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5. MOCHILAR: UMA ARTE PARA VIVER E SE CONHECER

5.1 Nos primórdios das experiências

Mochilar representa uma escolha pessoal. Não estou, com isso, desvinculando a motivação do sujeito para a prática da influência do contexto social em que ele vive, muito pelo contrário. Fato é que toda escolha carrega em si rastros de elementos que, por afinidade ou repulsa, vão aproximando ou afastando o sujeito daquilo que lhe convém. Sendo assim, passo a desvelar, através das falas dos entrevistados, possíveis elementos simbólicos e possíveis experiências pessoais que ganharam força e influenciaram os sujeitos em direção à prática da viagem de mochila.

Na análise sobre o modo como começaram a praticar a mochilagem, sobre quando havia a o te ido u p i ei o o tato o a p ti a de o hila ou ue ele e tos seriam constitutivos dos primórdios dessa prática, um elemento em comum foi

evidenciado: todos, sem exceção, remeteram-se às viagens de infância, junto aos familiares, ou na entrada da adolescência, junto a amigos companheiros de viagens.. Pode-se inferir que o contato com as viagens nascem em tenra idade, numa atividade coletiva, praticada entre pessoas que compartilham confiança [família e/ou amigos], para depois tornar-se mais individualizada com a permanência da base de confiança instaurada (GIDDENS, 2002).

Na fala dos mochileiros entrevistados essa relação da aproximação com a prática de viage s o estilo o hilei o e a e pe i ia vive iada com confiança se evidenciam nos depoimentos a seguir.

Tac:

A lembrança da minha 1ª viagem eu tinha uns quinze, dezesseis anos. Quando você começa a achar que é dono do próprio nariz, mas não é, eu lembro que esse gosto por ir para lugares inusitados, de inusitado eu chamo os lugares que não eram lugares que todo mundo ia, turístico. Então eu lembro que isso desde nova eu tinha esse interesse. Uma das primeiras viagens que eu fui de mochileira, talvez pela idade e tal, fui de mochila, barraca, esses trem todo. Foi uma viagem que eu fui para o RJ, aquele litoral Rio-SP, ali aquela região entre de Paraty, entre Trindade e Mangaratiba. Não tinha nada era deserto. Nossa eu quero ir. Eu quero ir, eu quero muito ir. Eu fui chamada por uma galera, vamos, vamos, mas como é que faz? Onde que tá esse lugar? E tinha naquela época [presume-se ue seja o fi al da d ada de ] a uela viajaç o ue Trindade era o canal, Trindade era o barato...Fui aquele litoral todo. Mangaratiba, Trindade, Ubatuba. Barraca nas costas, todo mundo estudante sem dinheiro, tinha mesada do papai. Eu lembro que meu pai não quis me dar dinheiro, eu tava começando a namorar. A gente [se referindo à família] passava férias em Setiba, e ele [o pai] disse: é então você não quer viajar com a gente, quer viajar com um monte de gente que eu não conheço. Então se vira porque eu não vou te dar dinheiro. Então eu arranjei meu primeiro emprego temporário. Fui trabalhar numa boutique de roupa, para poder juntar uma grana para viajar. Passei um mês inteiro viajando. As férias de verão. Só voltei em casa quando as férias acabaram.

Leve-leve:

A natureza sempre me chamou para perto. Desde moleque eu sempre gostei de pegar a bike e sair dando um rolé, às vezes, eu levava duas, três horas às vezes o dia inteiro. Quando adolescente sempre fui para cachoeiras com primos, amigos ou praias. Lugares sempre com natureza viva muito próxima e acho que nunca parei. Passei a acampar e com a barraca aumentou minha possibilidade de ir mais longe. Passei a sair e levar três, quatro, cinco dias para voltar.

Megabit:

Quando criança eu sempre viajava muito com minha família. A gente sempre ia à praia, saia de SP para algum lugar mais livre, mais contato com a natureza. Eu adorava, ficava muito feliz e lembro que quando a gente voltava eu vinha muito triste no carro. Eu não queria ir embora. Nunca. Eu sempre pedia para a gente ficar mais, mas não podia e eu voltava chorando.

Flash:

Comecei a viajar ainda menino, viajava com a família, era muito legal. Lembro que a primeira vez que eu saí sozinho, sem pai, mãe, eu fui com uns amigos numa cidade perto daqui [BH] porque tinha uma festa da cidade não lembro direito o mês. Sei que todo mundo mentiu para os pais dizendo que íamos ficar um na casa do outro. Então fomos. Eu tinha uns 13 anos. Lá na festa todo mundo bebeu [...]. Depois eu passei a ir conhecendo todas as cidades por perto. Ia sempre com algum amigo ou alguns, porque na hora do sufoco você divide e também eu não tinha idade nem maturidade para fazer sozinho. Comecei indo para as festas, conhecia o pessoal do local, as cachoeiras, as paisagens, as estradas. Hoje eu já conheço quase tudo em volta BH e tenho que sair do estado.

Confúcio:

As primeiras viagens fiz com meu irmão. Eu tinha uns dezessete e ele uns dezesseis anos. A gente gostava de caminhar, de liberdade de sair um pouco sem destino, então colocava uma mochila nas costas pegava um ônibus para algum destino que a gente tinha ouvido falar e ia caminhando. Na época aquele fil e Eas ide e a o i o pa a ge te, s vezes a i h va os e t e cidades pequeninas, de cidade em cidade, às vezes a gente parava em algum lugar. Isso quando não resolvíamos, o que era até mais comum, fazer travessias por matos. A gente sempre buscava aventura e natureza.

Um elemento forte evidenciado foi a perspectiva de entrar em contato com o diferente estando em companhia de pessoas, que produzem sentimento de confiança e configuram-se como elo de ligação. Essa relação com a confiança vai ao encontro da ideia de Giddde s de ue fu da e tal pa a o sujeito esta o u do e dese volve a segurança na sua dimensão ontológica. Esse auto po tua ue a o s i ia p ti a a âncora cognitiva e emocional da sensação de segurança ontológica característica de a plos seg e tos da atividade hu a a e todas as ultu as , p. . A oç o de segurança ontológica está ligada ao caráter implícito da consciência prática. As

experiências que o sujeito vive constituem organizações para o enfrentamento da vida cotidiana.

Os experimentos são características elementares da existência humana (Garfinkel, 1963). A partir desse pensamento, esse autor formula que para toda pergunta, todo questionamento, todo impasse, a resposta dada pelo sujeito em primeira instância será uma representação do conhecimento construído e sustentado pelas convenções sociais. Mas ele adverte que essa resposta não possui uma base segura para o sujeito, pois o caos que espreita do outro lado das convenções cotidianas ordinárias coloca o sujeito diante da ansiedade que é estar no mundo, já que evidencia que, para além do convencional, é preciso expressar o singular. Como sinaliza Giddens (2001, p.41):

A consciência prática, junto com as rotinas diárias reproduzidas por ela, ajudam a por entre parênteses essas ansiedades não só, nem mesmo principalmente, por causa da estabilidade que implicam, mas por seu papel constitutivo na organização de um ambiente de faz-de- o ta e elaç o às questões existenciais. Oferecem orientação que, ao nível da p ti a, espo de s pe gu tas ue pode ia se feitas so e os efe e iais da existência. É de grande importância para a análise que se segue que os aspectos que fu da e ta estas espostas seja e o io ais e o ape as og itivos. At ue po to dife e tes situaç es ultu ais pe ite ue se al a e u a f a oe ia da vida cotidiana pela provisão de interpretações simbólicas das questões existenciais.

Diante dessa ponderação de Giddens, compreendo que a capacidade de responder ao mundo, no exercício da singularidade do sujeito, está permeada pela constituição de sig ifi ados so iais e o o p o eti e to e o io al dese pe hado, o ual o fia ça, esperança e coragem são relevantes pa a este o p o eti e to i de , p. .

Passar por situações inesperadas, nas quais o tempo e o espaço estão deslocados, aspecto que sempre ocorre em qualquer viagem, tendo pouca idade e experienciado diferentes formas para obter resolução de sucesso, parece contribuir muito para o desenvolvimento da autoconfiança, mesmo que essa experiência tenha sido vivenciada de forma coletiva.

Portanto, segurança ontológica representa uma nomeação para a confiança no ambiente e em si mesmo, que permite que a vida seja vivida com algum prazer e tranquilidade, com uma disposição de entrega relativamente relaxada. Parece que essa é

a forma de lidar com os acontecimentos que os mochileiros estabelecem em suas viagens – vida vivida com prazer e certa tranquilidade.

Em suma, parece que o sentir-se capaz de lidar com as incertezas e de superar a ansiedade gerada pelos medos e riscos que a aventura proporciona, propiciam a esses sujeitos sentirem-se mais confiantes em tomar suas decisões, bem como uma confiança geradora de um relaxamento diante a vida. Quanto a essa relação dialógica entre risco, aventura e felicidade, aponto algumas reflexões no próximo tópico.