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Nicolas Golgol (1809-1852): entre o desespero e a divina liturgia

1 3 A mística na Rússia conciliar: eslavófilos e pensadores religiosos

1.3.2 Nicolas Golgol (1809-1852): entre o desespero e a divina liturgia

Apesar de ser um dos grandes nomes da literatura russa, Golgol viveu grande parte de sua vida fora de sua pátria natal. Ele sofreu diversas influências como do romantismo alemão e do cristianismo social que lhe fora apresentado pelo polonês Adam Mickiewicz e pelo italiano Silvio Pellico e durante sua estada em Paris pelo círculo de Lacordaire. Golgol também estudou os escritos dos pais da igreja que falavam a respeito da espiritualidade e destes recolheu os conceitos de ascese pessoal e, de forma mais contundente, a ação ministerial dos leigos.

44 Cf. CLÉMENT, Olivier. 1985, p. 156,157. 45 AMARAL, Miguel de Salis. 2003, passim.

40 Segundo Evdokimov, uma das características da religiosidade ortodoxa russa que mais impressionou Golgol era a caridade fraternal. Perdemos um irmão na

História, exclamou; então voltemos ao mundo e teremos um lugar no amor do

irmão46. O dinamismo apocalíptico de Golgol também o fez conhecido na literatura

como o introdutor de uma oposição à tranquilidade patriarcal inaugurando a dimensão escatológica do pensamento religioso russo.

Outra característica do pensamento de Golgol era seu realismo paradoxal. Ele descreveu o irreal, pela primeira vez, de forma mais incisiva, diante da fórmula de Dostoievski: a verdade é improvável; e da máxima de Kierkegaard: aquele que

não renuncia a probabilidade nunca entra numa relação com Deus. Aqui, nos diz

Evdokimov, Golgol leva o tema da dúvida ao seu limite, ou ainda, contrastando, ele descreve com um realismo tão banal e de tal trivialidade que chega a sensação vertiginosa do surrealismo. Com isso, o autor quer levar seus leitores a pensar além das categorias insólitas, nas quais não se sabe onde a realidade está posta, ou seja, onde a pessoa sente-se jogada ao acaso. Neste momento, Golgol, e seu realismo, faz surgir de forma brusca outra realidade que é tão real para si, tanto quanto para o outro. Golgol insiste em dizer-nos que em um mundo sem Deus, o ser humano encontra-se ante uma descoberta terrível, num deserto glacial onde um de seus personagens (o major Kovalev, de seu conto O Nariz) leva uma existência autônoma e independente, deitado ao fundo de sua carruagem, sem, no entanto, reconhecer seu próprio rosto47. Na obra O Nariz, Golgol nos conta a respeito da festa da Anunciação (25 de março):

Este dia é de alegria geral na Rússia. Ninguém trabalha, todos vão à igreja, e, no caminho, pessoas compram gaiolas com aves para depois as libertarem demonstrando assim que a alegria é pessoal e cósmica. O nariz segue a tradição e se coloca a caminho da Catedral, sua carruagem era como um carro triunfal. Ele passa como alguém que tem todo o poder sobre o mundo, todavia, há ainda o lugar santo do Templo. A Catedral está incrivelmente vazia. Deus encontra-se desalojado até mesmo neste lugar por seu Opositor. Outro, um Impostor, o Nariz [...] que

46 EVDOKIMOV, Paul. 2011, p. 74. 47 Ibid., p. 75.

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entra para dominar e tomar posse do lugar. Esta é a chave para a história. Perto da entrada, com vestidos misteriosos, está um grupo de mulheres idosas, rosto coberto com panos com aberturas apenas para os olhos. Como no Nariz, está a ausência de visão, e a visão não é justamente o que reflete nele a imagem de Deus? Quem são as mulheres idosas que olham através dos buracos nos panos? É o olhar do Diabo colocado sobre a entrada triunfal de seu filho amado, o Anticristo48.

No centro da Catedral vazia encontra-se o Nariz, que de longe esconde o rosto, ou a falta dele. No conto de Golgol, o limiar do templo cruzado pelo anticristo marca o instante onde a História cruza com o limiar do apocalipse. A festa da anunciação é uma paródia, pois anuncia o impostor, sua própria “boa nova”. Golgol, através o conto nos mostra o objetivo do anticristo: criar seres anônimos, sem visão e sem imagem, seres que encontraram o espaço e transformaram o mundo dos vivos em um mundo das almas mortas. O escritor russo Michel Boulgakov, discípulo de Golgol, em um de seus contos chamado O

Mestre e a Margarida, recoloca a discussão levantada por Golgol em seus

escritos: de alguém profundamente chocado pelo ceticismo do povo soviético não tanto à pessoa de Deus quanto à sua própria existência. Golgol descreve o mundo como uma caverna onde todos os viventes encontram-se asfixiados. Neste sentido, sua crítica ao ateísmo não é construída pela existência de Deus, mas, pela do diabo. E a solução para o dilema humano, segundo Golgol, poderia ser encontrada na igreja dos acontecimentos últimos – na comunidade apocalíptica49.

Dos seus escritos, talvez o mais místico sejam As Meditações sobre a Divina

Liturgia. Nele, Golgol apresenta-nos o que ele observa como uma possível

solução para um mundo desencarnado, afligido por uma desordem descomunal, vivendo nas trevas do paganismo e na ignorância do conhecimento de Deus – a invocação litúrgica do Criador. O ser humano, em seu estado de aflição, invoca seu autor. O ser clama, mesmo que sua voz não se faça ouvir, mesmo que sua existência não tenha significado, os homens pressentem que se o próprio Criador

48 Ibid., loc. cit. 49 Ibid., p. 76,77.

42 lhes for revelado, ele restaurará novamente a humanidade à sua imagem e semelhança50. Este é o acontecimento litúrgico. Embora a liturgia da igreja seja conduzida por um homem, este é conduzido por Deus através do Espírito Santo. Por isso, fora da igreja onde a pessoa participa da liturgia, do altar da caridade, haverá uma ação transformadora ininterrupta não apenas do indivíduo, mas de tudo que ele toca, pois, ele o faz através do amor. Isto é, o alcance da graça litúrgica tem tal poder transformador que faz com que a vida se mova harmoniosamente no Universo51.