Notas de um tempo silenciado, um conjunto de reportagens em quadrinhos

Por mais que o nome sugira que os enunciados de Notas de um tempo silenciado sejam do gênero jornalístico nota, entendemos que, na verdade, o livro traz diversas reportagens com a linguagem dos quadrinhos. Para a análise, selecionamos o capítulo 13, último do livro, intitulado “Salvadores da Pátria”84_{. A escolha da reportagem em questão se dá por três motivos:} o primeiro é sua representatividade do gênero reportagem, que será explicada a seguir; o segundo é a presença de um texto complementar no final da obra que explica os bastidores da apuração; e o terceiro é a atualidade do assunto retratado.

Segundo o texto anexo ao capítulo, a reportagem foi sugerida a Vilalba pelo jornalista José Carlos Fernandes:

[Fernandes] sugeriu que ele tentasse fazer algo semelhante ao que o diretor norte- americano Michael Moore85 _{fez em seu documentário “Tiros em Columbine”, uma}

espécie de síntese de “por que muitas pessoas apoiaram o regime autoritário” e “por que tanta gente diz preferir a ditadura ao invés da democracia?” ou ainda, quem sabe, “por que há tantas opiniões favoráveis a posturas truculentas do braço armado do Estado?”. (VILALBA, 2015, p. 100).

O texto deixa claro o tom interpretativo da reportagem: a pauta de “Salvadores da Pátria” foi reconstruir um enredo para as raízes do autoritarismo no Brasil, elencando os golpes que ocorreram ao longo da república. Construído com base em informações históricas e entrevistas com pesquisadores, como o historiador Dennison de Oliveira e o cientista social Adriano Codato, além de jornalistas como Laurentino Gomes, pode-se dizer que o enunciado tenta explicar as origens do autoritarismo no Brasil para argumentar que, quando o golpe de 1964 ocorreu, “o autoritarismo não era novidade” (VILALBA, 2015, p. 79).

Notas de um tempo silenciado, como um todo, trata da Ditadura Militar, um evento do

século passado. Normalmente, isso não seria objeto de discurso de enunciados da esfera jornalística, uma vez que o Jornalismo trabalha com a atualidade e não com a história. No entanto, o propósito do enunciado (e do gênero jornalístico reportagem), claramente, é retomar

84 _{A reportagem está localizada no intervalo de páginas 78-82 de Notas de um tempo silenciado.}

85 _{Documentarista americano que tem como marca participar de seus filmes. Vencedor do Oscar em 2003 de}

Melhor Documentário de Longa-Metragem por Tiros em Columbine e vencedor da Palma de Ouro em 2004, maior prêmio do Festival de Cannes, com Fahrenheit 9/11.

um acontecimento já trabalhado e trazer aspectos e detalhes desconhecidos ou pouco explorados: a novidade não vem do imediatismo, mas da própria apuração do jornalista.

Na reportagem de Vilalba (Figura 31), são elencados diversos momentos em que é possível identificar sinais autoritários no Brasil: o “poder moderador” garantido ao monarca pela Constituição de 1824, a ascensão do pensamento positivista na Escola Militar no século XIX, as tentativas de golpe durante o governo de Deodoro da Fonseca (1889-1891), os desmandos de Floriano Peixoto (1891-1894), a ditadura de Getúlio Vargas (1930-1945) e, finalmente, “a ameaça invisível trazia clamores por um salvador em 1964 que restabelecesse não só a ordem, mas principalmente a paz de um grupo que tinha seus interesses ameaçados” (VILALBA, 2015, p. 82).

Figura 31- Página de Notas de um tempo silenciado

Fonte: VILALBA, 2015, p. 81.

Outra marca genérica da reportagem é o tipo de acontecimento que gerou a sua publicação. Em vez de tratar de um fato ocorrido pouco tempo antes da produção do enunciado,

“Salvadores da Pátria”, como todos os enunciados de Notas de um tempo silenciado, utiliza como contexto/gancho noticioso o aniversário de 50 anos do golpe militar (como mostrado na Figura 31) para explorar um assunto ou episódio daquela época sob um ângulo preestabelecido, como explica Lage (2017a [2006]). No caso, o ângulo das reportagens que compõem a obra busca mostrar como era a vida de quem viveu sob o regime. “Salvadores da Pátria”, especificamente, como dito antes, explora a ideia de que existiram pessoas que acreditavam que os militares poderiam ser salvadores e que essa relação de obediência “estaria enraizada na cultura brasileira” (VILALBA, 2015, p. 100).

Figura 32 - Página 79 de Notas de um tempo silenciado

Estruturalmente, também vemos características do gênero reportagem. Podemos considerar que o lide da reportagem é composto pelo primeiro quadro da reportagem e as três legendas. Nele, temos o resumo do assunto que será abordado pelo enunciado: as raízes do autoritarismo brasileiro. Vale destacar que o lide de uma reportagem não é o mesmo que o encontrado em notícias. No caso do lide noticioso, além de um resumo do assunto do enunciado, costuma haver também uma síntese de informações tomadas como “mais importantes” para o autor, como datas e o acontecimento que gerou a notícia.

Figura 33 - Lide da página 79 de Notas de um tempo silenciado

Fonte: VILALBA, 2015, p. 79.

Há também os chamados tópicos-frasais, apontados por Lage (2017ª [2006]) como características estruturais do gênero. O enunciado “Salvadores da Pátria” pode, portanto, ser identificado com a seguinte sequência de tópicos:

1- Lide (“Há 50 anos, o autoritarismo não era novidade”) (p. 79); 2 - Constituição de 1824 (p. 79);

3 - Influência do Positivismo na queda do Império (p. 79-80); 4 - Primeiros anos da República (p. 80-81);

5 - Governo de Floriano Peixoto (p. 81); 6 - Governo de Getúlio Vargas (p. 81); 7 - Autoritarismo dos militares (p. 82);

A reportagem em questão, além de trazer informações históricas, também traz sequências textuais argumentativas, tipo comportado pelo gênero segundo Brocardo e Costa- Hubes (2014). O trecho final (“O autoritarismo parece exercer fascínio. Muitos chegam a crer que só através dele é possível encontrar a paz perpétua” (VILALBA, 2015, p.82)), por exemplo (Figura 34), representa uma conclusão do autor, uma opinião:

Figura 34 - Trecho da página 82 de Notas de um tempo silenciado

Estilisticamente, “Salvadores da Pátria” também se adequa ao que foi observado por Brocardo e Costa-Hubes (2014): há a predominância do tempo verbal pretérito perfeito do indicativo, como em “entre os entusiastas do positivismo estava um dos professores da Escola: Benjamin Constant” (VILALBA, 2015, p. 80), e do presente do indicativo, como em “o estágio teológico, quando a sociedade é regida pela crença em forças espirituais” (VILALBA, 2015, p. 80). Além disso, o texto procura ser impessoal, escrito em terceira pessoa, e traz uma citação em discurso direto. Por fim, as frases e os parágrafos (se enxergarmos cada bloco de texto em legendas e balões como parágrafos) são curtos.

Figura 35 - Trecho da página 80 de Notas de um tempo silenciado

Fonte: VILALBA, 2015, p. 80.

Cabe destacar os verbos e os tempos verbais que indicam o discurso direto: enquanto as legendas apresentam verbos no pretérito perfeito (“foram” e “foi), o balão possui o tempo verbal presente (“assino”). Além disso, a linguagem dos quadrinhos não necessita de aspas para indicar o discurso direto, uma vez que o balão já indica a voz/discurso de outra pessoa que não a do narrador.