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Para compreendermos o atual Seminário Filosófico Católico, objeto de estudo onde buscamos verificar as práticas formativas, as relações de formação entre os padres formadores e os seminaristas, candidatos ao sacerdócio, precisamos contextualizá-lo na história da Igreja Católica no Brasil.

De acordo com Cabras (1982, p.118), a Igreja Católica chegou ao Brasil junto com a colonização do país pelos europeus. O modelo da Cristandade que predominava no continente europeu foi transplantado para a nova colônia, até a ruptura oficial do Estado Republicano com a Igreja, consignada na constituição de 1890. Até então, a Igreja, valendo-se do poder de influência moral que suas estruturas produziam, sempre sacralizou as autoridades constituídas e as normas sociais, posicionando-se como uma aliada importante do poder civil na manutenção dos padrões de dominação vigentes.

Tanto no período colonial quanto no imperial, a Igreja no Brasil esteve completamente submetida ao poder monárquico vigente, como concessão dos Papas à Coroa Portuguesa. O rei português controlava completamente a Igreja, nomeando bispos, autorizando e proibindo ordenações sacerdotais ou profissões religiosas. O clero era portanto, funcionário público.

Com a separação no período republicano, a hierarquia católica oscilou entre o júbilo pela autonomia outorgada pela Constituição do país e a rejeição da ruptura. Isso porque no regime de cristandade, quanto mais a Igreja está presente no Estado, tanto mais ele será cristão. Mas não sendo possível a volta ao estado de união anterior, a hierarquia eclesiástica procurou estabelecer boas relações com o governo republicano, que por sua vez assegurava à Igreja liberdade para sua expansão no território brasileiro, já que então, ser católico e ser brasileiro eram uma coisa só.

Livre da tutela do Estado Republicano, a Igreja Católica prosperou no Brasil, vivendo um processo de romanização no qual o Vaticano finalmente passou a controlar diretamente a hierarquia clerical do país.

Na Era Vargas, a hierarquia católica, mobilizando suas bases leigas pressionou a classe política a aceitar sua influência então nada desprezível na partilha do poder. A Constituição de 1937 fez muitas concessões à Igreja Católica, num esforço de integração de forças, com vistas à manutenção do status quo (CABRAS, 1982, p.123).

Mas a sociedade brasileira estava passando por intensas transformações desde 1930, sobretudo devido ao fenômeno da industrialização, causando uma revolução social profunda, modificando estruturas e valores tradicionais. No bojo dessas mudanças, veio também a secularização, fruto da industrialização, da urbanização e das mudanças culturais.

A secularização se caracteriza pela progressiva autonomização da sociedade em relação à instituição religiosa, com a perda de poder desta para as instituições políticas, culturais, sociais e educativas. Há uma “profanização” da ideologia que orienta a conduta dos atores sociais, emanadas de outras agências que não a religiosa. Compreende também os processos de demitização e dessacralização do mundo, com aumento da influência científica. Produz-se um enfraquecimento estrutural das instituições eclesiais, perturbadas por conflitos internos advindos da crise de papéis até então exercidos pelos atores religiosos. Implica ainda

uma marginalização da instituição religiosa e uma privatização da religião, o que se traduz no surgimento do pluralismo religioso.

O Estado, mantendo-se independente das confissões religiosas e como guardião da ordem estabelecida, ao conceder liberdade religiosa acabou promovendo o pluralismo religioso, colocando a religião na situação de “mercardo” na qual cada credo oferece seus “serviços”. Nesse contexto de laissez-faire, a hierarquia católica terá de se enfrentar com o crescimento do Espiritismo, da Umbanda, do Pentecostalismo, do Marxismo e do Tecno- Burocratismo (CABRAS, 1982, p.127).

Diante desses desafios, a Igreja estava alienada da realidade brasileira:

Assim, com o enfraquecimento da oligarquia agrária, a expansão das escolas públicas e nuclearização da família, perdia a Igreja três importantes pilares sobre os quais, no passado, assentara sua atuação no Brasil; as massas de migrantes que abandonavam o campo e adentravam as grandes cidades, bem como a modernização que invadia, com sua carga secularizante, as regiões interioranas, ameaçavam colocar em cheque a pastoral tradicional, essencialmente rural, baseada na sacramentalização, na desobriga, nas missões populares, nas obras de caráter paternalista; o envolvimento cada vez maior dos governantes e dos políticos em geral com as massas por meio dos partidos populares, e a disseminação de obras sociais a cargo dos poderes públicos eram sinais evidentes de que as elites já não precisavam da Igreja, para como no passado, mediar-lhe o relacionamento com as massas, nem como força subsidiária em campo social. Por fim, o cerco em torno da Igreja fechava-se com o Marxismo trabalhando os intelectuais e a classe média, e o Pentecostalismo e Espiritismo as camadas mais baixas; as Ligas Camponesas ocupando espaços na zona rural e os credos alternativos, no meio urbano. (CABRAS, 1982, p. 133-134)

Em 1948, os bispos do país condenaram todos os desvios acima, como se o tempo houvesse parado no início do século XX, alienados das circunstâncias sócio-históricas novas que lhes tocava viver. A hierarquia insistia, conservadora, na manutenção da cristandade no país, num modelo retrógrado para os novos tempos.

Para explicar esse fenômeno de alienação da hierarquia com relação à realidade nacional, Cabras (1982) elenca os seguintes fatores: a romanização ou re-europeização da Igreja do Brasil, que voltou à órbita disciplinar da Santa Sé; as inúmeras congregações

religiosas que vieram para o Brasil mantinham seus padrões pautados no país de origem, sem nenhum esforço de adaptação e comprometendo-se geralmente com a educação das elites urbanas; o mesmo aconteceu com a transposição, também sem adaptação, para o Brasil, de um número expressivo de associações e movimentos leigos; finalmente, a própria formação do clero nos Seminários era alienada do contexto sócio-histórico nacional.

Em 1952 os bispos do Brasil criaram a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), para aglutinar e organizar as forças institucionais eclesiásticas. Reunindo-se em Assembléias Regionais e Gerais, os bispos começaram a tomar consciência das ameaças para a manutenção da estabilidade eclesial e passaram a realizar planos comuns para enfrentá-las. A hierarquia passou a produzir novos discursos religiosos de acordo com as circunstâncias históricas, mais atenta aos fatos nacionais.

Discursos esses, sempre ambíguos, primeiro porque, produzidos por uma instituição essencialmente conservadora, destinam-se a interpretar em termos de manutenção do satus quo uma realidade em fase de mudança acelerada; segundo porque, dirigidos a uma clientela pluriclassista, visam assegurar à instituição a fidelidade dessa mesma clientela e, ao mesmo tempo, ir ao encontro das aspirações e interesses – muitas vezes conflitantes – de cada uma das classes que a compõem. (CABRAS, 1982, p.139)

Essa é uma das funções da Religião, segundo Maduro (1981, p.172): produzir um discurso religioso unitário e ambíguo, que tem como função principal, inevitável e conservadora ocultar, deslocar e superar simbolicamente, no plano da transcendência, os conflitos sociais inerentes a toda sociedade de classes.

A CNBB utilizou a mesma estratégia que fora eficaz anteriormente: mobilizou as bases leigas para participarem do processo de reação aos desafios que ameaçavam a Igreja naquele tempo. Tratava-se de um momento de grande efervescência eclesial, com a articulação de muitas atividades pastorais socialmente engajadas, para combater o avanço do marxismo, da secularização, das seitas protestantes e do espiritismo. A CNBB surgiu para

recuperar a hegemonia da Igreja Católica, que estava ameaçada, num movimento nitidamente conservador.

O marxismo ameaçava o último reduto da Igreja, o mais importante, de acordo com Cabras (1982, p.140), a zona rural, que estava sendo organizado nas Ligas Camponesas, solapando a tradicional influência que aí exercia a Igreja. A hierarquia católica também temia uma tomada revolucionária do poder pelas classes desfavorecidas, sob a égide comunista, ameaçando a própria existência da instituição eclesial.

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil CNBB, a partir de 1956, além de um discurso antimarxista destinado às elites no poder, passou a assumir o discurso dos grupos sociais subordinados, denunciando as injustiças sociais de que eram vítimas e exigindo soluções para seus problemas, buscando a manutenção do equilíbrio social.

Numa época de transformações sociais, de recrudescimento do Capitalismo subdesenvolvido brasileiro, a Igreja se alinhou com os interesses do pólo subordinado, passando a exigir, em 1962, a reforma agrária, tributária, bancária, universitária, eleitoral e administrativa:

O posicionamento da hierarquia em favor de mudanças estruturais não se limitou a mensagens e declarações inócuas. Antes, traduziu-se em colaboração com a elite dominante para a realização de projetos de reforma, e na criação de organismos eclesiais destinados a se tornarem instrumentos efetivos de mudança. (CABRAS, 1982, p. 142).

Por meio de um discurso ambíguo, entre desenvolvimentista e conservador, a Igreja buscou reestabelecer a coesão das classes dominantes e subordinadas ao seu redor, além de pretender eliminar as fissuras intrainstitucionais, representadas por grupos antagônicos dentro da própria hierarquia e desta com os padres e leigos engajados nas lutas sociais. Não havia como reduzir à unidade as diversas forças e pulsações da demanda social que encontraram expressão nos mais diferentes e engajados movimentos eclesiais. Se o que se

pretendia era uma reforma que evitasse uma revolução, não havia como parar o movimento social. Isso só foi possível com o golpe de 1964:

Acusados de comunistas e subversivos, os movimentos eclesiais e o pessoal neles engajados, sofrem pressões quer por parte da elite dominante, quer do grupo de bispos que se batem pela preservação do status quo. A fratura existente entre os membros da hierarquia tornar-se-á ainda mais evidente por ocasião do golpe de 1964. Enquanto centenas de padres e leigos da Ação Católica são caçados pelos militares de casa em casa, são presos e torturados, a Comissão Central da CNBB agradece a Deus “que atendeu às orações de milhares de brasileiros e nos livrou do perigo comunista”, e aos militares “que com grave risco de suas vidas, se levantaram em nome dos supremos interesses da Nação” (CABRAS, 1982, p. 143-144).

Apesar desse quadro de recrudescimento imposto pelas forças do pólo dominante, as facções leigas e clericais sintonizadas com as demandas das classes subordinadas não deixaram de agir e produzir influência, arrastando outros segmentos da instituição eclesiástica a apoiarem e a participarem das lutas sociais:

O efeito de todo esse trabalho de conscientização far-se-á sentir na Igreja depois da Revolução de 1964. De fato, embora a hierarquia, desaparecido o perigo comunista, tivesse arrefecido seu entusiasmo por mudanças sociais e se recomposto como os novos donos do poder, as lideranças progressistas – bispos e padres – que haviam lutado ao lado dos militantes da Ação Católica não esmoreceram. Mesmo porque a seu favor eles contavam, agora, com um elemento novo de extraordinária importância: as exigências feitas pelo Concílio recém encerrado de uma revisão das próprias estruturas eclesiais, afim de colocá-las em sintonia com as necessidades do mundo moderno. (CABRAS, 1982, p. 147).

Sob o influxo da renovação conciliar, a partir do ano de 1968, a hierarquia católica voltou a distanciar-se do poder, denunciando as injustiças da ditadura, engajando-se novamente em favor de profundas mudanças sociais, posicionando-se como porta-voz do pólo subordinado, dando destaque para a dimensão profética da instituição. Esta foi a postura que marcou a orientação da cúpula da Igreja no Brasil na década de 70, apesar de que nela não se inscrevia a totalidade nem a maioria dos membros da CNBB.

Resumindo a realidade histórica da Igreja no Brasil, da Colônia aos dias atuais, podemos observar os movimentos de fluxo e refluxo em busca de uma identidade própria. A partir do advento da República, a Igreja buscou seu lugar na nova conjuntura que se apresentava: um mundo e uma sociedade em transformações velozes. Não conseguindo elaborar para si um projeto de inserção pastoral de acordo com as novas condições sócio- religiosas do país, ela se enquistou no modelo de neo-cristandade, em busca de um refúgio seguro, aderindo às orientações romanas. Mas não houve como permanecer ancorada no passado saudosista, pois a secularização veio, desestabilizadora, com todo seu cortejo: pluralismo religioso, marxismo, tecnoburocracia, industrialização, urbanização, migração, etc. (CABRAS, 1982, p.151).

No plano intrainstitucional eclesial, há fraturas no episcopado, além da efervescência e clamor que vem das bases, desejosas de mudanças: Ação Católica, Comunidades Eclesiais de Base, movimentos predominantemente leigos, críticos, atuantes e engajados. Contestavam o modelo econômico vigente, a aliança da hierarquia com o pólo dominante, a ineficácia da doutrina social da Igreja quanto aos problemas específicos da América Latina e do Brasil, reclamavam maior participação na vida da instituição eclesial e mudanças estruturais profundas com vistas à realização da missão da Igreja junto ao homem do século XX.

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