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Noção de pessoa e de corporalidade entre os Guaran

PARTE I CIRCULAÇÃO DE CRIANÇAS GUARANI E KAIOWÁ: ENTRE PRÁTICAS TRADICIONAIS E PARADIGMAS POLÍTICOS

2. TRANSFORMAÇÃO NOS MODOS DE CIRCULAÇÃO E CUIDADO COM AS CRIANÇAS INDÍGENAS GUARANI E KAIOWÁ NO PARADIGMA

2.1. Noção de pessoa e de corporalidade entre os Guaran

Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro (1979) provocaram uma guinada nos debates da etnologia brasileira ao defenderem que as teorias nativas sobre a corporalidade e a noção de pessoa são fundamentais para se pensar a estrutura social dos grupos sul-americanos. As teorias de concepção, teoria de doenças, papel dos fluidos corporais no simbolismo geral da sociedade, proibições alimentares, ornamentação corporal são idiomas nativos da corporalidade, orientados por uma preocupação mais ampla sobre a definição e a construção da pessoa pela sociedade. Nesta perspectiva, em meio às muitas diferenças entre os grupos, o idioma da corporalidade e as formas de construção do corpo informariam recorrências no pensamento social das sociedades indígenas, delineando a fisionomia dessa região etnográfica. Entre os Guarani, esta linha de investigação e análise vem sendo privilegiada para a compreensão do ava reko - jeito/modo/cultura guarani. (LESCANO, 2016; TESTA, 2015; SERAGUZA 2013; JOÃO, 2011; CHAMORRO, 2008; BENITES, 2009).

A pessoa, como pensada pelos Guarani, é constituída de componentes e relações diversas. A criança, desde sua origem, realiza o papel de mediar e transformar as relações na família e da família com as divindades, ou “entre os seres humanos e os “donos” – jára – dos patamares do cosmo” (CARIÁGA, NASCIMENTO & PEREIRA, 2019, p. 292). Esse corpo

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em construção que, como ponderou Vasconcelos (2011) para os Mbya, não está adequadamente acomodado, nem no plano da natureza nem no plano da cultura. É o que dá possibilidade de transitar e mediar outros mundos e outras relações. Diz a estudiosa:

Pois ela [a criança], em seu caráter sobrenatural e vindo de uma aldeia divina e vivendo em condições ideais de uma “cultura pura”, está então, acima desta cultura humana, e acima da natureza, na sobrenatureza, mas não somente nesta, mas também ela estaria num plano digamos da “sobrecultura”. A criança vindo do céu está no plano cósmico, da sobrenatureza, mas mais do que isso vivendo em condições ideais de cultura ela estaria, por assim dizer, na sobrecultura. (VASCONCELOS, 2011, p.108)

As discussões de etnologia pós-Levi Strauss implodem a distinção entre natureza e cultura, que é cara para as políticas culturais atuais. Christina Toren argumenta que a cultura é um obstáculo que não contribui para iluminar a nossa compreensão dos outros. A cultura, como relativa e particular, depende da contrapartida analítica da biologia, como domínio do irredutível, universal. Para a autora, a pouca pertinência analítica da cultura fica mais evidente nos estudos analíticos, cujo foco são as crianças.

Faz sentido pensar em um neonato como um organismo que nasce biológico apenas para se tornar cultural como um resultado de ações performadas por seus cuidadores? Certamente que não, pois, mesmo nessa perspectiva, a capacidade da criança de se tornar a portadora/suporte da cultura é inerente a ela; assim, a cultura deve ser dada, em algum sentido, se suas formas particulares forem alcançadas. Mas se nossa capacidade de cultura é biologicamente dada, o que nos permite reter a distinção entre biologia e cultura como analítica? Como podemos classificar quais aspectos do ser humano devem ser adequadamente analisados como biológicos e quais como culturais? E dado que estas questões implicam que o biológico e o cultural são aspectos um do outro, por que reter a distinção? O objetivo da antropologia é explicar a extraordinária multiplicidade que é o ser humano no mundo ou, mais exatamente, como a singularidade peculiar a cada um de nós está localizada no que temos em comum. (TOREN, 2004, p. 177)4

A atenção às crianças guarani é um recorte privilegiado para a compreensão do “problema da cultura” para a garantia de direitos diferenciados às crianças indígenas. Ao mesmo tempo em que é uma categoria problematizada pelos antropólogos, é também acionada como ferramenta política.

A vida guarani começa com o elemento celeste ñe’ẽ/ayvu (traduzido pelos kaiowá como alma ou pássaro) que toma assento – apyka – no corpo da pessoa durante o processo de gestação. Ñe’ẽ, nos patamares do cosmo, tem a forma de pássaro; esse pássaro é enviado por Ñanderu para viver com os humanos e tornar-se ava – gente, pessoa, humano – por meio das relações com os seus parentes. Os cantos, as rezas, a alimentação, as massagens, as plantas

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medicinais são consideradas fundamentais para o desenvolvimento e o nascimento correto dos bebês. Leila, liderança guarani de Yvy Katu, explicou-me que as crianças já nascem com “cultura”, porque, na barriga, escutam a mãe rezar e aprendem.

A chegada de uma criança constitui um momento de muita alegria para os seus parentes, mas também de responsabilidade. Eliel Benites, professor kaiowá, explica que a criança é o olho do deus na terra, ela vem para observar o comportamento da família. A família deve se dedicar a fazer com que ñe’ẽ se acostume a morar na terra. Para saber como cuidar da criança é necessário conhecer sua origem. O rezador é quem identifica sua origem celestial e, durante a cerimônia de mitã mongarai (batismo da criança), entrega seu nome que é utilizado na comunicação entre as divindades e o fogo doméstico (lar) escolhido. O ñe’ẽ pode estranhar a terra e sentir saudades do seu lugar celeste de origem. Assim, o ñe’ẽ deve ser convencido, estimulado e alegrado para constituir vínculos afetivos com o seu fogo doméstico, a parentela (te’ýi) e a comunidade (tekoha) que o recebeu. No processo de adaptação da criança, a produção de sentimentos de alegria e afetividade, junto com outros procedimentos rituais e diários, como a alimentação adequada, asseguram seu correto desenvolvimento. (CARIÁGA, NASCIMENTO & PEREIRA, 2019, p. 292).

Diante deste entendimento do significado que os Guarani dão às suas crianças é comum indagar: Por que, historicamente, missionários acusam os Guarani e Kaiowá de “maus tratos” contra suas crianças, como demonstram os dados que apresento? Por que muitas crianças não permanecem a vida toda no mesmo fogo doméstico? É preciso recordar que as narrativas dos Guarani e Kaiowá sobre o ava reko - jeito guarani - de cuidar das crianças antes e durante a gestação e após o nascimento são atravessadas por lamentações a respeito da impossibilidade de realizar estes cuidados do modo correto.