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NOTAS SObRE O Manual do pedólatra aMador

No documento Sexualidades e identidades culturais (páginas 186-196)

Desconsiderando as longas listas de best-sellers estrangeiros (a maior parte vinda dos Estados Unidos) traduzidos do espanhol e do inglês, as livrarias latino-americanas dividem-se em um conjunto de produção nativista na área cultural (compreendida aqui no sentido restrito de gêneros tradicionais e suas estreitas mutações) e em um conjunto de publicações não nativistas (em sua maioria traduções) das tecnologias do discurso social dominante e transnacional. Pela mesma razão que não se encontram facilmente manuais para programas de computador (ou programas de computador para iniciantes) que não sejam traduzidos do inglês, é difícil de se encontrar tratados sobre sexualidade de alguma outra forma que não seja a tradução: os relatórios Masters & Johnson; a série

Joys (“Alegrias”) e, até mesmo, arrisco-me a dizer, Dr. Ruth.

Certamente, não significa que o membro de uma sociedade não hegemônica (ou um membro de uma sociedade hegemonizada que possua uma identidade ainda não hegemônica) não possa escrever um tratado sexual que não seja demonstravelmente derivado de modelos hegemônicos (como os diversos tratados científicos brasileiros sobre sexo discutidos por Richard Parker a título da produção de uma análise científica do sexo no Brasil no final do século XIX e início do século XX164). Ao invés disso, a pergunta

que deve ser feita é em que medida existe um provável mercado para as tecnologias sexuais indígenas, por exemplo, mais do que existe um para tecnologias indígenas de qualquer outra natureza. Com certeza, existe um mercado para tecnologias radicalmente

164 Cf. PARKER, Richard. Beneath the Equator: Cultures of Desire, Male Homosexuality, and Emerging Gay Communities in Brazil. 1998. PARKER, Richard. Bodies, Pleasures, and Passions: Sexual Culture in Contemporary Brazil. 1990.

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DaviD William Foster divergentes, as quais se configuram como diametricamente opostas às dominantes, havendo um subtexto de oposição categórica ao processo de hegemonização. Estou me referindo a tratados bem-sucedidos sobre ocultismo na Argentina e sobre espiritismo no Brasil: em ambos os casos, a ciência hegemônica e a religião institucionalizada são enfraquecidas pelos discursos alternativos, os quais certamente conteriam versões da sexualidade, mesmo que por implicação.

Porém, o discurso dominante desafia os discursos alternativos, alegando não serem científicos; e, mesmo que esse desafio não obtenha sucesso, a julgar pelos relatórios de vendas, ainda assim propõe um dramático divisor de águas, supondo um público leitor radicalmente diferente. Mas o que estou dizendo é da possibilidade de um discurso tecnológico que, por mais alternativo ou contestatório que seja, ainda se encontra fortemente inscrito, mesmo que apenas nominalmente, dentro das convenções da linguagem científica. Tais esforços existem, sem a menor dúvida, mas minha premissa aqui é de que se trata de uma conclusão precipitada pensar que tais discursos alternativos devam ser condenados à insignificância, não por sua qualidade intrínseca, mas pelas condições de aquisição do conhecimento a que competem.

Logo, em uma parcela do mundo como a América Latina, se há uma tecnologia sexual alternativa que não seja produção cultural, no sentido estrito do termo, essa deve assumir dimensões radicalmente diferentes daquelas da ciência comum ou daquelas de repúdio e confronto à ciência. O que me proponho a explorar aqui é um desses esforços, o Manual do pedólatra amador; aventuras & leituras de um tarado por pés, de Glauco Mattoso165, o primeiro volume de uma série intitulada Boca do inferno e

complementada por uma versão em quadrinhos, com ilustrações de Marcatti, As

aventuras de Glaucomix o pedólatra166. Para início de conversa, pode-se argumentar

tranquilamente que o “tratado” de Mattoso é meramente um exemplo notável de narrativa marginal, um romance pós-moderno na forma de uma biografia erótica do

165 MATTOSO, Glauco. Manual do pedólatra amador: aventuras e leituras de um tarado por pés. 1986. 166 MATTOSO, Glauco; MARCATTI JR., Francisco de Assis. As aventuras de Galucomix o pedólatra. 1990.

autor em primeira pessoa, que, por sua vez, apresenta-se na forma de um manual sexual. Essa caracterização de Manual é legítima, e, se as bibliotecas o tivessem (parece que existe somente nos Estados Unidos, na Biblioteca do Congresso), possivelmente seria classificado tanto como ficção brasileira quanto como um tratado sexual, ou talvez ainda mesmo como literatura pornográfica. Desse modo, o que me proponho a fazer aqui é analisar as implicações ideológicas da leitura do Manual enquanto um registro válido, embora particularmente ultrajante, de uma biografia de tecnologias sexuais alternativas.

Comecemos com uma caracterização inicial do Manual enquanto ultrajante. Cumpre esclarecer que, ao usar tal adjetivo, minha intenção não é pejorativa de modo algum. Na verdade, no contexto de uma estética pós-moderna, qualquer desvio – sexual ou retórico ou ainda a combinação das duas – que possa ser julgado ultrajante pode, de fato, constituir um elogio considerável. Ao invés de insinuar uma atitude descuidada em relação ao texto, devido à sua incapacidade de se sustentar diante das convenções do discurso do senso comum – uma adesão a uma objetividade equilibrada com o propósito de não alienar o leitor receoso –, o texto ultrajante se configura de maneira agressiva, sendo uma voz transgressora cuja “autoridade”167 o leitor está disposto a aceitar no

momento. Para fins de argumentação, para que se veja aonde se quer chegar, o leitor não considera a autoridade como inerente, mas como um apofântico.

O texto de Mattoso é ultrajante de diversas maneiras. Em primeiro lugar, é francamente autobiográfico, com nenhuma apologia por sua natureza ultrajante ou pelo fato de que os desvios sexuais descritos sejam recontados sem traço algum de uma retórica mediadora da exoneração moral (“isto é algo horrível, mas lamentavelmente trata-se da natureza humana como ela realmente é”). A consideração de Mattoso acerca de uma educação sexual, seja autobiográfica ou de qualquer outra natureza, não se constrói pelas convenções naturalistas da escrita pseudocientífica, que serve para postular uma linha divisória sólida entre a superioridade moral do pacto compartilhado entre leitor e narrador (o qual transcende o abismo moral do que é narrado) e uma corrupção humana

167 Convém assinalar que as citações de sustos servem aqui para nos lembrar da natureza paradoxal de uma conjugação do tipo “autoridade transgressora”.

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DaviD William Foster fortemente contemplada. Com efeito, o sentido mais ultrajante da memória pessoal de Mattoso é dado pela suspensão do distanciamento moral realizada por um narrador impenitente, em primeira pessoa, e pela crônica não mediada (ao menos por julgamentos autoritários implícitos ou explícitos) dos fatos sexuais que a vida fornece.

Outra dimensão da tessitura ultrajante do Manual é o fato de essa memória ser um fetiche sobre pés, não um fetiche abstrato, mas fundamentado, por assim dizer, na aspereza do contato físico de uma pessoa com a poeira da terra. Mattoso pode muito bem ter poetizado seu fetiche a partir de algum modismo metafórico, porém, ao ancorar seu discurso na palavra coloquial “chulé”, ele quer dizer ao seu leitor que jamais perca de vista o fato de que está tratando, literalmente, com o limo da história. De fato, o repúdio da prática civilizada de lavar os pés com fragrâncias suplementares, ao lado da subestimação dos pés por causa de sua íntima relação com as formas mais proletárias, mantém uma materialidade para o fetiche do narrador que bloqueia efetivamente qualquer desejo do leitor de adentrar à alegoria ou a qualquer tipo de processo metonímico que irá desviar o discurso para outros caminhos que não seja o literal e primeiro: atenções múltiplas dedicadas ao pé sem adornos enquanto local erótico no seu direito. É importante ressaltar a noção de que o corpo inteiro, em cada uma de suas articulações e protuberâncias é uma zona erógena unificada, assim como também é importante conferir atenção em mesmo nível para cada detalhe de uma prática sexual sem preconceito que liberta a pessoa de territórios hipostasiados e da higienização reguladora.

Por fim, é ultrajante a conjugação feita por Mattoso da podolatria com a homossexualidade. Para esclarecer, a noção regulatória da homossexualidade a mantém inerentemente ultrajante, enquanto hipostasia esse tipo de relação sexual corpórea em termos de uma suposta análise dominante. Esse preconceito territorial, é claro, meramente acomoda a homossexualidade dentro de uma hipóstase predeterminada e reducionista de atos heterossexuais com base numa relação entre penetrador e penetrado. Ao inscrever seu fetiche a partir de uma matriz homossexual e então desafiar as supostas convenções anais dominantes da homossexualidade por meio do deslocamento da zona erógena principal para os pés, o narrador de Mattoso acrescenta incrementos exponenciais à

qualidade ultrajante do seu texto. Tais estratégias são acompanhadas de derivações da decisão de localizar o texto no campo lexical do “chulé” – ou seja, por um impiedoso compromisso estilístico com o registro coloquial do português brasileiro que, se simplesmente torna a leitura mais árdua para um falante não nativo, torna o Manual um tanto ofensivo para todos, mas ainda mais complacente para os falantes nativos. De fato, os falantes nativos, por compreenderem as nuances da língua, apresentam mais motivos para estabelecerem um distanciamento em relação ao texto do que os não nativos, os quais simplesmente, por vezes, acabarão não entendendo o texto.

Vamos analisar por um momento a narrativa em primeira pessoa de Mattoso. Certamente, a função dessa voz aparentemente “direta” não pode servir meramente para legitimar o texto, pois o conteúdo das aventuras descritas já desvia o suficiente das normas sociais, supostamente para tornar supérflua qualquer identificação entre narrador e leitor. Ainda que de modo contrário e perverso, o narrador em primeira pessoa do Manual, na verdade, incentiva uma identificação entre narrador e narratário numa dimensão em que esse pode não ter até então ousado contemplar: Mattoso fala na sua própria voz – novamente, habilmente fazendo malabarismos com variações e dimensões de um discurso ultrajante – a fim de estabelecer e confirmar uma fidelidade entre essa voz e os indivíduos que podem anteriormente não ter tido à disposição um discurso sexual adequado às suas necessidades.

Desse modo, chegamos ao que considero ser a questão mais importante de se apontar sobre a prática textual de Mattoso, a qual se confirma na alteração entre as confissões em primeira pessoa, citações de fontes literárias e paraliterárias (aproximadamente 160 páginas são complementadas por 98 notas de rodapé), e uma pseudorrealidade variada (cartas de amigos, respostas a anúncios pessoais e a transcrição do final de um diálogo com Sylvia). A questão é que a forma com que um discurso como o do Manual, em contraste à escrita (pseudo)científica e à fabulação literária, envolve processos projetados para provocar a liberalização ou a carnavalização dos significantes sexuais. Ou seja, o

Manual representa uma ruptura radical com a análise sensível (com todos os sentidos

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DaviD William Foster sexual para, essencialmente, conferir uma espécie de foco analítico para cada forma de comportamento.

Assim, se, ao vivenciar o seu único ato “heterossexual” com uma mulher que acaba virando lésbica, o narrador desafia a homossexualidade normativa – uma mulher com quem ele em seguida estabelece um relacionamento interpessoal estável, a forte ligação entre Mattoso e Sylvia, primeiro como um casal “tradicional” e então como duas pessoas cada uma com identidades homossexuais assumidas –, pouco o faz no sentido de reafirmar a primazia social do casamento heterossexual. E, se a podolatria tem como seu aval mais expressivo a possibilidade de “continuar transando numa boa sem risco de AIDS” (contracapa), só pode ser um poderoso tesão para o narrador na sua dimensão mais gritante de “sexo sujo”. Ao recontextualizar a experiência sexual em termos de uma zona erógena que desafia os culturemas ocidentais de limpeza, o

Manual desafia seus leitores a exceder limites que eles talvez jamais tenham imaginado

existir. Todas essas estratégias são movimentos em um processo de transformar os significantes sexuais num processo de livre flutuação de significados que pouco tem a ver com manuais sexuais padrões, sejam hetero- ou homossexuais.

Esse tipo de avaliação analítica de opções, baseada em um apelo à experiência pessoal concreta, sendo essa última reforçada por um registro coloquial, complementado por jogos de palavras circunstanciais, é o que distancia a exposição de Mattoso de um tratado sobre sexo do Primeiro Mundo, ancorando-se num contexto sociocultural específico do submundo sexual do Rio de Janeiro e de São Paulo dos anos 1970 e início dos 1980 (submundo não só por causa da sexualidade marginalizada, mas porque o Brasil vivia numa ditadura, fato ao qual Mattoso faz referência quando fala da censura de publicações gays “imorais” a que é associado). Esse apelo de uma fundamentação na experiência pessoal é particularmente evidente quando o narrador expõe detalhes de seus desejos e realizações eróticas com o registro escrito, geralmente a partir de fontes estadunidenses (e citados no original em língua inglesa):

[c]omo o leitor terá notado, tais contos nada mais eram que uma transposição de minhas experiências reais para um

plano ligeiramente mais fantástico. Coisa que agora até

afigura supérflua, em face deste livro onde estou relatando tudo em suas proporções exatas168.

Deve-se notar aqui que a citação acima se refere a um texto do próprio Mattoso, o qual é citado no original em língua portuguesa e em seguida na tradução em língua inglesa na qual ganhou circulação internacional na antologia de Winston Leyland169.

Noutra ocasião, o narrador reclama da reticência perturbadora dos textos no relato de fatos reais de sofrimento físico, um sofrimento que para ele constitui uma dimensão erótica crucial:

[d]e fato, o que há muito me irritava era a enxurrada de livros de “memórias” de vítimas de repressão, que pretendiam denunciar as violências sofridas, mas que, por pudores moralistas ou escrúpulos ideológicos, se autocensuravam justamente no momento de descrever as cenas de tortura, sobretudo os lances sexuais implícitos ou explícitos, os quais acabavam sistematicamente omitidos ou eufemizados170.

Realmente, a dimensão dos registros pessoais de Mattoso que realça seu interesse no sadomasoquismo aponta para um dos aspectos ideológicos mais problemáticos de seus textos – isto é, uma instância na qual se tornam particularmente ultrajantes no

168 MATTOSO, Glauco. Manual do pedólatra amador: aventuras e leituras de um tarado por pés. 1986. p. 120. Os grifos são meus.

169 LEYLAND, Winston (Ed.). Now the Volcano: An Anthology of Latin American Gay Literature. 1979.

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DaviD William Foster contexto dos tratados sexuais objetivos. Não é que Mattoso simplesmente defenda o apelo sadomasoquista enquanto impulso erótico. Trata-se de uma posição que tem produzido sérias fendas na escrita gay; podem-se comparar as imagens negativas geradas, desde uma perspectiva masculina, no romance Rushes (Correrias), de John Rechy171, com as positivas, do ponto de vista feminino, nas histórias de Pat Califia em

Macho Sluts (Putas machas)172. A antologia de Califia contém um ensaio importante

em defesa do sadomasoquismo lesbiano: o sadomasoquismo com frequência é visto como problemático porque, entre outros aspectos, ritualiza a condição do homossexual enquanto vítima desamparada, sendo que, no sadomasoquismo lesbiano, soma-se a dimensão da vivência geral das mulheres enquanto objeto de violência sexual173.

Mattoso deixa claro que não defende o sadomasoquismo numa perspectiva “nazista” de dominação do mais fraco pelo mais forte, mas como forma de dramatização sexual, com rituais de humilhação simbólica, não enquanto tortura real174.

A distinção que Mattoso faz entre tortura real e sadomasoquismo enquanto forma de dramatização sexual175 não esgota uma dimensão altamente problemática da sua

defesa ultrajante da podolatria. O autor prossegue na defesa não tanto da ressonância erótica da tortura política real quanto do uso dessa questão como ingrediente de seu próprio psicodrama erótico, em que as descrições das torturas infligidas a outros em nome da economia política podem muito bem ser recodificadas para servir de estímulo na arena dos prazeres sexuais pessoais. Mais do que questionar a validade dessa transcodificação e evitar uma consideração sobre o quão politicamente correto

171 RECHY, John. Rushes. 1979.

172 CALIFIA, Pat. Macho Sluts. [1988]. 2009.

173 DWORKIN, Andrea. Intercourse. 1987.

174 MATTOSO, Glauco. Manual do pedólatra amador: aventuras e leituras de um tarado por pés. 1986. p. 145. Esse também é o sentido da citação: “[s]im, porque tortura de verdade, na própria pele, nem morta!” (Id. Ibid. p. 36).

175 Mattoso reconhece, a exemplo de muitos comentaristas sobre tortura oficial, que a tortura inevitavelmente carrega consigo uma dimensão de sadomasoquismo, ao menos para o torturador; ver o filme O porteiro da noite, de 1974, de Liliana Cavani.

os leitores acharão essa operação cínica, a ponto de se gerar uma cumplicidade com a legitimação da tortura política, o narrador autobiográfico de Mattoso considera que tais textos sejam eroticamente inadequados por não fornecerem o tipo de detalhe explícito sobre o sofrimento eroticizado que seu interesse pessoal requer. Em vez de fazer o questionamento no sentido de por que esses silêncios e eufemismos estão presentes em textos de memórias de sobrevivência – uma análise do discurso dessa escritura (com a qual Mattoso não tem nenhum compromisso) pode começar com o que pode e o que não pode ser dito, dado o abismo inaugural entre o conhecimento do narrador e a “externação” do narratário –, o narrador enquanto escritor contempla a necessidade, que é afinal de contas o ponto de partida do Manual, de criar seu próprio discurso erótico.

Assim como Mattoso se preocupa em defender sua interpretação podólatra de textos literários em que os pés ganham atenção em primeiro plano, ele igualmente evita teorizar seu desejo de ler de maneira erótica as memórias dos sobreviventes de tortura política, fracassando inclusive no reconhecimento das diferenças reais, substantivas entre as duas categorias do discurso. A conjugação indiscriminada dos dois constitui um dos aspectos mais ultrajantes, senão ideologicamente problemáticos, do Manual. O fato é que Mattoso prescinde das duas formas de escrita como inadequadas às suas próprias necessidades expressivas, sendo no espaço clareado pela licença conferida tanto à literatura quanto às memórias da prisão que o Manual vem à tona, baseado numa destacada experiência pessoal que valida a si mesma, não pela confirmação de imagens noutras fontes, mas por sua singularidade putativa. De fato, a grande autoconfirmação de Mattoso virá da resposta do leitor que ele registra para versões anteriores de suas vivências, todas sustentadas por variedades dos mesmos topos.

A paneroticidade transgressiva do desejo sexual que a narrativa de Mattoso coloca em ação a partir de múltiplas dimensões do ultraje aqui descrito, variando desde postulados eróticos básicos do narrador a aspectos ideologicamente problemáticos de sua exposição, desvia significantemente da sanidade sexual sobre a qual se baseiam os tratados sexuais científicos e manuais eróticos advindos do Primeiro Mundo, largamente disponíveis na forma de traduções em livrarias na América Latina. Pode-se arriscar a

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DaviD William Foster dizer que a dificuldade eventualmente enfrentada pelo leitor na tentativa de “normatizar” o discurso de Mattoso, seja em termos eróticos gerais, seja enquanto declaração de experiências pessoais, no contexto de uma escrita socialmente respeitável sobre sexo, é uma função do modo como o Manual engaja-se em estratégias variadas para subverter as práticas sexuais atualmente normatizadas, tanto hetero- quanto homossexuais. E, apelando para um princípio de saúde sexual – Mattoso descreve nas suas crônicas suas experiências enquanto podólogo sexual que oferecia shiatsu a seus clientes –, o Manual reinscreve um sexo sujo alegremente desviante no código social dominante do sexo saudável: o sexo como saudável e a saúde como um componente do comportamento sexual institucionalizado.

Outra questão fundamental a ser observada no Manual, uma dimensão tanto da sua carnavalização do sexo “legítimo” e “ilegítimo” quanto de suas práticas discursivas ultrajantes, é a contradição basilar que permeia as especificidades eróticas. Os textos de Mattoso baseiam-se no seu apelo a uma extensa gama de ultraje complementar pela falta

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