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Noção crítica da alfabetização

No documento Sete licoes sobre educacao de adultos (páginas 69-72)

A simbolização do pensamento como atividade natural do homem. Já tivemos ocasião de assinalar os caracteres distintos de um método crítico de alfabetização de adultos. O ponto que mais sobressai é aquele que não se limita a considerar que se trata de um mero processo de transmissão de uma técnica particular (a de ler e escrever), mas sim considera que se trata de produzir uma mudança na consciência do educando, mudança na qual o conhecimento da leitura é apenas um dos elementos.

Por isso, o método crítico visa a constituir no educando uma consciência crítica de si e de sua realidade, e admite que, como elemento, como parte dessa consciência, surge espontaneamente a compreensão da necessidade de alcançar um plano mais elevado do saber, o plano letrado.

Dessa forma, o sujeito da alfabetização é o próprio analfabeto. Ao contrário de ser objeto da ação do educador, é o próprio sujeito de sua transformação pessoal.

A contribuição do educador consiste em possuir uma técnica adequada para proporcionar os elementos da linguagem escrita, mas de forma tal, que estes representem a realidade do alfabetizando e sejam reconhecidos por ele como tais.

O primeiro passo, para a constituição da autoconsciência crítica do trabalhador, da qual decorre necessariamente a aquisição da linguagem escrita, está em fazê-lo tornar-se observador consciente de sua realidade; destacar-se dela para refletir sobre ela, deixando de ser apenas participante inconsciente dela (e por isso incapaz de discuti-la). Tecnicamente, esse resultado é alcançado mediante a apresentação ao educando adulto de imagens de seu próprio meio de vida, de seus costumes, suas crenças, práticas sociais, atitudes de seu grupo, etc. Com isso, o alfabetizando se torna espectador e pode discutir sua realidade, o que significa abrir o caminho para o começo da reflexão crítica, do surgimento de sua autoconsciência.

A alfabetização decorre como conseqüência imediata da visão da realidade, associando-se a imagem da palavra à imagem de uma situação concreta. Posteriormente, a decomposição da palavra em seus elementos fonéticos e a recomposição destes em outras palavras se faz sem nenhuma

dificuldade e é um produto da criação intelectual do próprio educando (e não uma sugestão externa que lhe é imposta pelo professor).

O fundamento humanista e dialético do método crítico está em que a simbolização do pensamento é uma atividade natural do homem. Não precisa aprendê-la (porque jamais o pensamento existe recluso na cabeça do indivíduo adulto normal), apenas necessita convencionar socialmente os símbolos que convém adotar. Nas sociedades letradas estes símbolos já são estabelecidos por convenção tradicional, de maneira que o alfabetizando os encontra prontos e só tem que tomar conhecimento deles. Em todas as fases de seu desenvolvimento cultural o homem tem simbolizado seu pensamento, reproduzindo-o em imagens a princípio figurativas das próprias coisas (pictogramas), depois das idéias das coisas (ideogramas) e, por fim, em fase mais adiantada, descobre a utilidade de representar graficamente a expressão oral (o nome) das coisas (fonogramas).

Nessa terceira etapa é que se chega à fase alfabética (que também sofreu uma longa evolução).

As sociedades primitivas, como todas as demais, possuem seu sistema de simbolização do pensamento, em função da necessidade de conservar e transmitir os conhecimentos sociais no tempo e no espaço de homem a homem, sem confiar unicamente na faculdade imprecisa e insegura da memória. O mesmo se verifica com a realização de operações numéricas simples (por exemplo: os "quipus" das populações incaicas). Na medida em que a sociedade evolui, cresce a quantidade de conhecimentos que devem ser transmitidos. Isto vai obrigar a que se torne cada vez maior o volume de símbolos particulares a serem conhecidos e memorizados. A partir de um certo número este processo se torna impraticável e surgem então outras formas de representação, até chegar à silábica e à alfabética. O importante é compreender que o analfabeto adulto atual, ao qual nos dirigimos, vive numa sociedade letrada e por isso suas exigências culturais implícitas são as da linguagem alfabética, que é a de seu meio. Basta, portanto, retirá-lo das condições inferiores de existência em que vive e fazê-lo compreender sua realidade para que imediatamente incorpore o saber letrado como elemento natural da consciência crítica que começa a produzir para si.

Apesar de ser ajudado pelo professor, este processo é endógeno, é um fenômeno de conversão da consciência pela apropriação de uma realidade que é a do homem, mas que lhe permanecia oculta ou pela qual não se interessava. O papel do professor é apenas incentivador, estimulador de uma reação que se passa toda ela no íntimo da consciência do alfabetizando (aspecto socrático do método).

O professor tem apenas a função de comunicar ao aluno adulto, quais são os símbolos de uso corrente na sociedade, para que o aluno se utilize deles a fim de satisfazer as novas exigências de sua consciência recém-criada (a não ser assim, se cada um inventasse o sistema de símbolos que precisa possuir, haveria confusão geral e a comunicação social se tornaria impossível).

Sua particular importância nas fases superiores, letradas e da cultura. As fases superiores da cultura se caracterizam pelo saber letrado. Este não é causa da ciência mais rica e sim efeito dela (ainda que como instrumento de facilidade de comunicação reverte sobre a ciência existente como fator estimulante). É porque o saber socialmente acumulado se tornou tão grande que não pode ser mais conservado pela memória individual, que surge a necessidade de conservá-lo em forma material (pintura, caracteres cuneiformes, hieróglifos, alfabetos, etc.), a fim de serem transmitidos de um indivíduo a outro. Com isso a sociedade alcança um grau superior de sua evolução e se constitui como sociedade letrada.

A escrita como resposta social específica em face da necessidade de conservação de determinadas formas do saber para a comunidade. O aprendizado da escrita, como resposta social específica em face da necessidade de conservar determinadas formas de saber útil para a comunidade, não se distingue existencialmente do aprendizado da leitura. Uma e outra atividade são aspectos da mesma função intelectual de simbolização, que é própria do homem. O aprendizado da escrita se faz pelo método crítico, com a mesma facilidade que o da leitura e simultaneamente, pois se trata do verso e reverso da mesma atividade humana. Escreve-se porque se lê e se lê porque se escreve, e uma e outra coisa se faz porque se pensa. Neste sentido, o trabalho do educador consiste apenas em introduzir o educando no conhecimento do sistema vigente de convenções gráficas usado pela sociedade e relativo ao idioma habitual.

A transmissão do saber pelas vias não letradas (oral, pictográfica, etc.). A transmissão do saber pelas vias não letradas supõe o prévio conhecimento da linguagem falada. Para conhecê-lo basta ao indivíduo adulto ser normal.

A linguagem falada não é aprendida na escola e sim no desenvolvimento social do ser humano. Ela é sem dúvida o fundamento de todo o conhecimento e por isso pode-se dizer que o analfabetismo a rigor não existe, pois o homem (normal) é sempre capaz de expressar em sons falados seu pensamento. O que necessita é apenas progredir até o ponto em que se torne para ele uma necessidade também expressar por meios gráficos seu pensamento, mas esta necessidade deriva sempre da primeira. Assim, pode-se dizer que o homem lê e escreve porque fala. Ao falar já está usando o sistema social básico de comunicação. Só lhe falta passar da palavra falada à palavra escrita, o que decorre sempre de suas necessidades materiais.

O adulto se torna analfabeto porque as condições materiais de sua existência lhe permitem sobreviver dessa forma com um mínimo de conhecimentos, o mínimo aprendido pela aprendizagem oral, que se identifica com a própria convivência social. Daí que não há para ele a necessidade de escola.

Assim sendo, não se abre para o adulto analfabeto o campo da cultura letrada, e por isso sua atividade cultural (a qual nunca está ausente, do contrário não seria um ser adulto normalmente desenvolvido) se expande sob a forma de literatura oral (poesia e música popular, os "cantadores de feira", narrativas e recitativos, etc.).

No documento Sete licoes sobre educacao de adultos (páginas 69-72)