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CAPÍTULO I : Visibilidades do envelhecimento na década de 1970

I. 4 Nos anos seguintes: “idoso” só na sua Semana

Ao folhear dia a dia, ano a ano, os jornais, comecei a observar que os idosos ganhavam visibilidade maior na Semana do Idoso – até hoje comemorada na última semana do mês de setembro.

Os “velhinhos” comemoraram a Semana do Idoso, saindo das instituições, foram festejar no recém-inaugurado calçadão da Rua Felipe Schmidt, no centro de Florianópolis, que se tornou o “palco da saudade”- era o que dizia O Estado, de 24/09/1977, em manchete de primeira página.

A foto anterior estampava a primeira página do referido jornal. No interior dele, uma página inteira tratava sobre o evento promovido pelo Centro de Serviço Social do INPS junto às entidades que exerciam atividades ligadas aos idosos. Vale destacar a participação de um grupo, novo naquele momento, o “Continuação da vida”. Em entrevista, Neusa Guedes contou-me que muitos na época teriam achado graça e até acusaram as assistentes sociais e voluntárias de ridicularizarem as velhinhas, fazendo-as passar por papéis de criança. Se o calçadão virou um palco e ali todas estavam encenando, vale lembrar que “a vida imita a arte”. Dona Neusa, dizia-me, como que em tom de defesa, que se tinha sido a dança “o teatro”, era porque ao serem perguntadas sobre o que queriam escolher para se divertir, elas escolheram fazer um baile, pois era o divertimento delas quando moças. E algumas pelo menos, capricharam na produção, com colares de pérolas (tudo aqui se torna verdadeiro) e chapéu. As bolsas não tiveram onde colocar, e dançaram com elas a tiracolo. Dançavam entre elas formando pares, não importava a falta de homens. Uma multidão não dançava, mas assistia.

O “Baile do vovô” teve participação de “asiladas” – só as vovós se dispuseram a dançar, pelo que se pode perceber nas fotos. Um “vovô”, que aparece em uma das fotos,

parece alheio ao acontecimento: sério, segurando jornal, ele se abstém das comemorações. Talvez ele estivesse incomodado com a “faceirice” ou o “assanhamento” dessas mulheres, pois para o padrão geracional, não era postura esperada às “mulheres direitas”33.

Naquele ano de 1977, muitos idosos apareceram no jornal como depositários de saberes e suporte de tradições a serem resgatadas. Quando a Prefeitura Municipal quis “divulgar a arte e tradições açorianas”, o jornal O Estado, de 26 de outubro, deu visibilidade a vários idosos por conta das apresentações de “artesãos do interior da Ilha”. Em três ranchos de palha eles mostraram suas habilidades no calçadão: Dona Bernardina, 70 anos, fazia esteira de palha; Seu Duca, era oleiro da Ponta de Baixo; Seu Lila com seu filho, fabricavam tipitis e gaiolas de cana-do-reino; Dona Palmira, 90 anos, “grande atração”, entoava as “chamarritas” enquanto tecia em “seu tear bicentenário”; Seu Quidoca (meu avô) esculpia um fuso, “instrumento ultimamente muito em moda e cobiçado para decoração”; Dona Dulce, com sua filha, confeccionava rendas de bilros; Dona Laurita trançava tarrafa aos 65 anos. O “fazedor de canoas” era anônimo neste dia, mas em O Estado do dia 20 de novembro ele foi nomeado: Otávio J. dos Santos, 65 anos, conta o jornal, levou quatro dias para construir a canoa, mas “surpreendido” pelo vento sul, ele foi atacado por uma forte gripe que o levou ao hospital por três dias por sua conta, pois “não usufruiu de nenhum benefício assistencial”. Quem assinava a reportagem, Raul Caldas Filho, escreveu uma página inteira do jornal dedicada aos dois “artesãos da ilha”: Seu Tavinho e Dona Palmira. O jornalista disse:

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Flávia de Matos Motta estudou estes comportamentos relacionados a um grupo de convivência de Porto Alegre na sua pesquisa de mestrado em Antropologia Social, que resultou na publicação de: Velha é a

Otávio J. dos Santos, apesar de ser um homem de muitas habilidades e instrumentos, gosta de se denominar “carpinteiro de ribeira e linha branca”. O que significa que ele execute uma afinidade de trabalhos. Mas é como construtor de canoas que ele se realiza como artesão de mão cheia.

Seu Tavinho identificava-se como carpinteiro. Raul o classificava como artesão. Ser carpinteiro, identidade de trabalho, um fazer da vida seu próprio trabalho. Mas quando sua profissão ganhou reconhecimento público, virou arte, curiosidade, depois abandono ou esquecimento, pois até com tratamento de saúde para curar a gripe, Seu Tavinho teve que arcar.

Na foto seguinte, Seu Tavinho aparece esculpindo a canoa que levou quatro dias para ficar pronta. Muitos espectadores, entre eles os próprios “artesãos da ilha” assistiam. Pude identificar na foto, meu avô que também era um carpinteiro de “mão cheia”. Lembrei- me que na época, ele dizia que quem quisesse ver com quantos paus se faz uma canoa era para ir lá no calçadão – só agora posso entender o sentido do que ele falava, sempre muito irônico, mas eu, meio criança ainda, tinha medo das ironias dele. No calçadão, entre jovens, crianças, e idosos – só homens aparecem assistindo esta apresentação. Antes, a foto das mulheres idosas dançando, agora os homens assistindo uma atividade laborial: indicativos das identidades de gênero e classe.

Apresentados como espécimes em extinção, pessoas como Seu Tavinho ganharam destaque por suas habilidades laborais, muitas delas superadas pelas facilidades da industrialização de produtos que não mais precisavam ser manufaturados. O fato reforçava a imagem de que, apesar da idade, eles tinham contribuições a dar, seus saberes deveriam ser expostos. E quanto maior a idade, maior a atração, como revelava a presença de Dona Palmira.

No natal de 1977, Charles Chaplin “morreu de velho” aos 88 anos de idade, teria dito seu médico, o suíço Henry Perrier – e o fato foi noticiado por O Estado, de 27 de dezembro. Morrer de velho teria um sentido de viver até às últimas resistências físicas. Segundo o jornal, Chaplin viveu os últimos 25 anos de vida em sua mansão do século

XVIII, em Genebra, e nos derradeiros anos “esteve muito fraco para caminhar e ficou confinado a uma cadeira de rodas”. Bem assistido, o grande cineasta de todos os tempos teve vida longa. Morrer de velho era visto como um privilégio, especialmente na década de 1970. Não propriamente um privilégio de classe, mas principalmente naquela época, quando o sistema previdenciário ainda não atendia toda a população idosa, a mortalidade por falta de assistência médica, somada às condições precárias de vida (alimentação inadequada, ambientes insalubres, entre outros), eram fatores que contribuíam para a baixa expectativa de vida, especialmente das camadas menos favorecidas economicamente.

No Brasil de 1980, segundo dados do IBGE, entre uma população recenseada em pouco mais de 119 milhões de habitantes, apenas 593 mil chegaram ou passaram dos 80 anos de idade, apesar da estimativa, entre 1940 e 2000, ter revelado uma duplicação

numérica de indivíduos com mais de 65 anos34.

Em Governador Celso Ramos, um município do litoral catarinense, Dona Maria foi homenageada pelos seus 102 anos de idade, em página inteira de O Estado, 15/02/1977. Naquela época, ela estava aposentada há quatro anos pelo Funrural, guardava na memória episódios da Guerra do Paraguai, contados pela sua mãe, da escravidão e da moda. Netos, bisnetos e sobrinhos acompanharam a entrevista, todos a chamavam de “vó” e incitavam Dona Maria a falar quando ela parava no depoimento. Exemplos como esse, volta e meia são pinçados nos jornais: uma representação da velhice, como depositária da memória.

No mês seguinte, 13/03/1977, “a velha Juventina” figura entre os “retratos de mulher” editados em O Estado. “(...) o rosto enrugou, os filhos cresceram e tomaram seu rumo. O marido ainda pesca e ela continua fazendo renda, mas, que pena, nem tudo é tão

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fácil quanto antes. As pontas dos dedos entortaram por causa do reumatismo, as costas curvaram e a nuca dói”. As outras três mulheres citadas não foram selecionadas pelo critério de idade: uma delas era uma “colunável”; outra, uma “executiva”; e ainda outra, uma “borracheira”, que “É mulher mesmo” apesar de parecer um “funcionário sujo”.

Embora eu considere estes dois anos, 1976 e1977, bastantes significativos no que diz respeito à visibilidade e às alterações discursivas sobre a velhice no Brasil, as notícias de jornais mostram que os antigos estereótipos da velhice, como fase que devesse ser assistida - seja pela caridade religiosa, afeto familiar ou benevolência de governos - ainda permaneciam. O velho/idoso que luta pela cidadania estava despontando neste momento, em meio aos preconceitos e imagens pejorativas. Em meio a estas é possível encontrar uma imagem jovial de um idoso que poderia encontrar nova parceira através da publicidade do jornal (O Estado, 09/04/1978). A agência Charme, de Curitiba, promovia encontros conjugais. O anúncio que aparecia em dias alternados no jornal, mostrava um idoso que ao contrário de precisar descansar, apresenta disposição física, é bem aparentado e supostamente, seria um bom candidato a escolher uma companheira para um novo casamento, dando “adeus à solidão”.