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Por uma análise dos processos discursivos de transexualidades

2. Condições de produção

2.1 Por uma análise dos processos discursivos de transexualidades

É por compreender o gênero como um conjunto de atos repetidos que moldam a estilização do corpo dentro de uma rígida estrutura, cujo objetivo é (re)produzir uma ideia de naturalização, que dou continuidade ao segundo capítulo desta dissertação, procurando traçar o percurso pelo qual o regime de poder heterossexista faz emergir um único e aparentemente estável modelo de sexualidade. Tal regime trabalha com a falsa coerência sexo-gênero-sexualidade, sequência essa que faz com que a visão da categoria “sexo” se dissipe pelo sistema da heterossexualidade compulsória para que a produção de identidades esteja de acordo com o desejo heterossexual. Nessa perspectiva, Butler coloca que

a matriz cultural por intermédio da qual a identidade de gênero se torna inteligível exige que certos tipos de “identidade” não possam “existir” – isto é, aquelas em que o gênero não decorre do sexo e aquelas em que as práticas do desejo não “decorrem” nem do “sexo” nem do “gênero”. (2010, p. 39)

Contudo, por não se conformarem às normas da inteligibilidade cultural, ao existirem, certos tipos de identidade de gênero se apresentam como falhas do desenvolvimento ou impossibilidades lógicas, e, dessa forma, permito-me pensar que o gênero tanto designa os sujeitos como os qualifica, sendo estabelecido acerca de um conceito segundo o qual a categoria binária é universalizada.

Quando questionada sobre como sua transexualidade era compreendida na sociedade, Bill, sujeito empírico da pesquisa, relatou-me a forma como era designada pelos colegas durante as aulas para autoescola. Disse-me: (1) “Quase mulher. Eu de cabelinho curtinho, andando de roupa de homem e me chamavam de quase mulher. Quando eu chegava na aula eu só ouvia ‘chegou a quase mulher’. Olha, eu penso que era um preconceitinho leve. ”

Valho-me dessa sequência discursiva de referência, já imbuída de análise, para delinear o percurso do meu raciocínio quanto aos pressupostos ideológicos que entendem os gêneros pelo viés do sistema de produção de identidades comprometidas com a matriz binária.

Ao produzir um primeiro gesto de análise em relação à sequência destacada, questiono quais efeitos de sentido estão sendo produzidos ao lançarem mão do advérbio quase ligado a designação mulher para classificarem esse sujeito?

Tanto feminilidade como a masculinidade são instituídas por saberes que produzem gêneros cultural e ideologicamente inteligíveis. Esses saberes que produzem uma feminilidade “genuína” advêm de um ideal provinciano que rejeita a demanda de se pensar uma abordagem do gênero como uma construção cultural complexa. Tal ideal tende a servir ao conservadorismo e a constituir uma prática excludente das identidades. Esse poderia ser um gesto de análise que explicaria o porquê da utilização de um advérbio que pressupõe a ideia de que há certa proximidade na identidade trans com aquilo que, ideologicamente, é compreendido como mulher.

Ora, não há dúvidas sobre o que é uma mulher. A designação mulher já foi tantas outras vezes repetida, reiterada e relacionada a referentes claros, objetivos e inquestionáveis que, de fato, não nos resta dúvida do sentido produzido a respeito de tal designação.

Já, diferentemente, o que se entenderia por uma quase mulher? Seria ela uma mulher pela metade? Ou talvez uma menina que ainda não “virou mulher”? Ironicamente, se não considerar as condições de produção do referente “quase mulher”, posso levar os gestos de interpretação que aqui pretendo mobilizar para rumos completamente distintos dos que intenciono com essa análise.

É posto que a concepção de gênero como uma categoria cambiante e culturalmente construída não é uma concepção à qual somos desde sempre expostos. Há, nas relações de poder, um interesse em manter certa homogeneidade cultural, ao passo que, ao depararmo-nos com uma materialidade de gênero que não se encaixa na norma, as palavras nos faltam, fazendo com que não a possamos designar e talvez

até mesmo não a possamos reconhecer. Para que o gênero seja inteligível, é necessária uma demanda de investimentos contínuos de reiteração, no entanto,

As marcas de gênero e sexualidade, significadas e nomeadas no contexto de uma cultura, são também cambiantes e provisórias, e estão, indubitavelmente, envolvidas em relações de poder. Os esforços empreendidos para instituir a norma nos corpos (e nos sujeitos) precisam, pois, ser constantemente reiterados, renovados e refeitos. (LOURO, 2015, p.85)

Louro (2015) reconhece que, apesar de todo reiterado investimento da (hetero)norma nos corpos, não há nada que a permita fluir de forma segura. Contudo, “o mesmo se pode dizer a respeito dos movimentos para transgredi-la” (2015, p. 85). De acordo com a autora, é no corpo e através do corpo que os processos de afirmação e transgressão das normas regulatórias se realizam.

É a partir, portanto, dessa sequência discursiva de referência que intento demonstrar que os discursos não só produzem certas e legitimadas identidades como também as formas de performatizá-las. Nesse sentido, as identidades que desviam e ultrapassam os limites da inteligibilidade cultural ao se encontrarem no impasse da designação, produzem um duplo movimento: o de serem denominadas a partir de uma aproximação das noções de gênero que são estabelecidas pela heteronorma e o de revelarem o quanto o gênero binário determinado por esta norma é instável e performatizado.

Julgo importante também destacar que o discurso desse sujeito trans, apesar de estar, como o de qualquer indivíduo ocidental cartesiano, submetido à ideologia que estabelece o gênero de forma heteronormativa, admite o caráter performativo do gênero quando evidencia estar “andando com roupas de homem”, como na sequência anteriormente destacada. A indústria de vestimenta, por estar submetida à cultura e, obviamente, à ideologia também corrobora para o assujeitamento dos corpos. Andar com roupas de homem é uma forma de performatizar o ser homem, uma vez que, de forma ideológica, a indústria da moda determina as roupas que conferem às representações do que entendemos por homens e mulheres. Nesse campo, podem ocorrer subversões, embora bastante raras − refiro-me à criação de roupas sem distinção de sexo e gênero.

A cultura da heteronorma dita os signos para que haja o reconhecimento do gênero masculino e também do gênero feminino, mas se vê no impasse de

representar as travestis e as transexuais através de signos próprios e inteligíveis, então, para designá-las é lançado mão de aproximações com os gêneros já estabelecidos anteriormente – binariamente - pela norma. Com isso, apaga-se a marca performativa do caráter cis-gênero6 e esse se estabelece na cultura como algo natural.

Aprofundar-me-ei, pois, durante as análises, em noções como as de formação discursiva, a de designação e a de coerção lógica disjuntiva, tentando desenredar a teia que concebe o gênero de forma binária e encobre seu caráter performativo. Verificarei também até que ponto o sujeito trans da pesquisa está identificado com uma formação discursiva que rompe com a heteronorma e, de fato, liberta o gênero da ideia de normalidade e naturalidade. Assim, o próximo capítulo desta dissertação trata da metodologia da pesquisa.

6 O uso do prefixo “cis” é utilizado para representar aquelas identidades e expressões de gênero que são legitimadas pelas normas dominantes e tem sido utilizado por ativistas trans por compreendê-lo como mais uma das diversas possibilidades de se vivenciar o gênero.

Capítulo 3

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