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Há muito que os educadores desejam desenvolver uma educação de qualidade, no sentido de possuir uma série de atributos que tornam o ensino bom, conforme o momento sócio-histórico. Na década de 1990, verificamos um esforço para que o ensino fosse orientado pelo desenvolvimento de competências, como podemos observar nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental e Médio, que orientam as práticas desenvolvidas nas escolas públicas do país.

Conforme observa Rios (2002), a esfera produtiva requer profissionais qualificados, com alto nível de competitividade, que respondam aos critérios de racionalidade econômica e de mercado, o que leva a que o termo qualificação seja ligado ao (ou substituído pelo) de competência. Nesse sentido, a substituição de um termo por outro, guarda a marca da ideologia neoliberal, que no espaço escolar demanda competências que devem estar presentes na formação do educando.

Segundo a autora, alguns teóricos da área procuram conferir à noção de competência presente na formação do trabalhador uma maior flexibilidade, rompendo com os modelos fechados e estanques de disciplinas e saberes. Entretanto, nas propostas oficiais para a educação, corre-se o risco dessa noção constituir-se apenas em uma nova moda, sem que as condições educacionais concretas sejam alteradas.

A questão da competência tem sido amplamente discutida no âmbito educacional, como um eixo orientador da formação profissional, e autores como Perrenoud (1999) defendem que essa questão deve ser construída desde a escola. Não nos deteremos no desenvolvimento de competências em sala de aula, mas como um conceito pertinente ao processo de formação do professor no dia-a-dia de seu trabalho.

Pretendemos, por conseguinte, realizar uma reflexão acerca da noção de competência verificando as suas dimensões e características, como pode ser desenvolvida, e a possibilidade de introduzir mudanças no contexto escolar.

Na concepção de Perrenoud (1999, p. 7, grifo do autor), essa noção é definida como “uma

capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiada em conhecimentos, mas sem limitar-se a eles”. Rios (2002, p. 88, grifo da autora) compreende que a “competência

guarda o sentido de saber fazer bem o dever”.

Para descrever uma competência, Perrenoud (2000, p. 15) considera necessário utilizar, na maioria das vezes, três elementos complementares:

. os tipos de situações das quais dá um certo domínio;

. os recursos que mobiliza, os conhecimentos teóricos ou metodológicos, as atitudes, o savoir-faire e as competências mais específicas, os esquemas motores, os esquemas de percepção, de avaliação, de antecipação e de decisão;

. a natureza dos esquemas de pensamento que permitem a solicitação, a mobilização e a orquestração dos recursos pertinentes em situação complexa e em tempo real.

Desse modo, o profissional pode demonstrar competência em sua prática ao tentar solucionar de modo eficaz um determinado problema suscitado pelo cotidiano. Para isso torna-se necessário mobilizar conhecimentos simples ou complexos, como suporte para o processo de reflexão que possibilitará a resolução do problema.

Para Perrenoud (1999), só existe competência quando o processo reflexivo se torna um esquema de ação constituído, apoiando-se na concepção de esquema desenvolvido por Piaget. Tais esquemas, adquiridos na prática, podendo apoiar-se na teoria e permitir acomodações perante situações diversas, mobilizam conhecimentos e métodos para resolver uma dada questão,. Contudo, a competência não se reduz a um esquema, embora envolva diversos deles, que gradativamente constituem-se em um esquema complexo e automatizado. A assimilação pode acontecer instantaneamente ou pode requerer tempo e esforço para apreender a nova realidade e interligar o conhecido ao desconhecido.

Segundo o autor, a competência também não se confunde com hábitos ou habilidades, embora estes façam parte dela, permitindo enfrentar problemas com pequenas variações, sem que a reflexão seja necessária. Quando a reflexão extrapola esse nível, torna-se necessário que o sujeito procure alternativas de soluções, que recorra à teoria e à reflexão para resolvê-la. Esse processo passa pela implementação de esquemas de pensamento, avaliação e julgamento “que permitem a abstração, o relacionamento, a comparação, o raciocínio, a conceituação; em outras palavras, os esquemas que constituem a lógica natural ou a inteligência do sujeito” (PERRENOUD, 1999, p. 26). A partir do momento em que esses esquemas são assimilados pelo

sujeito e em situações semelhantes utilizados sem a necessidade de reflexão, esse autor afirma que não existe mais uma competência, mas um hábito ou habilidade.

Na visão de Perrenoud (1999, p. 9), um especialista competente diante de uma situação inédita e complexa, precisa agir com rapidez e eficiência, tendo por base,

além da inteligência operária, em esquemas heurísticos ou analógicos próprios de seu campo, em processos intuitivos, procedimentos de identificação e resolução de um certo tipo de problemas, que aceleram a mobilização dos conhecimentos pertinentes e subentendem a procura e a elaboração de estratégias de ação apropriadas. Acrescentemos que a perícia supõe também atitudes e posturas mentais, curiosidade, paixão, busca de significado, desejo de tecer laços, relação com o tempo, maneira de unir intuição e razão, cautela e audácia, que nascem tanto da formação como da experiência.

Para que o sujeito possa assim proceder, é preciso que seja preparado para compreender, analisar e refletir acerca do problema apresentado, o que está para além da simples imitação. Além do mais, torna-se necessário que a sua formação tenha como base um sólido aporte teórico, que auxilie na avaliação tanto da situação como um todo, quanto dos recursos que podem ser utilizados e da previsão dos possíveis resultados. Contudo, por mais que tais situações possam colaborar para que os profissionais resolvam as situações que a eles se apresentam, só é possível demonstrar competência em tempo real, em confronto com as variáveis provenientes da realidade.

Perrenoud (1999, p. 30, grifos do autor) mostra que só é possível processar situações novas tendo ao dispor “não só recursos específicos (procedimentos, esquemas, hipóteses, modelos, conceitos, informações, conhecimentos e métodos), mas também maneiras específicas e

treinadas de mobilizá-los e colocá-los em sinergia”. Percebemos, assim, a importância que o

auxílio teórico possui na formação de competências.

Um profissional competente para solucionar um problema, em um determinado contexto, segundo Ramalho e Nuñes (2002), precisa articular saberes teóricos, técnicos, operacionais, procedimentais e sociais, com um repertório de condutas e esquemas de ação, que possibilitem a execução de determinada atividade. O sujeito os reconstrói, à medida que se tornam insuficientes para os fins almejados. A competência, então, é construída paulatinamente e desenvolve-se por toda a vida.

Para os autores, a competência é mostrada na prática profissional, em situações de desafio à inteligência humana, por meio da mobilização de saberes práticos e teóricos, dos recursos de que se dispõe, procurando-se agir em tempo real para responder às situações de urgência. O

profissional competente sabe argumentar sobre a sua ação, justificar suas escolhas e decisões, é capaz de interpretar o problema apresentado e de agir consciente sobre o que faz e por que age de determinada forma.

A competência, por conseguinte, está diretamente ligada à práxis social (PERRENOUD, 1999), o que lhe confere sentido político, embora, possua um sentido mais amplo, de modo que para Rios (2001, p. 94), abrange uma dimensão técnica, uma política, uma estética e outra ética, sendo esta última a responsável por permitir o diálogo entre as duas primeiras. A dimensão técnica, por sua vez, presta suporte à ação profissional, diz respeito “à realização de uma ação, a uma certa forma de fazer algo”, além de corresponder à construção e à reconstrução dos conteúdos com os alunos. Essa dimensão não pode ser desvinculada das demais dimensões para que não se reduza a uma visão tecnicista, resultando na super valorização da técnica.

Para a autora, dentro dessa dimensão, existe um espaço de criação sem o qual a técnica estaria reduzida à simples repetição, à ausência de reflexão. A dimensão estética é que lhe confere sensibilidade e criatividade. “A sensibilidade está relacionada com o potencial criador e com a afetividade do indivíduo, que se desenvolve num contexto cultural determinado” (RIOS, 2002, p. 97). Ratificamos, pois, que a dimensão estética é uma ordenação das sensações e está presente na atividade humana, assim como a criatividade, que está diretamente ligada a essa dimensão. Tratar da dimensão estética é trazer à discussão a subjetividade, que se cria a partir da práxis, na qual se forma tanto o indivíduo quanto o profissional, visto que a sensibilidade é constituinte da condição humana.

Quanto às dimensões ética e política, Rios (2002) compreende que estão interligadas, pois a primeira trata de “algo que se exercita como se deve ser” (RIOS, 2002, p.106). Esta é um elemento mediador porque é responsável por indagar criticamente sobre o “fundamento e o sentido da definição dos conteúdos, dos métodos, dos objetivos, tendo como referência a afirmação dos direitos, do bem comum”. É também uma reflexão crítica sobre os valores individuais e sociais para a construção desse bem comum da coletividade, que é uma determinação histórica.

Por sua vez, a dimensão política é o lugar onde o homem confere sentido histórico à sua condição humana, onde se constrói, dá sentido e finalidade às suas ações, compromete-se no alcance de seus objetivos, “diz respeito à participação na construção coletiva da sociedade e ao exercício de direitos e deveres” (RIOS, 2002, p. 108). Todas essas dimensões estão interligadas,

articuladas de forma dialética, fecundando-se mutuamente. Porém, a ética é o fundamento das demais, porque somente com este embasamento as demais dimensões poderão ganhar significado pleno.

Ao refletir sobre a competência técnica e o compromisso político, Saviani (1987) considera que a primeira é mediação para o segundo, pois é por intermédio da competência técnica, mas não somente por meio desta, que o compromisso político pode ser alcançado. A seu ver, essa competência significa “o domínio das formas adequadas de agir; é, pois, o saber-fazer” (SAVIANI, 1987, p. 121). O compromisso político não dispensa tal competência, sob pena de ser neutralizado e reduzir-se à racionalidade estratégica, ao gosto da classe dominante, pois “compromisso sem competência é descompromisso” (SAVIANI, 1987, p. 134).

A educação tem uma função política, segundo o autor, que se cumpre pela competência técnica. Assim, a prática profissional do professor tem um sentido político que pode ser desvelado quando essa prática é analisada.

Compreendemos, por conseguinte, que para o professor, ou qualquer outro profissional, a preparação para o mundo do trabalho implica o desenvolvimento da cidadania, a preparação para a vida social como um todo, a articulação de diferentes saberes, atitudes e valores na ação do trabalho, e saber agir em diferentes situações com autonomia. Sendo assim, a sua educação deve ocorrer a partir da construção subjetiva do homem e da apropriação das conquistas culturais, sociais e históricas da humanidade.

Para que o profissional seja competente, é preciso que domine a técnica, que a sua ação tenha uma direção política pautada em valores comuns à coletividade. Para isso, é preciso que domine a racionalidade instrumental, embora a sua formação não possa reduzir-se a essa racionalidade, sendo necessário transcendê-la por intermédio da racionalidade comunicativa. É esta que poderá dar sentido político às ações, que tornará claros os valores que permeiam as práticas existentes e as almejadas.

Essa formação parte da realidade em que atuam os sujeitos, demandando profundos conhecimentos e a organização do processo educacional, com base na interação entre os sujeitos e na ação dialógica. Uma educação que contemple estes requisitos parte do conhecimento adquirido na prática, iluminado pela teoria, tendo como fundamento a interação comunicativa, a cooperação intersubjetiva, a socialização das dificuldades e a busca coletiva de soluções.

Nessa perspectiva, a elaboração do projeto político-pedagógico da escola vem a ser um desafio que pode levar os sujeitos envolvidos a desenvolverem competências que provavelmente se refletirão na sua formação, nas suas práticas cotidianas e políticas.

3.4 A competência na construção do projeto político-

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