ª Guerra Mundial” (in PASCOAES, 1987a, p. VII) que se somou a uma crise de pneumonia que teria matado mais de 100 mil pessoas, o correspondente a 10% da população portuguesa da época. É considerando esse ambiente que Margarido entende a sua ‘dinâmica de texto’, com um ‘sentimento de imediato’ a que Pascoaes tivera de responder:

Face a esta subversão da sociedade portuguesa, Teixeira de Pascoaes sente, de maneira mais incômoda do que habitualmente, a terrível e constante presença da morte, e lança-se na elaboração de um texto que lhe permita proceder senão a um balanço, em todo caso a um inventário dos temas, das situações e das pessoas que mais profundamente tinham marcado a sua existência. (...) Trata-se, nesta escrita de Pascoaes, não de apontar as eventuais autonomias dos espaços, mas de pôr em evidência os elementos que os unem, permitindo a organização de uma rede, naturalmente polissêmica, de sentidos. Os homens hesitam entre a rigidez dos imobilizados, e a necessidade da mudança: o bailado dança, e por isso inscreve-se no

145 espaço da mudança, elemento fundamental da metamorfose (idem, p. VIII)

Dividido em seis capítulos (seus títulos são: 1- Prólogo; 2- Sombra e Pedra; 3- As Pegadas; 4- As Horas; 5- A Ponte e; por fim, 6- Epílogo), compostos por fragmentos numerados em algarismos romanos, este é, sem dúvidas, dos textos mais interessantes da obra de Pascoaes. No prólogo, o autor, no fragmento XXVI, diz, desenhando a sua arte poética, vinculando à experiência autobiográfica as

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