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Seguindo as redes, teias e caminhos da circulação das crianças indígenas

PARTE I CIRCULAÇÃO DE CRIANÇAS GUARANI E KAIOWÁ: ENTRE PRÁTICAS TRADICIONAIS E PARADIGMAS POLÍTICOS

1. INSPIRAÇÕES ANALÍTICAS E REFLEXÕES METODOLÓGICAS

1.2. Seguindo as redes, teias e caminhos da circulação das crianças indígenas

O texto apresentado é feito de muitos momentos de campo. Assim como se perguntou Fonseca (2017), muitas vezes questionei: “Como sei se estou dentro ou fora do campo?” Formalmente iniciei este estudo no primeiro semestre de 2015, quando procurei “colegas” indígenas que haviam cursado disciplinas comigo durante o mestrado. Entretanto, ao empreender um estudo com os povos indígenas não restrito ao espaço da “aldeia”, considerei as críticas, tantas vezes feitas à antropologia, de descrever comunidades delimitadas e culturas homogêneas, mas atenta às interações entre atores, instituições e políticas e me deparei com a ausência de limitações definidas sobre o que e como poderia ser tomado como dados de campo. Desde a graduação em Ciências Sociais, concluída em 2010, fui estimulada a observar os indígenas presentes no sul de Mato Grosso do Sul, em bairros, ruas, nos portões de nossas casas, nas escolas, nas universidades, nos bancos, nos comércios, nas igrejas, nos órgãos do sistema de justiça, nas casas de conselhos, nos abrigos e presídios, nas notícias dos jornais locais e nas mídias sociais, como Facebook e Whats App, tornando-se mais difícil identificar quando eu estava fazendo campo. Em diálogo com Gupta e Ferguson (1997), Fonseca (2017) aponta que este sentimento pode ser relacionado com o paradoxo entre as reviravoltas radicais da teoria antropológica e o descompasso na reformulação radical das discussões metodológicas.

Ao desestabilizar as concepções teóricas antropológicas clássicas, destacando as fronteiras porosas e pessoais, objetos e ideias em deslocamento, não é possível olvidar que isto também inclui repensar a metodologia. Esta condição é inerente à concepção de que “etnografia não é método”, mas “teoria-método”, como propõe Peirano (2014). Entretanto, como observa Fonseca (2017), repensar o campo como condição do trabalho etnográfico não significa abrir mão do “deslocamento” que este tipo de trabalho deve provocar: “a relativização do

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conhecimento hegemônico ocidental, a escuta e valorização do que dizem os sujeitos de estudo, a consciência do posicionamento de perspectivas transmitidas a partir de situações socialmente e politicamente diferentes” (FONSECA, 2017, p.440). Assim como desnaturalizar o “local” e o mundo dividido entre “nós” e “eles” não significa apagar as diferenças, mas sim multiplicá- las, como argumentou Lila Abu-Lughod (1991).

Começo a me posicionar. O texto aqui apresentado também leva em consideração as diversas experiências que atravessam minha trajetória como “antropóloga de Jesus”¸ categoria atribuída por uma missionária da Missão Evangélica Caiuá, referindo-se à minha formação como antropóloga (pesquisadora acadêmica), ao meu sobrenome (Jesus do Nascimento) e à minha opção religiosa como evangélica (como se diz, nasci em berço evangélico e é a partir desse pertencimento que me aproximei das crianças indígenas nos “orfanatos”).

No primeiro semestre de 2016, eu estava no Centro de Recuperação Nutricional (Centrinho) da Missão Evangélica Caiuá, procurando me aproximar dos indígenas que ali estavam na posição de “usuários”, “pacientes” (como mães e filhos com baixo peso e crianças deficientes), ou de prestadores de serviços (como cozinheiras, técnica em enfermagem, assistentes sociais, professores). Ali fui encontrada por uma senhora, muito falante, que logo apresentou-se como missionária, solteira, e contou-me que era responsável por levar algumas das crianças com deficiência para a APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais). Eu, que estava bastante deslocada, me senti acolhida e, nas outras vezes que retornei ao Centrinho, nutria certa ansiedade de encontrá-la porque ela me recebia com um sorriso e tinha boas histórias para compartilhar, levava-me para os espaços que eu não ousaria entrar e se dispôs a me ensinar como realizar meu estudo. Por exemplo, em um dos nossos encontros, convidou-me para visitar os pacientes que estavam internados no Hospital Porta da Esperança da Missão Caiuá. Em princípio hesitei, mas ela garantiu que não haveria problemas e que naquele dia gostaria de me apresentar ao povo Terena. Em sua opinião eles eram mais inteligentes e falavam melhor o Português; ela achava que eu não poderia me restringir aos Guarani e Kaiowá, que eram “coitadinhos”, mais “pobrezinhos”. Quando chegamos ao Hospital, ela avisou aos enfermeiros e recepcionistas, na entrada, que eu faria a visita acompanhada por ela, porque eu era uma “Antropóloga de Jesus”. Uma enfermeira reagiu: “eu também sou de Jesus”. A missionária retrucou: “Eu sei, mas é que os antropólogos falam muito mal da Missão [Caiuá]. A Missão é muito incompreendida”.

Enquanto seguíamos pelo corredor, ela fazia questão de me falar e mostrar os esforços da instituição em “respeitar” e “preservar” a “cultura”: como os índios gostam de tomar mate

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ao redor do fogo, mesmo não sendo a fumaça algo bom, a Missão reservou um espaço para eles ficarem; “a Missão traduziu a bíblia para o idioma Guarani” e “incentiva eles fazerem artesanato”, mas “muitos não querem mais” ou “não querem fazer com os materiais tradicionais”. O pastor presbiteriano e diretor do Hospital Porta da Esperança também me explicou que, para adequar-se à especificidade indígena, tinha os recursos financeiros da Missão reduzidos. Segundo ele, o recurso vem de acordo com a adequação ao formulário do governo federal e, como “não há porta de entrada no hospital, os familiares dos pacientes entram e saem quando desejam”, isto implica em desagrado aos funcionários e em redução de orçamento. Em resumo, o diretor e a missionária me garantiram que “a Missão não é contra a cultura, mas eles têm que conhecer Jesus”.

Posteriormente entendi que esta minha posição de “antropóloga de Jesus” é uma característica da minha relação com os diversos interlocutores da pesquisa, e é deste lugar que eu compreendo as políticas de proteção para as crianças indígenas. A afirmação da missionária a respeito de cultura versus Jesus provocou em mim reflexões éticas e políticas sobre o papel da Antropologia e as expectativas que o estudo deste campo aciona para o contexto político em que vivem atualmente as instituições e os atores que atuam com os povos indígenas. Como observou Fonseca (2017), a reflexão metodológica demonstra que não apenas as fronteiras entre “dentro” e “fora” do campo são apagadas, mas também o “posicionamento” do pesquisador precisa ser desnaturalizando, pois “as alianças que acabamos priorizando têm também a ver com nossas convicções pessoais (éticas e estéticas), entrelaçadas a experiências de vida, que vão além do “campo”” (FONSECA, 2017, p. 458).

Posicionar-se ética e politicamente é um trabalho árduo e difícil de ser operacionalizado: no meu caso, em grande parte, devido à variedade de pessoas que gravitam em torno das crianças indígenas, no caso de Fonseca (2017), em torno das antigas Colônias de vítimas de hanseníase. Tanto os indígenas quanto os atores e as instituições procuram, na aliança com pesquisadores, responder aos seus interesses pessoais ou coletivos que também estão fundamentados em suas convicções pessoais e experiências de vida. No meu caso, alguns interlocutores em campo reivindicavam apoio para a criação de instituições de acolhimento nas áreas indígenas, para selecionar famílias indígenas dispostas a participar do Serviço de Família Acolhedora Indígena, para conduzir estratégias de enfrentamento à violência sexual contra indígenas e também do trabalho infantil, para organizar/mediar ou proferir falas de sensibilização sobre os direitos das crianças indígenas para a rede de proteção, para contribuir com a doação de alimentos, roupas, mobílias, brinquedos para as famílias com crianças em

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situação de vulnerabilidade, para elaborar relatórios e notas técnicas sobre a violação dos direitos indígenas, para conceder entrevistas e acompanhar jornalistas que buscavam dar visibilidade aos casos e à causa das crianças indígenas. Estas atividades demandam a participação da assessoria antropológica, mas, geralmente, não é prevista nos orçamentos governamentais e não-governamentais. A “moral” antropológica contribuía para eu me sentir desconfortável, por entender que a minha participação nestas reinvindicações podia significar meu enredamento numa rede de relações que eu desconhecia, mas, ao mesmo tempo, eu era provocada a observar e participar de muitas dessas iniciativas. Essa atitude se aproxima da “ética do desconforto”, recomendada por Fassin (2008), ao defender que os antropólogos devam perceber-se como atores morais, com a tendência de trazer mais os nossos próprios valores do que o dos grupos com os quais estudamos, e manter um rigor constante nas próprias observações.

Esta postura dialoga com a proposição do que Diddier Fassin (2009; 2013) denomina etnografia pública. Encoraja o estudante a “trazer a vários públicos, além do acadêmico, as conclusões de uma etnografia analisada à luz do pensamento crítico, de modo que estes resultados possam ser apreendidos, apropriados, debatidos, contestados e utilizados” (FASSIN, 2013, p.628). O autor propõe “politizar a antropologia” (FASSIN, 2013), para quem a popularização da etnografia implica em buscar outros meios e gêneros de texto para a divulgação de nossas pesquisas a fim de contemplar um público mais amplo. A politização relaciona-se ao debate e à mudança, a abertura do espaço público para determinadas questões procurando impactar políticas públicas. Como observou Graziele Dainese, durante um seminário realizado na UFGD, em 2016, o desafio que trabalhos como o meu provoca é, ao contrário, como não politizar um tema que, como problema social, tem nos argumentos antropológicos e nos antropólogos um dos polos de tensionamento?

Como parte de minha etnografia da prática cotidiana da política de proteção às crianças indígenas, variados caminhos metodológicos foram empreendidos com a finalidade de acessar as experiências cotidianas de promoção, garantia e proteção aos direitos das crianças indígenas guarani e kaiowá, da região sul de Mato Grosso do Sul. Por tratar-se de uma temática que gira em torno de normativas e políticas nacionais e internacionais, bem como de contextos sociais, políticos e cosmológicos específicos, o recorte de pesquisa pressupunha a disposição para o diálogo entre estas diferentes concepções e os diversos atores envolvidos. Entretanto detive- me, particularmente e com maior inserção em campo, em alguns espaços privilegiados de

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implementação da política diferenciada para as crianças indígenas, quando conheci, em maior profundidade, os desafios políticos para se efetivar os direitos das crianças indígenas.

Considerando estes aspectos, busquei não ater o estudo a um local específico, a parentelas específicas ou a um único procedimento metodológico, mas combiná-los da seguinte maneira:

I. Os Guarani e Kaiowá: a) em eventos públicos organizados por instituições com a parceria deles próprios, como as universidades, SESAI, Secretarias Municipais, Escolas Indígenas; b) ou organizado por eles com parcerias institucionais, como nas grandes reuniões/assembleias – Aty Guasy e Aty Guasu Jovem - e em rituais como o Jeroky; c) nos atendimentos de saúde ou de assistência social, tendo os indígenas como agentes de saúde, enfermeiros, assistentes sociais, motoristas, ou como “pacientes”/“usuários” e, neste último caso, sobretudo, mulheres e crianças; d) através das visitas breves ou mais prolongadas às residências de lideranças tradicionais, agentes de saúde, professores, mães etc, em diversas áreas indígenas (reservas, acampamentos e retomadas) em Dourados, Amambai, Caarapó, Porto Lindo, Paranhos, Tacuru; e) seguindo o que se tem escrito pelos e sobre os Guarani e Kaiowá em diversos meios textuais, como nas “autoetnografias” resultantes em dissertações e teses, nos compartilhamentos nas mídias eletrônicas como Facebook e WhatsApp, nos jornais, relatórios oficiais públicos e nos processos judiciais.

II. Os atores e as agências que compõem as Redes de Proteção Social à Criança Indígena: Centrinho na Missão Evangélica Caiuá (MEC), Conselho Tutelar, SESAI, CASAI, FUNAI, CRAS, CREAS, MPE, Fórum, Hospital Universitário (HU), MPF.

III. Os documentos produzidos que envolvem direta ou indiretamente o direito à convivência familiar das crianças e jovens indígenas: relatórios do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) e dos processos judiciais.

Este estudo apresenta um esforço de dizer, no tempo acadêmico do doutorado, um pouco dos resultados deste exercício de escuta e observação cuidadosa das divergências sobre o “bom cuidado” e o “mau cuidado” de crianças indígenas. Este não foi um processo de heroísmo ou de aplausos, mas consistiu em muitos momentos de desconforto, de silêncio, de dúvidas, e também de autoconhecimento. Teve participação e tentativas de mediação que foram

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fundamentais para manter os pés no chão e sentir (pois, como me ensinaram alguns interlocutores, nem sempre as pessoas querem ser entendidas) os desafios desse fazer a proteção de crianças e adolescentes. Assim como, ao final deste estudo, o começo da minha experiência de maternidade também contribuiu para eu amarrar estas reflexões a partir das sutilezas de uma consciência corporal que me aproxima e me distância das mães indígenas que, na prática, fazem opções sobre o bom cuidado dos seus filhos e que ora recepciona as orientações dos profissionais e também dos familiares, ora rejeita de uns e de outros, interagindo não com escolhas racionais, mas com o que é possível no momento. Apresentar estes resultados é um feito dolorido e de muita reescrita, pois, como me disse algumas vezes uma colega psicóloga, é preciso aceitar que “nem tudo cabe no papel”. Parece-me que é recorrente entre os cientistas sociais certo ressentimento com a pouca recepção dos nossos conhecimentos para além da academia, mas também há desconforto com os efeitos do que produzimos nas políticas públicas. O desafio da participação e da escrita tem, em meu caso, a preocupação com os efeitos, sobretudo, políticos de reflexões que podem afetar as vidas de crianças, famílias e parentelas do povo indígena. Afinal, como apresento no próximo capítulo, esta é uma questão histórica considerada uma problemática pública para a qual desconfio de saídas simplistas ou reducionistas.

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2. TRANSFORMAÇÃO NOS MODOS DE CIRCULAÇÃO E CUIDADO COM AS