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No meio do caminho a linguagem nas relações raciais no Brasil

Os sons produzem ruídos, ecos. Isso se percebe de palavras, de falas, de mímicas, também o tato e o cheiro tem lá seus ecos próprios. Até o silêncio – “o mais intenso dos acordes musicais”10 – produz eco. Na periferia, ensina a sabedoria que, “quem falar morre”, em dadas circunstâncias. Assim o silêncio anda de boca em boca, ecoa a violência.

Há que se notar que essa noção tem relação direta com a educação popular, isso se dá muito em função dos saberes populares, da cultura oral, da memória coletiva, algo arraigado nos costumes. Por exemplo, eco pode dizer respeito a ditados populares, que perpassam o tempo, diferentes lugares. Nesse sentido,

para A. Berrendonner (1982,199), o provérbio deve ser classificado entre os fenômenos de “menção”, de enunciações ditas sobre outra enunciação. Ele se caracteriza pelo fato de que “a enunciação relatada E0 é aí apresentada como um acontecimento da enunciação meta (=mencionante), E1”. Pode-se aqui

falar de enunciação-eco, na medida em que o enunciador do provérbio dá sua asserção como uma imitação, o eco, a retomada de um número ilimitado de enunciações anteriores desse mesmo provérbio. Em um

quadro polifônico, observar-se-á que o locutor do provérbio é também seu enunciador, isto é, assume-o pessoalmente, mas o faz apagando-se atrás de outro enunciador “on”, que é o verdadeiro fiador da verdade do provérbio (1982, p. 207).

Esse on que representa a opinião comum, a “sabedoria popular”, é, no caso presente, um “agente verificador”, uma instância suscetível de validar uma proposição; ele constitui o suporte da “on-verdade” do provérbio (BERRENDONNER, 1982, p. 40). Em uma ótica polifônica, esse on é uma personagem que participa da comunicação, validando uma primeira asserção E0, cuja verdade é pressuposta por uma segunda, E1. (MAINGUENEAU, 2010, p.p. 172-173 – grifos do autor).

Fica patente a importância da noção de eco, que poderá ou não aparecer no corpus. Ou seja, o silêncio que ecoa na periferia em certos casos extremos, pode valer

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18 ou não. Na dúvida, quem se arrisca entre a vida e a morte? Há muitos ecos no tempo histórico brasileiro, em variadas dimensões.

O burburinho das vozes atravessa o ar, os corpos, paredes, textos, romances e o discurso, que permanece nos dias. Une a subjetividade do sujeito ao olhar que enxerga ao redor de si, “deixa as orelhas em pé”, enfim, envolve todos os sentidos.

Ecoa também nos tempos, por uma plurissemioticidade (sons, textos, falas, cinema, literatura, quadros, esculturas, fotografia, gravura, caricatura, internet, documentos oficiais, livros, teatro etc.) a dor, o barulho do chicote nas costas do africano sob o domínio da escravização11 que apanha no pelourinho, na praça pública, mesmo depois da lei de 7 de novembro de 1831, que proibiu a importação de escravizados da África para o Brasil. Fato não esgotado da história brasileira, pois a despeito do ato legal proibitivo, vieram escravizados para o Brasil mais cerca de 750 mil africanos e africanas, apesar da lei, repita-se, donde o reforço do mote “para inglês ver”. Como mostra Chalhoub (2012, p. 84), a língua distinguia os escravizados que já estavam no Brasil dos que vieram depois da lei que proibiu o tráfico em 1831:

o artigo nono do decreto de 12 de abril de 1832, que regulamentou a lei de 1831, mandava que a autoridade, ao investigar se um determinado africano era ou não “boçal”, examinasse logo “se entende a língua brasileira”. Além disso, devia-se saber havia quanto tempo estava no país, em que barco chegara, onde desembarcar, por quais lugares passara.

No meio do caminho do Brasil, no meio do caminho do escravizado, da escravizada africana, mesmo indígena, estava a língua. A língua contava, como conta até os dias de hoje, por exemplo, para o acesso às universidades no Brasil.

O domínio ou não da língua portuguesa falada no Brasil perante o interrogatório policial feito pelo Estado, exclusivamente para corpos negros, indígenas também, podia levar à escravização ou à ‘liberdade’ do negro, da negra, dos africanos no geral, mesmo que crianças, ainda que estivessem na condição de forro, pois a cor da pele já o punha sob a imediata suspeita policial. O negro no Brasil pisava no fio desta navalha ao pisar em terra brasileira, com a polícia do Império no seu encalço:

por ora, o que interessa no laudo do “Doutor curador dos africanos livres” é o modo como gira quase inteiramente em torno das aquisições linguísticas do congo Luiz. Há uma espécie de índice de evolução no domínio do idioma,

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A palavra escravização, ao invés de escravidão, indica uma ação, o que pressupõe um agente. Isso serve para deslocar qualquer naturalização dessa condição: ninguém nasce “escravo” como se fosse predestinado para, mas é escravizado, em função de condições históricas e sociais. Vários autores utilizam “escravização”, opção dessa escrita, como aparece em trecho de Euclides da Cunha: “Enquanto

este, de traçado incomparavelmente mais próprio à penetração colonizadora, se tornou o caminho predileto dos sertanistas visando sobretudo a escravização...” (CUNHA, E., [1902] 2002, p. 184).

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para a superação do estado de “boçalidade”, como pressuposto do documento. Assim, ao chegar, o preto era mesmo “boçal”, pois “nada falava do idioma português”. O interrogatório mais recente fora realizado parte em português, parte em língua africana, “para ser entendido em alguns pontos de suas respostas”. No entanto, Luiz já conhecia “algumas palavras de nossa língua”, conseguia pronunciá-las de maneira a se fazer entender. Havia adquirido essas habilidades entre 4 de novembro de 1837, quando aparecera na chácara de dona Thereza, e 23 de abril de 1839, data do interrogatório; se o africano tivesse ingressado no país legalmente, ou seja, antes de 7 de novembro de 1831, supõe-se que “devia necessariamente conhecer hoje a maior parte das palavras portuguesas”. Em suma, as informações sobre o processo de domínio do idioma pelo congo Luiz constituem a prova principal de que ingressara no país após a proibição do tráfico. De modo acessório, importou saber que Luiz desembarcara num lugar “todo em mato” e que caminhara noite adentro “sempre acompanhado com homens armados”, circunstâncias que confirmavam o caráter clandestino de sua chegada. (CHALHOUB, 2012, p. 90).

O chão pisado por pés descalços, dos escravizados africanos e das escravizadas africanas - que eram proibidos de usar sapatos na década de 1830 e nos anos seguintes,

guardou essas pegadas na história do Brasil.

A linguagem aparece como instrumento decisivo do poder de polícia, ela serve ao poder e o poder dela se serve. Se boçal ou ladino12, se escravizado ou liberto sob uma dura vigia e suspeita infinita, é com este veredicto linguístico, feito somente sobre os corpos negros, que o Estado os prendia para uma posterior deportação à África ou os entregava nas mãos do senhor-de-escravo ou os mantinha livres, se forros confirmados, sem, contudo, nunca exaurir a suspeita em função das circunstâncias, pois a cor da pele era a senha da suspeição, dela não se livrava o negro, mesmo que liberto. Ou seja, todo negro, toda negra, ainda que forros, são primeiro suspeitos13 de fuga da condição de escravizados, depois de comprovados por um texto, um papel escrito, além dos pés calçados, é que poderiam ser considerados livres de fato. É essa semeadura da dor que levará, longe nos tempos, seus ruídos. Mesmo o silêncio far-se-á eco, discurso.

Sim, pois a produção de silêncio sobre 1831 continuou após a lei de 1850, num labor constante, vigilante, que faz parte talvez da seiva que alimenta até hoje, no “caráter nacional”, a mania de tergiversar sobre o problema racial no país. (CHALHOUB, 2012, p. 140).

Desde este ponto de partida, qual seja, os discursos que brotaram no quadro social da escravização ilegal de cerca de 750 mil africanos após a proibição do tráfico em 1831 pela ordem jurídica da nação que se formava, inicia-se longa jornada até o

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O adjetivo “ladino” se aplicava ao africano que já falava português e era afeito aos costumes do Brasil, por oposição ao africano recém-chegado, dito “boçal”. (CUNHA, C., 2012, p. 98).

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Isso provavelmente resolvia para a polícia o embaraço de ter de averiguar a condição de livre ou escravo, e certamente reforçava no liberto a consciência da precariedade de sua condição. Consciência que ele claramente tinha: um preto, até prova em contrário, era um escravo. Talvez por isso muitos forros tivessem ido se estabelecer em quilombos. (CUNHA, C., 2012, p. 95).

20 Brasil do começo do século XXI, onde os discursos raciais continuam servindo para negar direitos aos pretos, pardos e indígenas, como o direito à universidade pública paulista.

Situação antiga e atual, paradoxalmente, quando se problematiza a questão da homogeneidade da sociedade brasileira. Nesse sentido, é pertinente a contribuição de Manuela Carneiro da Cunha (2012, p. 108),

mas que homogeneidade era essa? José Bonifácio a pensa sob duas espécies concomitantes: uma homogeneidade “physica e civil”. O que entendia por homogeneidade civil é explícito: um país dividido em senhores e escravos era um país instável, desprovido de pacto social. Somente um país de livres poderia constituir uma nação homogênea, “fundada na Moral e na Razão”. Essa homogeneidade de condição era a garantia da viabilidade do Estado: “como poderá haver uma Constituição liberal e duradoura em um paiz continuamente habitado por uma multidão immensa de escravos brutaes e inimigos?”

Paradoxalmente, a homogeneidade social era perigosa demais para o jogo de poder das elites no século XIX. A minoria branca da elite que punha seus pupilos nas universidades daqui feito faculdades ou em Coimbra, temia a unidade da maioria diversa, escravizada. Um medo animador de gigantesca violência.

As premissas inspiradoras da lei do novo país no continente americano, o Brasil, são tomadas de empréstimo da revolução burguesa americana e sua constituição de 1776, da revolução francesa de 1789, do Congresso de Viena da restauração monárquica de 1815, e, do medo dos acontecimentos provocados pelos pretos de São Domingos na América Central em 1798 (onde os franceses recuaram de seus pendores de igualdade, fraternidade e liberdade a troco de uma boa colônia provedora).14 De forma que, o Brasil nasce, em síntese, sob um liberalismo de fachada, com escravização negra e mesmo indígena, submissão da Igreja ao Estado e concentração do poder nas mãos de um imperador, como ensinou a professora Emília Viotti da Costa (2010, p. 134; 144),

atribuindo a instabilidade dos demais países latino-americanos à forma republicana de governo, as classes dominantes brasileiras adotaram, em 1822, uma monarquia constitucional com a qual esperavam conseguir unidade e estabilidade política. Atemorizados pelos espectros da Revolução Francesa e da revolta dos escravos no Haiti, desconfiavam tanto do absolutismo monárquico quanto dos levantes populares revolucionários e estavam decididos a restringir o poder do imperador e a manter o povo sob controle. Para levar a cabo seu projeto encontraram sua principal fonte de inspiração no liberalismo europeu.

O liberalismo brasileiro, no entanto, só pode ser entendido com referência à realidade brasileira. Os liberais brasileiros importaram princípios e fórmulas políticas, mas as ajustaram às suas próprias necessidades. Considerando que as mesmas palavras podem ter significados diferentes em contextos distintos,

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devemos ir além de uma análise formal do discurso liberal e relacionar a retórica com a prática liberal, de modo que possamos definir a especificidade do brasileiro. Em outras palavras, é preciso desconstruir o discurso liberal. [...]

Ficavam excluídos do conceito de cidadão escravos, índios e mulheres. Adotou-se a eleição indireta.

As elites políticas dão o tom do que cabe e do descabido na nova nação sob os auspícios da violência extremada, do comando de vida e morte de uns sobre os corpos de Outros, com distorções outras e variadas, que o tempo futuro se encarregará ou não de também ecoar, reproduzir-se,

seja como for, o que José Bonifácio silencia será, no entanto dito em alto e bom som pelos antiescravistas das décadas de 1830 e 1840: a homogeneidade necessária à existência da nação passava pela exclusão dos negros. Uma nação de livres sim, mas de livres brancos (CUNHA, C., 2012, p. 109).

A linguagem das teorizações verticais, fabulações, reflexões, interpretações ou anseios sobre as realidades sociais, à moto de dogmas, pode bem valer-se da ocasião, da tradição, do conveniente, enxergar ou cegar sobre o outro, a outra, as heterogeneidades do real específico, do social,

de modo significativo, a questão continua a ser tratada em duas linguagens que se querem paralelas, mas que costumam se fundir: uma “política”, a outra “natural”, em parte talvez porque o político se pensava fundado na natureza. A nação fisicamente homogênea era o sustentáculo e a precondição da nação civilmente homogênea. Ora, essa nação almejada, necessariamente homogênea, poderia ser formada a partir de grupos sociais historicamente antagônicos e naturalmente heterogêneos? “Convirá”, escreve Burlamaqui, “que fique no paiz huma tão grande população de libertos, de raça absolutamente diversa da que a dominou? Poderá prosperar e mesmo existir huma Nação, composta de raças estranhas e que de nenhuma sorte podem ter ligação? ( CUNHA, C., 2012, p. 109).

Essa percepção da autora alumia sombras discursivas presentes na educação nacional, como é o caso do discurso sobre o “indianismo” na literatura pátria, visto, por exemplo, na obra do autor escravocrata José de Alencar, muitas vezes incensado acriticamente nos meios escolares, cuja senha para uma leitura e interpretação crítica é justamente seu elo com um projeto nacional de homogeneização:

é de amplo conhecimento que a pretensão a uma continuidade genealógica com os indígenas foi o mecanismo simbólico de maior força nos anos que se seguiram à independência. O índio passou a representar o Brasil como um todo e a população brasileira passou a enfatizar raízes – sobretudo imaginárias – indígenas. Nas caricaturas da primeira metade do século XIX, nos monumentos públicos celebrando a Independência, era o índio que simbolizava a nova nação (CUNHA, C., 2012, p. 107).

O negro, a negra, o indígena, a indígena, a mulher, como se vê, inscrevem-se na história brasileira como o outro, a outra, social, real, ocupando espaço na língua e ecoando nos textos, no tempo. Suas presenças nos discursos problematizam a

22 homogeneização e abrem alas para a heterogeneidade presente nas matrizes discursivas sobre as relações raciais no Brasil, relações de gênero, relações sociais, desde seu nascimento enquanto nação. Esse “fato linguístico” visto logo acima, esse “equívoco” desnudado por Manuela Carneiro da Cunha, mostra-se como “fato estrutural implicado pela ordem do simbólico”, onde o discurso “envolvente” sobre os índios fincava-se na necessidade da posse de todo o território brasileiro após a Independência, daí ser útil uma “genealogia” direta com os primeiros donos das terras brasileiras, ainda que como “caricatura”, para a legitimidade do poder em curso sobre um vastíssimo território, do Oiapoque ao Chuí.

Em Memórias Póstumas de Bras Cubas, por exemplo, ocorre um “jogo com o outro” no discurso, que opera no espaço do social, do “semidesvelado”, do “sugerido”.

A publicação é feita num jornal carioca nos anos 1860, que era o suporte do folhetim, do romance que toma corpo aos pedaços como instituição discursiva no Brasil.

Se tomado como registro de uma crônica de costumes, serve para revelar os discursos e as práticas sociais que dominam o cotidiano e marcam os corpos, impregnando-os. Ainda, é carregado adiante pelas memórias coletivas de leitores.

No capítulo curto “O menino é o pai do homem” esse jogo aparece,

Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, a guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, - algumas vezes gemendo, - mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um – “ai, nhonhô!” – ao que eu retorquia: - “Cala a boca, besta!” (ASSIS, [1881] 1997, p. 21).

Prudêncio, o moleque, era o escravizado negro, criança ainda já era o Outro, talhado para obedecer. O protagonista, o branco, o sinhozinho em formação, o menino, já era o Um, o escolhido para mandar. Prudêncio não vai para a universidade, ao passo que “Nhonhô”, vira doutor em Coimbra, moda da elite brasileira então: Uns nascem para mandar, Outros para obedecer.

Mergulho mais profundo, de curto fôlego, talvez não seja demais. Por exemplo, o discurso dos jesuítas de outrora, antes da independência do Brasil, aparenta-se como uma terrível metáfora discursiva alimentada pela Bíblia e dirigida aos africanos escravizados no Brasil. Há vários tons.

23 Pregações como a do Padre Vieira15 nos seiscentos justificam o status quo daquele tempo, comparando o sofrimento dos escravizados nas terras da cana-de-açúcar ao calvário de Jesus Cristo nas mãos dos romanos. A expectativa de vida no trabalho escravizado do engenho, “o inferno na terra”, em média, era de oito anos de vida. Depois da morte, o paraíso!

Outro tom mais alto do discurso dos jesuítas, também bebeu da Bíblia, desta feita do Antigo Testamento, como resgata o professor Andreas Hofbauer,

o jesuíta Jorge Benci (1650-1708), nascido em Rimini, dedicou um livro – Economia cristã dos senhores no governo dos escravos – à reflexão teológica sobre os fundamentos e a moralidade da sociedade escravista. Fiel à Bíblia, Benci atribui o surgimento da escravidão ao pecado de HAM: [...] visto que a servidão e cativeiro teve sua primeira origem do ludíbrio, que fez Cam, da desnudez de Noé seu pai. Sabido é que dormindo este Patriarca com menos decência descoberto, vendo Cam, e escarnecendo desta desnudez, a foi publicar logo a seus irmãos; e em castigo deste abominável atrevimento foi amaldiçoado do Pai toda a sua descendência, que no sentir de muitos é a mesma geração de pretos que nos servem; e aprovando Deus esta maldição, foi condenada à escravidão e cativeiro (HOFBAUER, 2006, p. 169).

Assim, são evidentes os alicerces históricos fincados no chão brasileiro dos discursos das relações raciais.

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