• Nenhum resultado encontrado

Apresento nesta seção os dois fundamentos teóricos do trabalho. O primeiro está ligado à vertente da História da Matemática e permeia todo o trabalho. Ele traz elementos que apontam para a existência de uma matemática com raízes bem plantadas na cultura desenvolvida no vale dos rios Indo-Sarasvati [cultura védica], a partir de 4000 a. C. Esta região hoje é ocupada pelos países Índia e Paquistão. Mesmo fazendo alguns apontamentos históricos nesta seção, este tema será mais detalhado no terceiro capítulo do trabalho. O segundo fundamento apoia-se na finalidade de apresentar a MV de Tirthaji reunida, em seu livro Vedic Mathematics, como uma possibilidade didática para auxiliar no processo da alfabetização matemática, por meio de estratégias para o ensino das quatro operações, que exploram as relações entre os números, o sistema de numeração e as operações, além de estimular o cálculo mental.

A MV é considerada aqui como um produto cultural, cujas raízes encontram-se na antiga cultura do povo que habitou a região do vale do Indo-Sarasvati, local onde se originou o sistema de numeração decimal e os dígitos hoje usados no mundo inteiro para escrever os números. É, portanto, dentro desse contexto que a MV de Tirthaji pode se constituir em uma estratégia de ensino, que estimula o cálculo mental e explora diferentes relações entre os números, o sistema de numeração e as operações.

Do ponto de vista teórico, este trabalho assume que: (a) não houve a invasão ariana, 19 (b) existiu o rio Sarasvati, e este secou por volta de 1500 a. C. a 1000 a. C., forçando a migração da população em várias direções, o que disseminou a cultura e, consequentemente, o saber matemático para outros povos.

Estudando a Historia da Matemática e as relações entre Matemática e cultura percebo que os povos, desde tempos longínquos desenvolveram a Matemática para resolver seus problemas de sobrevivência e solucionar questões do cotidiano, isto fica claro quando consideramos o problema de medição do tempo como um gerador da necessidade de organização de calendários. Outros fatores como: construção de moradias, templos e altares, demandaram Matemática aplicada à Arquitetura. Podemos

19 A Teoria da Invasão Ariana (TIA) aparece na maioria dos Livros de História da Matemática, usados nos cursos de Licenciatura em Matemática. Esta teoria, que teve origem nos meados do séc. XIX, afirma que a cultura védica formou-se a partir da invasão de tribos árias vindas do norte. Contudo as pesquisas e estudos do século XX colocaram em crise este paradigma. O tema será melhor abordado na página 62.

considerar ainda a medição de terras para o plantio, entre outros. Desde a antiguidade as sociedades enfrentaram problemas que ainda hoje existem,20 ligados a fenômenos naturais, como inundações, secas e a necessidade de medir o tempo, para controlar a época correta das colheitas, de ler e interpretar as efemérides para fazer previsões de fenômenos celestes, etc. Bishop (1999) comenta:

A busca de conhecimento e as explicações dos fenômenos naturais estão associadas com um desejo de predizer e sem dúvida, a capacidade de predizer é um conhecimento poderoso. [...] Saber que os planetas se comportaram de uma determinada maneira, equivale, a saber, que não se comportaram de outras maneiras: em particular, equivale a saber que não se comportaram de uma maneira imprevisível ou aleatória. Saber isso equivale a obter uma espécie de segurança dentro do nosso mundo em perpétua mudança. (BISHOP, 1999, p. 96) (tradução nossa).

Essa busca por conhecimento é uma característica marcante da cultura védica, explicitada na sua literatura, tanto que desenvolveu uma língua estruturada, o sânscrito, que permitiu a rápida evolução dessa sociedade nos mais diferentes aspectos, segundo Joseph (1996):

[...] o sânscrito, se desenvolveu o suficiente para converter-se em um meio adequado para o discurso religioso, científico e filosófico. Seu potencial para a utilização em ciência aumentou grandemente como consequência da sistematização global de sua gramática por obra de Panini, há uns 2500 anos. (JOSEPH, 1996, p. 297, tradução nossa).

O desenvolvimento de uma sociedade gera, entre outras coisas, uma demanda por controle. E para controlar as diferentes atividades, tais como: a produção de grãos, a distribuição de terras, a fabricação de artefatos − como tijolos e utensílios domésticos −, a criação de animais, era necessário um conhecimento matemático. A sociedade védica, possuindo uma língua bem estruturada experimentou grande progresso e isso se deu também pelo desenvolvimento da Matemática. Todas as sociedades e culturas que possuíram grandes centros urbanos apresentam uma Matemática desenvolvida, uma vez que o conhecimento matemático permitia fazer previsões, e isso é muito importante, pois partindo do desconhecido e chegando ao conhecido gera, segundo Bishop (1996), um sentimento de progresso:

Aqui nos encontramos com os sentimentos de crescimento, de desenvolvimento, progresso e de mudança, e o primeiro aspecto importante deste valor é que do desconhecido se pode chegar ao conhecido. As matemáticas se desenvolveram porque mostraram seu valor. (BISHOP, 1999, p. 99). (tradução nossa).

20

A ideia, presente em alguns livros de História da Matemática como Boyer (1985), Smith (1958), Katz (1998). de que a Matemática da Índia antiga se desenvolveu apenas a partir da religiosidade devem levar em conta também: (i) a língua bem estruturada − como um fator que contribuiu grandemente; (ii) a tecnologia da cerâmica utilizada na fabricação de tijolos cozidos em fornos, com proporções matemáticas definidas; (iii) o fato do comércio desenvolvido requerer dos habitantes das cidades habilidades de medir e realizar cálculos aritméticos; (iv) a necessidade de medir o tempo para colheitas plantios, além do mais uma agricultura próspera demandava matemática para a agrimensura, empregada na medição de terras e controle da produção. Tudo isso, além, claro, da religiosidade com os altares de formas geométricas rigorosas e bem definidas, contribuíam para o desenvolvimento da Matemática e também para um progresso cultural, social e econômico.

Portanto, a civilização do Indo-Sarasvati, a qual teve no auge de seu desenvolvimento − por volta de 1800 a. C. − um rápido crescimento de sua população urbana, passou por necessidades como construção de mais e melhores casas, templos e altares para as práticas religiosas; aumento da produção agrícola – que demandou controle, medição do tempo. As escavações dos sítios arqueológicos trouxeram artefatos que comprovam esse período (ASHFAQUE & SHAIK, 1981). Esse tema, no entanto, será mais detalhado no capítulo três deste trabalho.

A demanda de uso da Matemática, na religião da cultura védica, fica evidente nos Sulbasutras21 (códigos da corda), eles trazem instruções matemáticas para a construção de altares particulares para o culto doméstico e outros para o culto comunitário. Eles são, na verdade, medidas e regras para os construtores de altares. Portanto, Matemática aplicada a uma prática social. Nesse aspecto, concordo com Joseph (1996), que afirma:

As instruções dadas nos Sulbasutras foram principalmente em beneficio dos artesãos que desenharam e construíram altares. Exagerar na ênfase das razões religiosas e rituais do desenho e construção dos altares, a despeito de seus aspectos tecnológicos, é diminuir o papel dos artesãos na sociedade da antiga Índia. (JOSEPH, 1996, p. 309, tradução nossa).

O rigor na forma e posição dos altares exigiam o desenvolvimento de uma geometria precisa, a contagem dos tijolos, a necessidade de cálculos para determinar os tamanhos, corroboram com a ideia de uma Matemática desenvolvida. Portanto esta pode

21

ser uma das raízes da aritmética védica, isto concorre também para explicar porque a Matemática desenvolveu-se na cultura védica. Outro exemplo do desenvolvimento da Matemática na civilização védica pode ser encontrado nos Sulbasutras de três capítulos escrito por Baudhayana [cerca de 800 a. C.] nele entre outras coisas o teorema de Pitágoras já aparece. Segundo Joseph (1996), ele também traz:

Um procedimento de aproximação para se obter a raiz quadrada de dois correta até a quinta casa decimal, e diversas construções geométricas, entre elas algumas para ‘quadrar o circulo’ (aproximadamente) e construir formas retilíneas cujas áreas são iguais à soma ou diferença de outras formas (JOSEPH, 1996, p. 311, tradução nossa).

A necessidade de precisão e rigor para as construções são, portanto, um dos motivadores para o desenvolvimento da Matemática. Esta necessidade também é verificada em outras frentes como, por exemplo, na Gramática, que exigia o cuidado na recitação dos mantras [versos], afim de que estes surtissem o efeito desejado, para isso eles obedeciam a regras rígidas. Portanto, a estruturação da língua teve forte influência no desenvolvimento da cultura como um todo e especialmente da Matemática, que tem na Álgebra um reflexo dessa evolução, segundo Joseph (1996, p. 301): “Efetivamente, se pode inclusive sustentar que o caráter algébrico das matemáticas da antiga Índia é simplesmente um subproduto da tradição linguística bem estabelecida de representar os números mediante palavras”. Um exemplo do uso do alfabeto sânscrito para representar números pode ser encontrado na página 45 desta seção.

Considerando, então, a relação entre Matemática e cultura presente na civilização védica desde seus primórdios, penso que uma proposta de possibilidades e estratégias para auxiliar na alfabetização matemática, baseada na MV, é digna de apreciação e, porque não, de uso.

Tendo em vista as dificuldades e o desinteresse pelo estudo da Matemática, na Educação Básica, cujo desfecho culmina com a exclusão de muitos e faz crescer o número de analfabetos funcionais, classifico este trabalho como uma busca por alternativas facilitadoras do ensino e da aprendizagem, dentro da perspectiva de desenvolvimento de habilidades e competências previstas nas orientações didáticas dos documentos oficiais como nos PCN para o ensino de Matemática nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Deixo claro, aqui, que este estudo não está em busca de um método milagroso para o ensino da Matemática, tampouco de um cânone universal que se aplique em todas as situações. Afirmo que a busca está focada em alternativas que

facilitem o trabalho do professor e permitam aos estudantes o desenvolvimento de habilidades e competências como estimar, comparar, fazer exatos e aproximados, mentais e escritos, mas também que eles possam enxergar a Matemática por outra lente; que possam vê-la além do cálculo, como uma ciência da explicação, que contribuiu e contribui grandemente para a melhoria da condição humana na Terra.