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O fim da teoria da Invasão Ariana

A importância de abordar, ainda que sucintamente, este tema está ligada ao fato de que esta teoria, surgida nos fins do século XIX na Europa e utilizada para datar a civilização indiana pré-clássica, não se sustenta mais. A relação desta teoria com a MV e a História da Matemática é a afirmação acerca de invasores arianos vindos do Norte,

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Região ao nordeste da Índia considerada a porta do Himalaia, pois lá estão localizados os três maiores picos dessa cordilheira, limita-se ao norte com o Tibet, lá nascem dois dos rios sagrados da Índia: o Ganges e o Yamuna.

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que invadiram a região atualmente ocupada pela Índia e Paquistão e impuseram sua cultura. Isto é uma questão fundamental, pois admitir a invasão ariana implica aceitar que a MV não teria então uma raiz no subcontinente indiano. Esta teoria, hoje totalmente superada e em descrédito, face ao avanço das pesquisas, foi uma das responsáveis por contribuir com uma visão eurocêntrica do desenvolvimento da Matemática. Tal foi sua influência, que ainda hoje a historiografia, com forte ranço eurocêntrico, não corrigiu totalmente seus escritos, apesar dos resultados de inúmeras pesquisas e publicações gritarem em outra direção. Contudo, sabemos que um paradigma52 não se muda da noite para o dia. O objetivo deste trabalho não é caminhar no rumo de um aprofundamento minucioso das questões históricas, mas a forte presença dessa teoria nos livros de história da Matemática, adotados nos cursos de Licenciatura de algumas universidades, convida a discorrer sobre o tema.

O livro História da Matemática, de Carl Benjamim Boyer, publicado na década de 1960 e adotado como livro texto em vários cursos de Licenciatura em Matemática, traz a seguinte referência sobre a Matemática da Índia antiga: “[...] o país [que] foi ocupado por invasores arianos que introduziram o sistema de castas e desenvolveram a literatura sânscrita” (BOYER, 1974, p. 150). Fica claro o vínculo com a Teoria da Invasão Ariana [TIA]. Outro autor, D. E. Smith, refere-se ao tema da seguinte forma: “The earliest Indian civilization for which there is such evidence was formed along the Ganges river by Aryan tribes migrating from the Asian steppes late in the second millennium B.C.E.” (SMITH, 1998, p.4). O autor menciona que tribos arianas, vindas das estepes asiáticas, estabeleceram-se nas margens do rio Ganges no terceiro milênio antes de Cristo, isso é uma das variantes da TIA.

Um relevante trabalho de História da Matemática na Índia Antiga, de autoria de Kim Plofker, já traz indicações da mudança de paradigma, quando diz que é “padrão” adotar a teoria da Invasão Ariana. O texto é o seguinte:

This, the standard account of the origin and growth of Vedic India, is sometimes referred to as the Aryan invasion theory (AIT). However, most modern Indologists prefer other terms such as “immigration” or “influx” to “invasion”, which connotes earlier assumptions, now discarded large-scale military conquest in the Punjab (PLOFKER, 2009, p. 6).

Isto, conta o padrão da origem e do crescimento da Índia védica, é muitas vezes referido como a teoria da invasão ariana (TIA). No entanto, indologistas mais modernos preferem outros termos como

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"imigração" ou "fluxo" a "invasão", que conota pressupostos anteriores, agora descartados, de conquistas militares em grande escala no Punjab (tradução nossa).

Verificamos também a referência aos “modernos” indologistas que preferem assumir outros termos, como imigração, fluxo, ao invés de invasão, pois atualmente diversos pressupostos “descartam” grandes conquistas militares na região do Punjab. Destaco entre eles o resultado das escavações, que até o momento não exumou grande quantidade de armas, artefatos de guerra ou indicações de batalhas, e os relatos dos textos sagrados, que não fazem menção a lutas ou invasões estrangeiras. Ora, as bases da TIA ou AIT [em inglês], proposta por Max Muller nos meados do século XIX, nunca foram respaldadas quer seja pelas provas linguísticas-filológicas, quer seja pelos escritos dos próprios textos sagrados como Rig-veda, quer pelas provas paleontológicas levantadas nas pesquisas arqueológicas dos sítios remanescentes. Segundo Knapp (2010), a TIA estava muito mais fundada numa relação de poder colonial, que segundo ele, objetivava construir um discurso no qual os arianos invasores no passado haviam imposto sua cultura, e portanto “justificava” a ocupação colonial inglesa. O pesquisador Dr. Deen Chandora, em seu artigo intitulado Distorted Historical events and discredited Hindu chronology, afirma que foi elaborada uma conspiração para distribuir desinformação, ocorrida em Londres em 10 de abril de 1866, na Royal Ásia Socity.

A TIA começa a perder crédito e aos poucos vai sendo parcialmente abandonada, conforme já mostrado no notável trabalho de Plofker na área de História da Matemática. O livro de Plofker, inicialmente publicado em 1963, sob o selo da Princeton Univertsity Press, constitui-se, sem dúvida, em um trabalho de referência, que reuniu e condensou grande parte da MV contida na Kalpa-sūtra, já dentro de uma nova perspectiva, contemplando as descobertas arqueológicas de então. É importante lembrar que o matemático David Munfold [vencedor da Medalha Field 1974]53 escreveu um ensaio de seis páginas sobre o livro de Plofker, no qual concorda com a ideia de que a origem da matemática indiana não está na Grécia. Ele diz não haver evidências de que a Matemática Grega tenha logo cedo chegado à Índia, como afirmam alguns historiadores tradicionais. Essa afirmação vai na direção das pesquisas que apontam a civilização do Indo-Sarasvati como um local onde cedo se desenvolveu uma Matemática própria. Contudo, mesmo diante da grandeza do trabalho de Plofker, fica

53 Prêmio quadrienal atribuído pela União Matemática Internacional (IMV), concedida a, no máximo, quatro matemáticos por vez.

claro ainda o vínculo com a historiografia tradicional dos historiadores, indologistas e filologistas do indo-europeu que, segundo Calazans:

Adotaram três postulados falaciosos (evidência linguística, teoria ariana invasionista e cronologia bíblica), a partir dos quais determinam com imprecisão positivista alguns estudos indológicos e a cronologia da história da Índia pré-clássica (CALAZANS, 2006, p. 227).

Calazans afirma que um erro metodológico do século XIX foi, portanto, a geratriz da teoria da invasão ariana. Em oposição a este equívoco, os textos sagrados fornecem narrativas que permitem identificar com clareza o período astronômico correspondente à sua compilação. O fato dos historiadores e indologistas tradicionais do indo-europeu (ou indo-ariano) terem excluído de suas análises esse ponto fundamental é que Calazans chama a atenção:

O resultado desta errada atitude metodológica no trabalho de investigação científica em História, levou aqueles investigadores a excluírem alguns dos elementos mais importantes de todo o processo evolutivo do pensamento pré-clássico indiano. A Astronomia e a necessidade de cálculo matemático foram justamente dois desses elementos, utilizados para resolver os problemas básicos da sobrevivência das populações ligados à construção do espaço urbano, religioso e astronômico (CALAZANS, 2006, p. 227).

O autor ainda observa que, ao não utilizarem a Matemática e a Astronomia como instrumentos de auxílio à investigação histórica, eles reduziram a pesquisa a uma leitura deficiente dos textos védicos. Esse erro o autor mostra ter sido corrigido:

A última grande contribuição científica para correção deste erro metodológico no trabalho cientifico em História, foi sem dúvida a investigação realizada pelo grande historiador da ciência A. Seindenberg (1962-1978). Não é a primeira vez, nem será a última, que as ciências como a Matemática, a Física e a Astronomia concorrem para a correção de desvios na metodologia de trabalho em outras ciências auxiliares (CALAZANS, 2006, p. 229-230).

Apesar das inúmeras pesquisas e publicações corrigirem a cronologia adotada para datar as civilizações do Oriente, sabe-se que um paradigma não se muda da noite para o dia. Porém, no caso particular da civilização védica, os textos sagrados fornecem narrativas que permitem identificar com clareza o período astronômico correspondente à sua compilação ─ quando o sábio Srila Vyasadeva compilou os vedas, o equinócio vernal do Hemisfério Norte se encontrava na constelação de Orion, isso foi registrado pelo autor no texto. Com o cálculo regresso e programas de computador, pesquisadores do Birla Science Museum de Delhi encontraram a data de 3102 a.C.; além disso, os hinos do Rig-Veda já eram cantados por gerações antes de sua compilação.

Também os relatórios das escavações encontraram evidências que cidades da civilização do vale do Indo-Sarasvati, como Mohenjo-daro, Harappa e Lothal, já se constituíam em centros comerciais desenvolvidos da época.54 Ora, a existência de cidades com comércio e arquitetura desenvolvidos, conforme revelam as escavações, haveria com certeza de possibilitar um sistema matemático que atendesse as necessidades cotidianas de seus habitantes.

Tais pesquisas revelaram artefatos de medição e pesagem, principalmente pesos com formas geométricas bem definidas, além de selos de cerâmica utilizados para marcar as mercadorias que eram vendidas, como forma de controlar a cobrança de impostos – tudo isso revela a existência de conhecimento matemático aplicado às práticas sociais. Esses mesmos selos foram também encontrados em civilizações da Mesopotâmia, o que confirma a ideia de que havia um contato comercial. Contudo, naquela época não havia registros arqueológicos de cidades com estrutura urbana desenvolvidas no vale da Mesopotâmia ao mesmo nível das cidades do vale do Indo- Sarasvati, o que leva a crer que há uma forte tendência de que o conhecimento matemático dessa civilização, que era bem mais desenvolvido, tenha influenciado a Mesopotâmia e as demais regiões com as quais se tinha relações de comércio, uma vez que, para a realização de transações comerciais, a Matemática é imprescindível.

Os apontamentos históricos presentes neste estudo poderão auxiliar os professores no melhor entendimento da história da Matemática, principalmente no que tange a seus primórdios. Penso que os professores do Ensino Fundamental, que ensinam o sistema de numeração, ao conhecerem melhor a história do seu surgimento e desenvolvimento, poderão com certeza entender melhor o desenvolvimento da Matemática fora do foco eurocêntrico, permitindo novas interpretações e aceitando as contribuições de outros povos, fortalecendo a ideia da matemática como um produto da cultura humana, proveniente de contribuições dos mais diferentes grupos culturais. O grau de contribuição maior ou menor de cada cultura a meu ver não é relevante.

No próximo capítulo, tratarei do livro Vedic Mathematics, mais especificamente dos Sūtras, que abordam as quatro operações, iniciarei o texto com uma breve nota acerca da vida de Tirthaji, autor do livro.

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4 As quatro operações a partir do livro Matemática Védica

Neste capítulo, apresento as quatro operações com o uso dos Sūtras de MV, apresentados por Tirthaji em seu livro Vedic Mathematics. A título informativo trago inicialmente uma breve nota sobre o livro e a vida do autor, esta nota trata-se de uma síntese das informações apresentadas no capítulo intitulado My beloved gurudeva, contido nos pré-textuais do livro Védic Mathemátic.

O livro Vedic Mathematics, publicado em 1965, cinco anos após a morte de seu autor, Bharati Krsna Tirthaji, apresenta a MV na forma de dezesseis Sūtras (aforismos) e treze Subsūtras (corolários). Segundo o autor, esses Sūtras cobrem diversos ramos da Matemática, incluindo Aritmética, Álgebra, Geometria, Trigonometria, Cálculo diferencial e integral (TIRTHAJI 2009, p. xxxv). A publicação do livro tornou-se possível por meio dos esforços de professores, amigos e admiradores de Tirthaji. Os manuscritos, que estavam guardados pela discípula e esposa do falecido secretário de Tirthaji, foram cedidos para o editor geral, Dr. V.S. Agrawala da Banaras Hindu University (BHU), que encaminhou-os à editora da BHU para revisão e impressão do livro. Portanto, sua primeira edição é na língua inglesa, em 1965, na cidade de Varanasi, Índia. Após esse período, ocorreram várias reimpressões ao longo das décadas de 1970, 1980 , 1990 e 2000. O exemplar utilizado neste estudo se constitui em uma reimpressão da edição revisada de 1992 em Delhi, realizada pela Motilial Banarsidass.

Figura 7 − A capa do livro de Tirthaji Vedic Mathematics Exemplar da edição revisada de 1992, importado da Índia para este estudo.

Figura 8 − A folha de rosto e, no anverso, uma foto de Tirthaji

Fonte: Arquivo do autor.