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PARTE I Crenças Dogmáticas do Imaginário Humanista Contemporâneo: a Pessoa

1. A PESSOA HUMANA E A SUA DIGNIDADE IMANENTE

1.3. Notas conclusivas

Do exposto no capítulo, podem ser catalogadas, sinteticamente, as seguintes conclusões parciais, distribuídas, por razões didáticas, de acordo com a seção pertinente:

A pessoa humana

Um ponto de partida necessário.

1. Desde a Segunda Guerra Mundial, vivencia-se um complexo processo de transformação e intensificação das relações internacionais, que se associa, em certa medida, ao fenômeno da globalização econômica;

do modo e forma da unidade política de um Estado] válida apenas por força do poder constituinte‖ (CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional. 10. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 194). 359 SARLET, op. cit., 2009a, p. 67.

2. A diversidade cultural é um dos traços mais complexos da plural realidade do mundo pós-moderno, o que não significa, contudo, que não possam ser estabelecidos diálogos interculturais entre os povos, sobretudo, quando envolvam aspirações comuns compartilhadas entre as nações;

3. Para além da globalização econômica e em meio ao imaginário culturalmente diversificado da humanidade, vem-se consolidando um resoluto consenso, de prospecto universalista, em torno da crença dogmática na ideia de dignidade da pessoa humana e nos direitos humanos (―internacionalização dos direitos humanos‖);

4. Assimilada na agenda institucional de muitos Estados e organizações internacionais, a ideia de dignidade da pessoa humana, bem como a dogmática dos direitos humanos, vêm impactando os alicerces paradigmáticos da cultura jurídica contemporânea, desvencilhando-a de dogmas clássicos;

5. De forma pioneira na história constitucional brasileira, a Constituição de 1988 consagrou, logo em seu primeiro artigo, a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil, bem como, no art. 4º, II, o princípio da prevalência dos direitos humanos no rol dos imperativos que regem o Estado brasileiro em suas relações internacionais;

6. Apesar de ter conferido especial preeminência axiológica à dignidade da pessoa humana na escala de valores constitucionais, a Constituição não a conceituou e não especificou o alcance dessa ideia-força;

7. A análise do conteúdo da expressão ―pessoa humana‖ figura como um necessário ponto de partida para a pré-compreensão da dogmática dos direitos humanos e para o reconhecimento do sentido das normas constitucionais definidoras de direitos fundamentais; A formulação histórico-conceitual da moderna concepção de pessoa humana.

8. Apesar de aparentemente redundante, a expressão ―pessoa humana‖ tem emprego legítimo no léxico jurídico, visto que o termo ―pessoa‖ comporta significados que nem sempre se reportam diretamente ao ser humano em si, em sua humanidade pura e simples;

9. Na história da humanidade, o vocábulo ―pessoa‖ nem sempre foi empregado para designar o ser humano e, mesmo quando evoluiu e passou a se referir ao homem, nem sempre foi adotado numa escala semântica que o contemplasse em sua totalidade material e

espiritual, bem como alcançasse, de modo universal e sem discriminações, todo e qualquer ser humano pelo só fato de sua humanidade inerente;

10. O levantamento da trajetória diacrônica do termo ―pessoa‖, desde as suas origens greco-romanas até a formulação da ideia moderna de pessoa humana, retrata, no fundo, a saga histórica do homem na construção de sentidos para a sua vida individual e coletiva;

11. A concepção de pessoa baseada na afirmação dogmática da igualdade fundamental de todo e qualquer ser humano no tocante à sua inderrogável humanidade constitui uma aquisição civilizatória bem recente da história do pensamento ocidental. Só na modernidade é que se forjou, no arranjo das crenças ocidentais, uma representação antropológica universal e laicizada, com abstração de quaisquer diferenciações biológicas, culturais ou nacionais e de quaisquer evocações cósmicas ou teológicas. A noção moderna radica numa concepção simbólica de pessoa que envolvesse todo e qualquer ser humano, reconhecido, por sua humanidade imanente, como digno de igual respeito e como referencial de sentido ético e político da vida humana neste plano existencial;

12. Na medida em que se evoluiu na direção do reconhecimento do valor humano, instituições jurídicas visando a assegurar o respeito, a proteção e a promoção dos homens em face de situações aviltantes de sua dignidade imanente foram sendo também progressivamente criadas e aperfeiçoadas;

13. Ao longo da história, o direito foi manipulado, em várias sociedades, como técnica instrumental e utilitária de subjugação de homens por seus semelhantes, em razão do que nem sempre os seres humanos foram reconhecidos pelas respectivas ordens jurídicas vigorantes como pessoas; muitos figuravam juridicamente como autênticas coisas, sendo completamente alijados de quaisquer faculdades jurídicas, inclusive no que se refere aos direitos mais básicos;

14. No sentido técnico-jurídico civilista, originado no direito romano, o vocábulo ―pessoa‖ não se refere diretamente ao ser humano em si, enquanto ser vivente composto de corpo e alma, ainda que empregado na perspectiva atinente à subcategoria específica rotulada pelas expressões sinônimas ―pessoa natural‖ e ―pessoa física‖. Nessa acepção, diz respeito ao homem individual e concretamente considerado como sujeito de direito, não por força de sua humanidade e dignidade inerentes, mas por interposição heterônoma da ordem jurídica;

15. Com esteio no dogma da imago Dei, o humanismo cristão e escolástico logrou sacralizar, no imaginário religioso ocidental, um conceito universal de pessoa, alusivo, sem discriminações, a todo e qualquer ser humano em sua individualidade subjetiva e em sua totalidade material e espiritual;

16. No pensamento cristão, a dignidade particular do homem procede não de si mesmo, mas de seu Criador, a ser exercida em comunhão com todos os outros, na perspectiva da vontade de Deus. A pessoa não figura como fim em si mesma; a finalidade existencial do homem, o seu valor, direção e destino, repousariam em Deus, já que tudo teria sido criado por meio Dele e para Ele;

17. A concepção escolástica é a referência conceptual que serviu de antecedente mais próximo da noção contemporânea de pessoa humana, decorrente, no fundo, da laicização da concepção cristã operada na modernidade;

18. A concepção antropológica laicizada da pessoa humana não resulta de uma demonstração científica empiricamente verificável, mas de uma crença dogmática destinada a conferir certo sentido à condição humana dentro de um novo contexto existencial;

19. No paradigma conceptual atual, a simples humanidade imanente a qualquer ser humano passara a figurar como condição necessária e suficiente para a sua afirmação enquanto pessoa;

20. Além da universalidade, a noção de pessoa humana envolve a crença dogmática de que não é o Estado, a Constituição ou o Direito que criam ou conferem existência institucional ao ser humano, que se consubstancia per se primo e lhes serve de razão de ser, de fundamento existencial;

21. Não se legitima o Estado ao aviltar a condição humana, ainda que sob o pretexto de colimar garantir a ―ordem e o progresso‖ e a ―segurança nacional‖;

22. Conquanto a história constitucional brasileira já esteja em curso há cerca de dois séculos, só com o advento da Constituição de 1988 é que o conceito de pessoa humana foi efetivamente introduzido no direito constitucional positivo nacional;

A dignidade da pessoa humana

23. A noção de dignidade imanente do homem vem-se consolidando como fundamento último da ética pública laica, política e jurídica, da civilização ocidental. Em seu horizonte material, envolve inúmeras injunções prescritivas no sentido de se prover condições existenciais básicas de nascimento, vida e, para alguns, até de morte dignas para todos os homens, no que se põe em relevo a sua genética conexão com os direitos humanos;

24. A compreensão dos desdobramentos prescritivos da dignidade da pessoa humana em sua dimensão jurídico-normativa demanda prévia análise de sua evolução histórico-conceitual;

Evolução histórica do conceito de dignidade da pessoa humana.

25. Na tradição ocidental, o conceito de dignidade pessoal de todo ser humano deita raízes remotas nos dois pilares espirituais da civilização atlântica: o ideário judaico- cristão e a cultura greco-romana clássica, mais especificamente o estoicismo;

26. Tal como se deu com o conceito de pessoa humana, a concepção judaico- cristã serviu como pressuposto espiritual para a noção ocidental moderna de dignidade da pessoa humana, que foi secularizada durante a modernidade, mormente na empresa iluminista levada a efeito pela filosofia prática kantiana. Sua atual associação direta com a ideologia dos direitos humanos é, contudo, relativamente recente, passando a ser realizada com mais vigor somente depois da Segunda Guerra Mundial;

27. Com a laicização da noção de dignidade, concebeu-se a crença dogmática de que o valor humano reside, por completo, em si por si mesmo, tratando-se, portanto, de um substrato axiológico próprio, e não derivado;

28. Mesmo com a secularização e a consagração da autonomia axiológica do ser humano, preservou-se a crença dogmática, introduzida pelo pensamento estoico e judaico- cristão, no reconhecimento universal do homem pelo homem como absolutamente igual em dignidade;

29. Foi na filosofia iluminista de Kant, fundada no postulado da autofinalidade humana, que o processo de secularização da noção de dignidade consolidou-se de vez por todas, abandonando definitivamente, no âmbito filosófico, quaisquer vestes sacrais. Desde então, passou-se a conceber que as pessoas devem sempre ser consideradas como fins em si mesmas, e não como simples meios para a consecução utilitária ou hedonista de fins próprios

ou alheios; repudiando-se, assim, toda espécie de instrumentalização ou coisificação que inflija qualquer ultraje, aviltamento ou amesquinhamento da condição humana;

30. Em sua conformação atual, a ideia de dignidade da pessoa humana envolve a exigência de reconhecimento como pessoa, e não como coisa, de todo e qualquer ser humano, em razão de sua simples condição humana. Dela dessume, ademais, que o homem faz jus, sempre, ao ―direito de ser sujeito de direito‖, ou, conforme expressão de Hannah Arendt, ao ―direito de ter direitos‖ (―right to have rights‖), o que designa de ―cidadania‖ (citizenship). Não é concebível, sob esse paradigma de compreensão, a existência de seres humanos destituídos ou privados de um mínimo de direitos dignificantes, concebidos como inerentes à condição humana. Demais disso, a concepção de dignidade é codefinida pela crença dogmática de que radica em cada ser humano, em si e por si, pelo só atributo de sua humanidade, um valor imanente, constante, infungível, indissociável, inalienável e irrenunciável, independente de qualquer merecimento pessoal ou social (princípio do valor intrínseco);

31. A dignidade desdobra-se numa série de exigências ético-políticas de respeito, proteção e promoção da pessoa humana, por si mesma e pelos outros, a partir da satisfação de suas necessidades existenciais essenciais. Para tanto, colocam-se a serviço, principalmente, os direitos humanos, em suas múltiplas dimensões. Para além da previsão genérica do ―direito de ter direitos‖ (―right to have rights‖), decorrente da afirmação elementar do homem como pessoa, a ideia de dignidade da pessoa humana vai além; abrange um autêntico ―direito de ter direitos humanos‖ (―right to have human rights‖), concebidos estes, materialmente, como direitos básicos inerentes à pessoa humana pelo só fato de sua humanidade;

A Segunda Guerra Mundial e o fenômeno da institucionalização jurídica do princípio da dignidade da pessoa humana

32. O século XX marcou-se pelo vertiginoso progresso material e por notáveis benefícios experimentados pela humanidade com suporte nas revolucionárias conquistas operadas nos campos da ciência e da tecnologia. Nele, viveu-se, contudo, uma genuína ―era de extremos‖ em matéria de violação de direitos humanos, ao ponto de imergir a sociedade global numa grave e inquietante crise moral em torno dos supostos ético da civilização humana nos tempos hodiernos e das perspectivas do porvir para a humanidade;

33. Em pleno esplendor do racionalismo cientificista da modernidade, emergiram ideologias políticas totalitárias, matizadas pela sistemática negação dos direitos humanos mais

básicos, num inequívoco desapreço pelo valor da vida humana (―superfluidade do homem‖; ―descartabilidade da pessoa humana‖);

34. A Segunda Guerra Mundial constitui o evento cataclísmico mais trágico e desumano de toda a cronologia sinuosa da existência humana. Por suas proporções ímpares e episódios abomináveis, escandalizou profundamente a consciência global da humanidade, lançando, ademais, projeções terrificantes sobre os destinos irresolutos do homem;

35. O flagelo do Grande Conflito figurou como premissa crítica no sentido da constatação da insuficiência dos paradigmas institucionais de coexistência humana então vigorantes na civilização moderna, desvelando a necessidade de reversão emergencial dos alicerces e horizontes ético-políticos da ordem internacional e da ordem doméstica dos Estados;

36. No plano internacional, a tônica desse novo processo civilizatório passou a ser informada pelo princípio da cooperação internacional, que orienta no sentido da construção multilateral de pautas de consenso ético-político e na coalização de forças entre os Estados com o fito de equacionarem conjunta e coordenadamente interesses, de forma harmoniosa e pacífica, à luz das predicações normativas do Direito Internacional Público;

37. A dramática experiência histórica vivenciada no evolver do século XX legou à humanidade uma lição civilizatória de grande valia: a de que a dignidade da pessoa humana há de figurar como fundamento último e vetor axiológico-teleológico indeclinável e incondicional de qualquer agir humano e de todo exercício vertical ou horizontal de poder político. Vem-se fomentando, nesse contexto, um vertiginoso ciclo de reestruturação progressiva do ethos mundial e de suas instituições fundamentais, na perspectiva da dignidade da pessoa humana (e dos direitos humanos);

38. Desde a consagração textual na Carta das Nações Unidas, em 1945, e na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, o princípio da dignidade da pessoa humana vem sendo introduzido como cláusula jurídica axial nos domínios normativos globais e regionais do direito internacional, no direito comunitário europeu e em ordenamentos de diversos Estados Constitucionais, inclusive latino-americanos;

39. Promulgada no contexto crítico do último processo de abertura política e redemocratização do País, a Constituição de 1988 consagrou a dignidade da pessoa humana como fundamento da República do Brasil. Reconheceu, na esteira do legado filosófico

kantiano, que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o homem constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal; e

40. Consonante com a proclamação, no âmbito jurídico doméstico, da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado brasileiro, a nova ordem constitucional consagrou os princípios da prevalência dos direitos humanos e da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade como princípios fundamentais que hão de reger as relações da República Federativa do Brasil no plano internacional (art. 4º, II e IX).