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São Seraphim de Sarov (1759-1833)

1 2 A mística na Rússia conciliar: paternidade espiritual

1.2.1 São Seraphim de Sarov (1759-1833)

Certamente, um lugar privilegiado entre os escritos místicos produzidos na Rússia no período conciliar, é dado por Evdokimov e por outros pensadores da ortodoxia a São Serafim de Sarov. Sua importância e influência não estão restritas à recuperação das fontes Patrísticas numa renovada síntese, mas, sobretudo para nosso estudo, na sua obra: A Aquisição do Espírito Santo. Esta narra diálogos durante o inverno de 1831 no interior de uma floresta, entre o staretz e um de seus discípulos mais próximos, Motovilov. Serafim de Sarov explica ao seu aprendiz o objetivo por excelência da vida cristã: a aquisição do Espírito Santo e de seus dons.

No diálogo, Motovilov pede ao staretz que lhe explique como chegar ao estado de graça (deificação). Serafim lhe pediu que observasse, e, narra Motovilov: enquanto olhava fui tomado pelo medo. Serafim lhe aparecera vestido de luz e a pedido do santo, seu discípulo constatou que experimentara uma alegria inefável, uma calma e uma paz interior que substituíra o medo. E, segundo o relato, a alma de Motovilov fora apaziguada, mas os fenômenos exteriores penetraram seus sentidos: a visão de uma luz ofuscante, uma sensação de calor e o cheiro de perfume31. Evdokimov assevera que o relato não foi uma experiência extática, mas a antecipação da transfiguração do ser inteiro do homem pelo Espírito Santo. Segundo ele:

A participação dos sentidos é o elemento mais impressionante. A graça comprovada, vivida, sentida como doçura, paz, alegria e luz antecipa o estado da era futura. Não é a supressão dos sentidos

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degenerados pela queda, nem sua substituição por um novo órgão receptivo, mas sua transfiguração, sua elevação ao estado normativo32.

Em sua obra, Serafim de Sarov define o objetivo da vida cristã como aquisição do Espírito Santo. Numa primeira aproximação, esta definição que parece muito simples, é a síntese da espiritualidade ortodoxa russa. Vladimir Lossky afirma isto ao lembrar-nos que, para o santo, as boas obras (jejuns, orações, vigílias e outras práticas da caridade) não são os alvos da vida espiritual, mas, meios indispensáveis para se chegar a este objetivo. Meios que, realizados em nome de Cristo, fazem com que o ser humano produza os frutos do Espírito Santo. De acordo com São Serafim, portanto, todas as coisas que fazemos, mesmo sendo boas, que não sejam em nome de Cristo, não trazem a recompensa nem nesta vida, nem na eternidade. Não existe um bem autônomo da graça divina; toda boa obra só recebe seu sentido quando canalizada para a união com Deus. As virtudes não são o fim, mais o meio ou sobretudo sintomas,

manifestações exteriores da vida cristã, o propósito final é a aquisição da graça33.

A descrição da comunhão de natureza criada do ser humano com as energias incriadas do Espírito Santo, constitui a theósis. Evdokimov, ao narrar este acontecimento, chama a deificação de mistério do último dia; inaugurado desde já nos sacramentos e iniciado na experiência viva dos santos da igreja. De acordo com a tradição russa, São Serafim teria contemplado Cristo cercado por anjos durante a sua consagração diaconal. A experiência mística de Serafim o leva a repartir o pão após a visitação dos seres celestes. Um mundo e o outro, para o santo, estão extremamente próximos e se colocam em uma grande intimidade. Ele viveu na terra como se estivera nos céus – glorificado, deificado.

A passagem que transcreveremos a seguir foi retirada de um dos diálogos de São Serafim com um de seus aprendizes em sua obra Revelações por Vladimir Lossky. Apesar de ser uma longa citação, ela é fundamental para

32 EVDOKIMOV, Paul. 1988, p. 75, 76. 33 LOSSKY, Vladimir. 2009, p. 194.

34 compreendermos o pensamento místico russo do início do século XIX e que consiste na consciência da união com Deus – theósis:

Eu não compreendo, ainda, como posso ter certeza de estar no Espírito de Deus. Como poderia eu reconhecer em mim mesmo, de um modo cabal, sua manifestação?

Eu já lhe disse, falou o Padre Serafim, é muito simples. Eu tenho falado longamente do estado daqueles que se encontram no Espírito de Deus; eu lhe expliquei também como reconhecer sua presença em nós... Que lhe falta ainda, meu amigo?

É preciso que eu compreenda melhor as coisas que me tens dito. Meu amigo, ambos, neste momento, estamos no Espírito de Deus... Porque você não quer me olhar?

Eu não posso olhar, meu Pai, respondi, teus olhos projetam relâmpagos; tua visão tornou-se mais deslumbrante que o sol e eu feri meus olhos para te ver.

Não tema, disse ele, agora, você se tornará claro como eu. Você também está na presença da plenitude do Espírito de Deus; de outa maneira, você não poderia me ver.

[...] E o Padre Serafim continuou:

Quando o Espírito de Deus desce sobre o homem e o envolve na plenitude de sua presença, então a alma transborda de uma alegria indizível, pois o Espírito Santo enche de alegria todas as coisas que Ele toca... Se as primícias da alegria futura já enchem nossas almas de tal doçura, de tal regozijo, que diremos nós da alegria que espera no Reino celeste todos aqueles que choraram aqui, sobre a terra? Você também, meu amigo, você tem assaz chorado durante o curso da vida terrena, mas verá a alegria que o Senhor lhe enviará para consolar desde agora. No presente, é preciso trabalhar, esforçar-se continuadamente, adquirir forças cada vez maiores para alcançar à medida perfeita da estatura de

Cristo [...] Então, esta alegria que sentimos neste momento,

parcial e breve, aparecerá em toda plenitude, enchendo nosso ser de delícias inefáveis que ninguém poderá nos tirar34.

Citamos ainda que à época conciliar na Rússia tzarista, encontramos, ao lado de S. Serafim de Sarov, o monge do monte Athos Paissy Vélitchkovsky (1722-1794) que, de acordo com Evdokimov, foi um importante restaurador e

35 propagador do palamismo na Rússia e Romênia e, especialmente na Moldávia onde passou grande parte de sua vida, deu início ao movimento neo-hesicasta e ao monaquismo filocálico. Ele influenciou o surgimento dos primeiros startzy que, educados da tradição hesicasta, ensinaram a oração de Jesus35. A oração de Jesus foi associada no mundo da ortodoxia russa à oração do coração: Senhor

Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador. Recentemente ela

tornou-se conhecida do ocidente através das inúmeras traduções de um escrito anônimo no séc. XIX O peregrino russo que propõe como meta da vida espiritual uma ascese através da oração conectada ao exercício físico – um controle rígido da respiração que leve a pulsação do indivíduo à harmonizar-se com o ritmo da oração. Para o monge, a purificação do coração tinha um espaço privilegiado.

1. 3 A mística na Rússia conciliar: eslavófilos e pensadores