• Nenhum resultado encontrado

No ar do Brasil uma artimanha discursiva dominante

Gilberto Freyre buscou a fórceps cultural o amálgama na sociedade brasileira, o unionismo entre as raças, lapidação discursiva ímpar, bebida, dentre outros, nos estudos pioneiros de Rudiger Bilden, da Universidade de Columbia, nos anos 1920/1930 e cravados em corpos, almas e papel no já citado Casa Grande & Senzala, lançado em 1933, dentre uma miríade de textos herdeiros deste, que dá o tom.

Uma construção discursiva estrondosa sobre o real nacional, de avassalador efeito, feito oxigênio discursivo quase invisível solto no ar do caminho da história do Brasil, para trás e para frente, inebriante para as elites intelectuais e políticas, grande parte delas, ao menos.

15

Para Fernando Pessoa, o Padre Antônio Vieira (1608-1697) é um dos “inventores” do português, para quem o poeta cunharia o epíteto de “O imperador da Língua Portuguesa”. Cf. Prefácio de ALFREDO BOSI (2011).

24 A centralidade única que ganhou esse discurso na cena brasileira do século XX e XXI, espécie de discurso campeão sobre o social nacional, implicaria em um quase afogamento dos direitos pelo peso da herança discursiva das elites geração após geração, com seu tom homogeneizador que pintava, discursivamente, um Brasil ideal, apimentado com muita violência, mas que servia como luva para escamotear tenebrosos privilégios sobre terras, educação, dinheiro e poder, onde a “vergonha” que aparece empiricamente no discurso do Outro, apontada, por exemplo, na obra seminal “Brancos e negros em São Paulo”, que expõe a ferida social e racial brasileira (FERNANDES; BASTIDE, 1959).

Essa intimidação, o preconceito e a inferiorização racial, operam contra o surgimento do discurso dos outros, dos direitos desses outros sociais presentes na história do Brasil, como os africanos e africanas escravizados, seus descendentes, os povos indígenas, também escravizados, seus descendentes, além de outros pobres seus descendentes.

As marcas de exclusão de herança dos Outros não passavam de pecados de nascença, para o discurso de Uns. Essas marcas, no entanto, eram inequívocas, pois,

a condição econômica, social e cultural dos negros é o aspecto mais terrível de todo o quadro fornecido pelos dados do recenseamento. No censo de 1950, os negros compreendiam quase 14 milhões (11% da população total), mas participavam de menos de 20 mil oportunidades como empregadores (0,9%), predominantemente em níveis modestos, e apenas 6.794 (0,6%) e 448 (0,2%) tinham completado, respectivamente, cursos em escolas secundárias e universidades. Uma situação como esta envolve mais do que desigualdade social e pobreza insidiosa. Pressupõe que os indivíduos afetados não estão incluídos, como grupo racial, na ordem social existente, como se não fossem seres humanos nem cidadãos normais (FERNANDES, 2007, 94).

“Contra dados e fatos” há argumentos, insurgem-se discursos acabados, consumidos, agradáveis, lapidadores da ordem social, sacralizados em rituais de poder: acadêmico, político, nacional, internacional, não importam se ficam fora do contexto quando a realidade teima em destroná-los.

Eles são como armas letais, espécie de “pau para toda obra discursiva” na defesa do status quo.

É o caso crasso do discurso do unionismo freyreano, adotado por Uns, majoritário dentre os donos do poder no Brasil, semeado à mão grande no meio do povo, ontem nos anos 1930 e não raro hoje.

É o chamado discurso da democracia racial (COSTA, 1998). Discurso feito mito no Brasil: “o mito da democracia racial”.

25 Ele é suficiente enquanto referência discursiva, pois indica um vetor para a análise fornecido pela história do Brasil, como expõe a autora:

em esboço, os fatos são suficientemente claros: um poderoso mito, a ideia da democracia racial – que regulou as percepções e até certo ponto as próprias vidas dos brasileiros da geração de Freyre – tornou-se para a nova geração de cientistas sociais um arruinado e desacreditado mito. Várias questões óbvias são sugeridas por esses fatos. Como puderam os brasileiros da geração de Freyre desconhecer seus próprios preconceitos? Como puderam os negros brasileiros daquele período permanecer cegos à discriminação que era uma experiência comum no seu cotidiano? Como puderam os brasileiros cultos, fossem eles brancos ou negros, ignorar a discriminação racial quando esta estava claramente demonstrada pelas estatísticas oficiais amplamente divulgadas? Qualquer um que soubesse ler e realizar simples operações aritméticas poderia ter observado os dados do censo oficial de 1950, que revelavam de maneira irretorquível a precária situação dos negros no Brasil. Estas estatísticas, por exemplo, classificavam cerca de 60% da população total como tecnicamente branca, cerca de 25% como mulata e 11% como negra. Mas as estatísticas referentes ao atendimento escolar de nível primário revelavam uma distribuição dramaticamente diversa. Apenas 10% dos alunos eram mulatos e somente 4% negros. E nos estabelecimentos de nível secundário e superior o número de mulatos e negros era ainda menor. Somente 4% dos estudantes das escolas secundárias eram mulatos e menos de 1% eram negros. Nas universidades, apenas 2% eram mulatos, e somente um quarto de 1% era negro. (COSTA, 1998, p. 370/371).

Dois fatos históricos retumbantes na cena brasileira reforçaram o mito da democracia racial e escantearam a resistência a esse discurso. Em particular, aquela resistência feita pela educação popular, como a ação educativa de Paulo Freire no Nordeste nos anos 1940/50/60 e de Abdias do Nascimento, por meio do Teatro Experimental do Negro, no Sudeste, com destaque ao Rio de Janeiro, também nos anos 1940/50/60. A luta dos excedentes nos primórdios dos anos 1960 também acabaria nos camburões da história.

Os fatos são: o Golpe Militar de 1964 no Brasil que exilou Freire, Abdias do Nascimento, dentre outros – que sumiu com o quesito cor/raça do censo de 1970 – e o vendaval neoliberal de fora para dentro do país nos anos 1990 e seguintes, que colocou uma camisa de força nas políticas sociais aprovadas na Constituição de 1988, a pretexto do rigor fiscal do Estado Mínimo.

A precariedade relativa das estatísticas educacionais de negros e negras no Brasil não eram suficientes para sensibilizar os poderes de plantão no Brasil, tampouco a letra das leis inscritas na Constituição de 1988. O discurso da democracia racial que emergira quando o liberalismo era enterrado nos anos 1930 no mundo capitalista com as políticas keynesianas, parecia ressuscitar mais forte ainda com a ressureição do liberalismo nos anos 1990 como neoliberalismo triunfante, no curso da débâcle da URSS.

26 A resistência discursiva, muito na invisibilidade, se fazia nos porões da sociedade brasileira. Mas, em 2001, na África do Sul, na Conferência de Durban contra o racismo, a xenofobia e as intolerâncias correlatas, as estatísticas da pretensa democracia racial brasileira, deram no inverso: denunciaram para o mundo todo a reprodução relativa da precariedade da condição social e educacional do negro, da negra no Brasil.

Os estudos de Hasenbalg (1997), Henriques (2001), Theodoro (2008) e Paixão et al (2010), repisaram as teses dos estudiosos dos anos 1950/1960, com refinamento estatístico, onde o discurso da situação social real de negros, negras, indígenas em variados quesitos, como o direito à educação em todos os níveis, descolava o discurso ideal da democracia racial do Brasil real.

Ao pôr os pés na periferia brasileira no século XXI caminha-se na direção dos outros sociais, seus discursos. Ao fazer isso, olha-se para trás simultaneamente, porque os discursos não brotam do nada.

Ao comparar a evolução da conquista da cidadania no Brasil, do ponto de vista do direito do negro, vis-à-vis a leitura clássica de Marshall16 sobre a conquista dos direitos civis, políticos e sociais na Inglaterra, emerge um artigo ímpar de Guimarães (2012), que aborda os discursos sobre as relações raciais na história do Brasil e é tomado como referência nessa dissertação, sobre o que se alongará oportunamente.

Do corpus tomado como presente emerge – feito fonte documental relevante – um fragmento de realidade da educação brasileira.

Nele como brenha, quebrada, favela, viela, baixio, morro, mangue, palafitas, sertão, roça, mato, baixas periferias, estão os discursos dos outros sociais, homens e mulheres que sonham em ir para a universidade no Brasil, os Sem Universidade.

16

27

Documentos relacionados