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A noção de repetibilidade para a AD: uma aproximação com a performatividade de

1. Análise de Discurso e Estudos de Gênero

1.4 A noção de repetibilidade para a AD: uma aproximação com a performatividade de

performatividade de gênero

Para começar, trago a concepção da AD que compreende que o processo discursivo não tem, de direito, um início, uma vez que o discurso sempre se conjuga sobre outro discurso prévio. Um discurso remete sempre a outro, com isso em Pêcheux (2014) encontra-se que “a produção de sentido é estritamente indissociável da relação de paráfrase”. A produção de sentido, por sua vez, é parte integrante da interpelação do indivíduo em sujeito, pois não preexiste efeito de sentido algum sem que haja uma formação discursiva na qual ele se constitui.

A questão que busco desenvolver nesse subtítulo é a dos sentidos instaurados pela repetição, e para isso valho-me do que desenvolve Grantham (2001) em sua tese de doutorado sobre a leitura:

Tanto a leitura quanto a reescrita são um trabalho do leitor que interage com as “brechas” do discurso-outro, preenchendo-as de acordo com sua história, com sua formação discursiva, com sua posição-sujeito.

Nesse processo, o sujeito-leitor que reescreve assume como suas as palavras que já foram ditas e imagina-se origem do dizer (GRANTHAM, 2001, p. 49).

Concordo com a autora, sobre a concepção de repetição abordada em seu trabalho: “a repetição pode ser considerada como o retorno do mesmo, que, reaparecendo em outro lugar e tempo, torna-se outro” (GRANTHAM, 2001, p. 50). Então, o dizer não pode ser considerado domínio particular, pois as palavras nunca são somente nossas. Ao contrário, elas significam pela história e pela língua, portanto, o que é dito antes, também significa agora. Assim,

o “já-dito” tem estreito relacionamento com a noção de repetição e é fundamental para que possamos compreender o funcionamento do discurso, sua relação com os sujeitos e com a ideologia (GRANTHAM, 2001, p. 50)

Influenciada pelo discorrer da tese de Grantham, trago a concepção dialética de repetição/regularização de Pierre Achard (1999). Grantham (2001) coloca, que ao desenvolver essa concepção, Achard parte da problemática sobre “o sentido de uma palavra”, admitindo que o que caracteriza a palavra é sua unidade, sua identidade a si mesma e que isto permite que as possamos reconhecê-las em seus diferentes contextos.

A palavra é aqui tomada como unidade simbólica, cujo reconhecimento se define pela repetição, e a cada nova ocorrência dessa unidade, são fornecidos novos contextos que contribuem para a construção do sentido. Contudo, “para atribuir um sentido a essa unidade, é preciso admitir que suas repetições estão tomadas por uma regularidade” (GRANTHAM, 2001, p.53).

Ao falar de repetição, não posso me eximir de falar em paráfrase, que corresponde justamente ao processo de quando o sentido se mantém inalterado através da repetição. Pêcheux (2014) associa a noção de paráfrase ao processo de produção do sentido. Para ele, o sentido de uma sequência só pode ser concebido se reconhecermos que essa sequência pertence a uma formação discursiva. Essa concepção é desenvolvida antes da reformulação que propõe a FD como espaço para heterogeneidades. Já após a reformulação do conceito de formação discursiva e de forma-sujeito, que deixaram de ser concebidas como homogêneas e passaram a abrigar diferenças em seu interior, é que o autor passa a conceber a paráfrase não só “como o lugar do mesmo”, mas também como a possibilidade do diferente.

Nessa mesma perspectiva, Orlandi desenvolve a noção de paráfrase e de polissemia, sendo o processo parafrástico visto como a reiteração de processos cristalizados pelas instituições e o processo polissêmico relacionado à multiplicidade de sentidos. A autora afirma que “a paráfrase está do lado da estabilização. Ao passo que, na polissemia, o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significação” (ORLANDI, 1999, p. 36).

Ao conceber essa noção, entendo que a língua é dotada de equívocos e que dá origem a deslizamentos, a falhas. Portanto, é possível que se rompa com a filiação a uma formação discursiva, mas não podemos esquecer que os sentidos anteriores continuam a ressoar no interdiscurso. Como bem coloca Indursky,

Estas formas de repetibilidade não esgotam o modo como o trabalho sobre a forma-sujeito pode se efetuar, pois há repetições que conduzem o sujeito do discurso a desidentificar-se do discurso religioso [por exemplo] e a consequência dessa desidentificação pode ser tão forte ao ponto de fazer o sentido entrar em deriva e tornar-se outro (INDURSKY, 2013, p.98).

É a partir daqui que procurarei estabelecer um diálogo entre a noção de repetição – e por consequência o que se entende por paráfrase e polissemia em AD – e a repetibilidade de atos performativos de gênero.

Os saberes já pré-existentes sobre as categorias de gêneros – ligadas ou não à heteronorma – também estão em relação estreita com um tipo de repetibilidade. O gênero é, por assim dizer, concebido em Butler como performativo, pois as características pelas quais ele significa, devem ser reiteradas e repetidas para que se mantenham ligadas aos saberes normativos ou para que possam desviar à norma. No entanto, para que possamos atribuir inteligibilidade aos gêneros (re)produzidos, é preciso que admitamos que essas repetições estão tomadas por uma regularidade.

A ação do gênero é mantida por meio da repetição. Essa repetição é ao mesmo tempo reencenação e uma experiência nova de um conjunto de significados socialmente pré-estabelecidos que permitem sua legitimação. É uma performance5 que tem por objetivo manter a estrutura binária do gênero e consolidar o sujeito.

No entanto, o gênero não pode ser entendido como uma identidade estável, pois ele é tenuamente constituído nos processos históricos e por meio da repetição estilizada de atos. A ilusão de gênero permanente é estruturada por estes repetidos atos que buscam aproximá-lo de um ideal homogeneizador, mas é precisamente nas relações arbitrárias entre esses atos que vivem as possibilidades de transformação, ressignificação e deslizamento do gênero.

Por constituírem efetivamente a identidade que expressam, os atos de gênero são considerados performativos. Então não há gênero falso ou verdadeiro, o fato dos atos de gênero serem performativos significa que as noções de sexo essencial e de feminilidade ou masculinidade verdadeiras e permanentes também são construídas por meio da repetibilidade em nome da heterossexualidade compulsória.

5Perfomance é entendida diferente de performaividade. A performance é, aqui, como os sujeitos performam (“encenam”) os gêneros com os quais se identificam.

Os gêneros não podem ser verdadeiros nem falsos, reais nem aparentes, originais nem derivados. Como portadores críveis desses atributos, contudo, eles também podem se tornar completa e radicalmente incríveis. (BUTLER, 2010, p.201).

Por isso, o gênero é uma construção que oculta sua gênese, há um acordo tácito de produzir e sustentar gêneros distintos como se fossem naturais à cultura, e tal acordo só é possível pela credibilidade dessas (re)produções. Assim, produzem- se gêneros normativos e outros que deslizam e, habitualmente, aqueles que não empenham seu gênero de forma “correta”, ou seja, de forma desejada pela heteronorma, são punidos.

Desse modo, entendo que a performance da travesti brinca com o gênero a ser performado e por mais que (re)produza uma imagem unificada de mulher, a travesti escancara os falsamente naturalizados aspectos da experiência do gênero. Sendo possível uma relação direta do campo de estudos da AD com o campo de estudos do gênero, diria que o “processo parafrástico de gênero”, seria aquele que mantém o gênero conformado de acordo com a (hetero)norma, ao passo que o “polissêmico” romperia com a estrutura binária e proporia outra forma de significação.

Afirmo, então, que a identidade de gênero pode ser entendida como uma história cultural e ideológica de significados, sujeitos a um conjunto de práticas imitativas. Como bem postula Butler,

Embora os significados de gêneros assumidos nesses estilos parodisíacos sejam claramente parte da cultura hegemônica misógina, são, todavia, desnaturalizados e mobilizados por meio de sua recontextualização parodisíaca. Como imitações que deslocam efetivamente o significado do original, imitam o próprio mito da originalidade (2010, p.197).

Segundo a autora, tal paródia que se faz é da própria ideia de um original, isto é, são “imitações” que escancaram esse mito da originalidade, revelando o caráter frágil e inseguro da “naturalização” das identidades. O sentido da paródia revela-se, principalmente, quando o “normal”, o “original” expõe-se como uma cópia inevitavelmente falha, “um ideal que ninguém pode incorporar” (2010, p.198). Ou seja, o “original” não existe, ou melhor, ele foi desde sempre um derivado.

Capítulo 2

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